Volume 2

Capítulo 116: Queimando

— ALDREN! — Colth rugiu, a voz ressoando pelo salão circular do alto da fortaleza Última. Sua ira transbordava do peito e ofuscava qualquer resquício de equilíbrio. — Eu vou acabar com você!

O ar carregava um pesar denso, que parecia envolver cada canto do salão. As luminárias de cristais de Sathsai, incrustadas nas paredes, projetavam um manto de luz fria sobre o ambiente e focalizava o centro, realçando a agonia, onde, sobre o altar de pedra, Lux permanecia acorrentada com grilhões firmes mantendo-a subjugada.

Aldren estava postado à frente dela, um defensor imponente, com os olhos fixos em Colth como se fosse um reflexo de sua própria raiva, remoendo o ódio por ser rejeitado, desprezado e substituído.

Ao redor do altar, cinco encapuzados estavam espalhados pelas sombras do salão, imóveis como estátuas, enquanto Hikki, mais afastado, estava ao lado de Garta. O olhar hesitante dele, revelava a incerteza sobre o seu próximo movimento.

Enquanto isso, Goro e Iara estavam unidos ao lado do guardião de Anima. Seus rostos ainda estavam abatidos pela perda recente, marcados pela sensação de impotência que a falta de Celina trazia. Esse vazio turvava a razão deles, mas em Colth era pior, queimava.

Seus pensamentos eram um caos, uma tempestade de sentimentos em sua mente. E, no meio desse furacão, a voz de Lashir emergiu, distinta, como uma âncora tentando prendê-lo à sanidade.

“Calma Colth, esse homem tem um poder que nós não entendemos...”

Ele a ignorou. Os ventos da fúria falando mais alto.

A imagem do último sorriso de Celina o assombrava, gravada em sua memória, em uma cicatriz vívida. De repente, nada mais importava, nada mais parecia fazer sentido, nada mais tinha valor e tudo poderia ser apostado. A vingança o consumia como fogo.

Em um instante, Colth explodiu em movimento. Com um grito que reverberou pelo salão, ele lançou-se para frente. Seu rosto, deformado pela intensidade da raiva, era quase irreconhecível, e seus olhos só focavam um objetivo, o inimigo a sua frente.

— Eu vou acabar com você, Aldren! — rugiu novamente, os punhos cerrados e a aura de fúria crescendo ao seu redor. Avançou.

Aldren, por um momento, parecia espelhar a mesma emoção crua e corrosiva que emanava de Colth. Seu rosto endureceu, os traços marcados pela raiva incontida, como se ambos compartilhassem o ódio mútuo. Ele cerrou os dentes com força e ergueu ambas as mãos. Uma energia cintilante pulsou sobre suas palmas de forma ameaçadora, uma sentença prestes a ser executada.

— A culpa é sua! — bradou Aldren.

Ele projetou o poder adiante, as mãos estendidas em direção a Colth, desejando sua morte. O ar ao redor se agitou, pesado e saturado de energia. Mas o guardião de Anima não parou. Sua investida era cega, conduzida por uma fúria maior que ele.

“Merda, Colth...” A voz de Lashir surgiu sussurrante e aflita em sua mente, carregada de preocupação. Ele não deu ouvidos, continuou.

A magia de Mutha, projetada no escudo de Agnes ao seu redor, começou a rachar e ceder sob o impacto da magia de Aldren, cada fissura acompanhada por um som abafado, como vidro prestes a estilhaçar. O calor da morte parecia apertar o ar sobre sua cabeça, cada instante mais sufocante. Colth sentiu a aproximação da destruição, mas sua ira ainda o impulsionava. Ele se concentrou, com toda energia, sentiu a palma da mão arder com tamanho poder que era emanado dela, sua visão se embaçou enquanto apontada para Aldren, como se a realidade derretesse em volta, e então, escuridão e silêncio.

Quando a luz retornou, veio de forma brutal e repentina, trazendo consigo um frio cortante que penetrou sua pele. Colth piscou algumas vezes, tentando ajustar os olhos à nova realidade. O cenário que se revelava à sua frente era dolorosamente conhecido.

Ele estava de volta.

Uma pequena cidade, envolta em chamas violentas que consumia as simples construções reconhecidas por Colth. O calor do fogo fazia o ar tremular, mas não conseguia dissipar a gélida dor que vinha com as lembranças. A lua cheia reinava no céu, magnífica, mas seu brilho era roubado, obscurecido, pelas colunas de fumaça espessa que ascendiam aos céus e a destruição que consumia Toesane.

As ruas, antigamente vivas e movimentadas, estavam desertas. Apenas o som das chamas estalando e o ocasional desabamento de estruturas quebrava o silêncio, acompanhados do cheiro de madeira queimada.

Colth deu um passo à frente, hesitante, os pés afundando na terra seca misturada a cinzas. Seu coração acelerou, reconhecendo cada detalhe daquele momento, daquela memória, mas ele se negou. Recusou o sentimento que aquelas lembranças lhe traziam. Cerrou os punhos e respirou fundo, contendo a nova torrente de emoções, voltando ao foco.

— Que se dane... — murmurou para si mesmo, prestes a começar a caminhar.

Mas antes que pudesse continuar, uma voz o alcançou. Suave, neutra, destoando do caos em meio à destruição.

— Que lugar é esse? — perguntou Lashir, atrás dele.

Colth sentiu a presença dela, não precisou se virar para confirmar, sabia que Lashir estaria ali. Ainda assim, a ignorou, permitindo que o silêncio falasse por ele. Sem olhar para trás, começou a caminhar pela deserta rua coberta de cinzas, contornada pelos paredões de chamas que se erguiam das casas consumidas pelo fogo.

— Onde você está indo? — persistiu Lashir.

— Vou acabar com Aldren. — respondeu Colth, sua voz baixa, soturna. O olhar permanecia fixo no horizonte, onde as labaredas pareciam ainda mais intensas no final da rua, como se o aguardassem.

Lashir, com o seu vestido vermelho característico de Rubrum, não permitiu que ele se afastasse. Ela avançou, determinada, o som de seus passos ecoando na ruína.

— Espera... você invadiu a mente do Aldren? — perguntou ela, surpresa e curiosa ao mesmo tempo, apressando-se para acompanhar as passadas firmes de Colth. — E sem nem encostar nele? Isso é impressionante.

Colth não respondeu. Seus passos eram pesados, o chão de cinzas cedendo sob suas botas, deixando claro que ele já havia tomado sua decisão.

Lashir varreu o cenário caótico com seus belos olhos rubis, enquanto a sua curiosidade mantinha-se despertada, e considerou que talvez já tivesse passado por ali

— Que lugar é esse? — indagou ela, com uma leve hesitação que não escondia seu desconforto.

— Você reconheceria, se não o tivesse destruído. — rebateu Colth. Sua voz gélida, tão rancorosa quanto o fogo que rugia ao redor.

Lashir parou subitamente, a dureza das palavras dele atingindo-a. Por um momento, seu semblante firme vacilou, e ela abaixou os olhos, observando as pegadas de Colth marcadas nas cinzas.

— Toesane... — sussurrou ela, finalmente entendendo, a voz pesarosa.

Lashir sentiu o peso das próprias ações, a culpa repousando sobre os seus ombros. Mas então, ela afiou os olhos, ergueu a cabeça novamente, viu Colth se afastando mais uma vez, sua silhueta consumida pela luz incandescente do fogo cada vez mais agitado.

Não cedeu, acelerou seus passos novamente para alcançá-lo.

— Não estamos na mente do Aldren, você... — Lashir interrompeu as próprias palavras, percebendo a insanidade que seria terminá-las. — Colth, me diz que você não...

— Vou colocar um fim nisso. — A resposta de Colth foi direta, se hesitação, interrompendo-a. Ele continuou caminhando, os olhos fixos no caos à frente.

— Ficou maluco?! — Lashir imediatamente atônita. — Você trouxe o Aldren para a sua mente. Sabe o risco que nós estamos correndo aqui?

— “Nós”? Nem era para você estar viva...

— Ah, seu... não me venha com essa. — reclamou ela, desgostando das palavras e do tom combativo dele. — Eu não sou a inimiga aqui. Você sabe que o Aldren pode destruir a sua mente de dentro para fora, não é? Basta ele querer, agora que você perdeu a noção e decidiu o convidar para passear nas entranhas do seu cérebro!

— Que diferença faz? — rebateu Colth, ainda sem se virar, frio.

— Toda diferença! — exclamou Lashir, abruptamente.

— Não importa — rebateu Colth, sem pensar. — Se ele destruir minha mente, vai se destruir junto.

Lashir o encarou, agora constatando. Não era uma simples raiva que Colth sentia, ele estava disposto a tudo, até mesmo à autodestruição. Ela, imediatamente, se contrapôs.

— Você não está pensando direito, Colth! Mesmo que derrote o Aldren, ele não vai aceitar perder. Acha mesmo que, com todo o poder que ele absorveu daquelas almas escravizadas, o Aldren vai simplesmente se render? Assim que perceber que perdeu, ele vai destruir sua mente, mesmo que isso o leve junto, vai acabar com tudo!

Colth parou por um momento. A preocupação nas palavras dela reverberava no ar entre os dois, mas quando ele falou em seguida, foi com uma frieza que fez até o caos ao redor parecer insignificante:

— Que seja.

A resposta foi final, irredutível, consumido por um propósito que ultrapassava a razão. Deixando Lashir com suas palavras suspensas no ar, enquanto a luz do fogo iluminava suas costas.

— “Que seja?” — repetiu Lashir, incrédula, a perplexidade evidente em sua voz. — Isso é suicídio... Eu não posso permitir e...

— Cala a boca! — Colth rosnou, sem se deter.

— Colth, você está...

— Eu mandei calar a boca! — rugiu ele, ao mesmo tempo que se virava e encarava Lashir.

Uma intensidade que fez ela hesitar por um instante. Seus olhos transbordavam uma ira que nunca havia apresentado, surpreendendo a mulher. Ele respirou pesadamente, em um aviso ameaçador, e então se virou novamente, retomando sua marcha obstinada rumo ao fim da rua em chamas.

— Isso é loucura! — Lashir gritou, o desespero superando sua cautela, alcançando e agarrando o braço dele. — Você vai se matar, e isso não vai trazer ninguém de volta. Nem mesmo a Celina.

Colth parou, o corpo inteiro tremendo. O silêncio que se seguiu era sólido, acompanhado apenas pelo som das chamas ao redor. Ele não se virou imediatamente, seus olhos desceram para onde a mão de Lashir segurava a sua.

— Solta. — Sua voz era baixa, mas carregava um tom ameaçador.

— Eu não vou soltar — Lashir respondeu com firmeza, apertando ainda mais o braço dele. — Você está indo para um caminho sem volta, e se eu tiver que te impedir, eu vou.

Colth virou-se lentamente, seu olhar tão incandescente de raiva quanto o fogo ao redor. Ele a encarou, o rosto enfurecido, à beira de explodir.

Lashir não recuou. Embora seu coração batesse acelerado, ela estava determinada àquilo.

— Me solta.

— Você não está sozinho nisso, Colth. Só precisa abrir os olhos.

Ele não respondeu com palavras. Sua mão livre se ergueu abruptamente, e um clarão de energia densa de magia de Mutha, explodiu de sua palma. Num único movimento carregado de fúria, Colth desferiu um golpe direto contra Lashir, que só teve tempo de se proteger com os braços frente ao rosto. O impacto foi devastador, lançando-a para trás. Mas, ainda no ar, ela endireitou o corpo com destreza e aterrissou em segurança, deslizando sobre a terra coberta de cinzas até parar. Seus olhos arregalaram em incredulidade enquanto o fogo ao redor se atiçava.

— Então é isso? Vai se afundar nesse ódio a ponto de lutar comigo?! — Lashir gritou, aborrecida.

Um filete de sangue escorreu do canto da boca de Lashir, mas ela não demonstrou fraqueza. Ergueu a mão para limpá-lo, sua magia de Rubrum reagindo instantaneamente. O sangue que ela tocava com as pontas do dedo começou a se mover, retilíneo e serpenteante, seu próprio sangue em mãos lhe obedecendo em movimentos espirais até se endurecer em lâminas ao redor de seus braços, prontos para perfurar.

Colth não parou para reagir ao gesto. Ele avançou, a fúria movendo seus passos, enquanto o escudo de Mutha surgiu diante dele, translúcido e sólido. A barreira refletia não apenas sua magia, mas sua determinação cega e esmagadora. Ele atacou com brutalidade, movendo o escudo com força avassaladora para tentar esmagá-la.

Lashir recuou instintivamente, seus pés movendo-se com agilidade sobre as cinzas, desviando do avanço violento.

— Não percebe que está deixando tudo para trás?! — ela gritou, contra-atacando. As lâminas de sangue endurecido cravaram-se no escudo de Mutha, com as pontas em direção ao guardião, e ainda presas aos braços dela. — Se continuar assim, Colth... você vai perder tudo.

A proteção do guardião de Anima rachou com o impacto, mas ele não cessou. Colth concentrou-se, e a magia de Mutha brilhou intensamente. Um impulso intenso explodiu da barreira, repelindo as lâminas de Lashir e forçando seus braços para trás, deixando-a momentaneamente vulnerável.

— Você não sabe nada! — Colth rugiu, avançando novamente e mantendo a pressão ofensiva.

Ele baixou o escudo e aproveitou o breve momento que a guardiã de Rubrum se encontrou indefesa. Lançou suas mãos sobre o pescoço dela e se concentrou.

Lashir não teve tempo para reagir, apenas arregalou os olhos e, quando percebeu, seu pescoço já era pressionado, não só pelas mãos de Colth, mas também pela magia que ela tanto conhecia.

— Urgh! — A guardiã de Rubrum engasgou, sua voz sufocada pelo sangue que, para seu desespero, parecia se recusar a obedecê-la agora.

— Eu já perdi tudo! — vociferou Colth, utilizando-se da magia de Rubrum para sua vantagem.

— Maldito... — Lashir conseguiu murmurar, após esforço, enquanto a dor irradiava do aperto brutal em pescoço.

O sangue, sempre uma extensão de sua vontade, agora parecia se rebelar, movendo-se contra seu corpo. Sentiu-o deslizar cruelmente pela garganta, infiltrando-se por entre os dedos e a magia de Colth, até finalmente transbordar pela boca.

A intensidade da dor era pujante. Lágrimas brilhavam em seus olhos rubi revelando a agonia física. Apesar disso, ela reuniu o que restava de sua força. Com a voz fraca, mas ainda carregada de uma teimosia esperançosa, sussurrou entre engasgos:

— Se você já perdeu tudo... então... por que ainda está lutando? Você não desistiu dessa vez, não foi?

Colth hesitou por um instante, seus olhos refletindo uma fração de dúvida. De fato, da última vez que um sentimento de perda o atingiu tão forte, ele havia abandonado tudo, até mesmo a raiva. Lashir sentiu isso, sabia disso, afinal, ela foi quem causou esse sentimento da última vez.

A guardiã de Rubrum percebeu a brecha e, ignorando a dor que atravessava seu corpo, continuou, sua voz ganhando força:

— Ninguém consegue nada sozinho, Colth. Eu entendo exatamente essa dor que você está sentindo — ela tossiu, o sangue escorrendo pelos lábios — Eu perdi a minha vida para finalmente entender isso, para finalmente abrir os olhos e ver o que estava ao meu redor... e foi você que fez isso possível. Foi você quem me deu uma segunda chance.

— Eu... — Colth murmurou, sua cabeça inclinando levemente, enquanto o semblante de raiva dava lugar a confusão e pesar.

As chamas ardentes que consumiam as construções ao redor pareceram diminuir, sem cessar. E em meio ao ruído bruto dos estalos da madeira em brasa, um som, quase melódico ressoou.

— Não foi isso que combinamos — disse uma voz feminina doce, atrás dele, evidentemente em tom desapontado.

Colth reconheceu de imediato de quem era aquela voz. Aquele som era tão reconfortante quanto surpreendente aos seus ouvidos.

— Olha para tudo isso — disse a garota, dona da voz, observando os arredores familiar enquanto caminhava em volta do guardião para se fazer visível aos olhos dele. — Que bagunça.

— Agnes... — sussurrou Colth, ao ter seus olhos preenchidos pela figura delicada da garota em seu macacão rosa.

Agnes cruzou os braços, o olhar afiado e as sobrancelhas arqueadas, prestes a dar uma bronca séria.

— Por que você ainda está segurando essa mulher, tio Colth? — perguntou ela, com uma firmeza que contrastava com sua aparência jovem. — Você prometeu que nunca usaria essa magia de absorção contra a vontade de alguém.

— Eu... eu sei, mas... — Colth desviou o olhar para Lashir. Ela estava abatida, o corpo fragilizado, mas seus olhos ainda brilhando com alguma esperança. — Eu não sei mais o que fazer... — admitiu.

Compelido pelo imediato arrependimento, Colth abriu as mãos, e a pressão sobre Lashir cessou.

A guardiã de Rubrum caiu de joelhos, os movimentos lentos enquanto suas mãos encontravam o chão coberto de cinzas. Tossindo sangue, ela recuperava o ar em respirações ofegantes, até finalmente erguer o olhar para Colth.

— Imbecil... — resmungou Lashir, limpando o sangue dos lábios com as costas da mão, a voz ainda trêmula. — Quantas pessoas moram nessa tua cabeça vazia, hein?

Colth, visivelmente arrependido, agachou-se ao lado dela, tentando oferecer apoio.

— Você está bem? Me desculpa, Lashir. — As palavras saíram apressadas, carregadas de culpa. — Eu sou mesmo um idiota.

— Disso, eu já sabia. — rebateu ela, estreitando os olhos para ele, ácida. — Até a pirralha tem mais juízo do que você.

Agnes encheu as bochechas de ar, a testa franzida em uma expressão de descontentamento.

— Ei, eu sou a voz da razão aqui! — proclamou ela.

Lashir, no entanto, a ignorou, focando-se em recuperar o controle sobre seu próprio corpo. Aceitou a mão estendida de Colth e levantou-se, os movimentos firmes apesar do cansaço.

— Você está bem? — repetiu Colth, a preocupação ainda evidente em sua voz.

— Tô bem. — Lashir respirou fundo, seu sangue recompondo seu corpo. — Tem sorte de eu ter me segurado, se não, você estaria muito ferrado.

Colth esboçou um sorriso sem graça, misturando arrependimento e alívio.

— Me desculpa... Eu... só queria ela de volta.

— Está tudo bem, Colth. Tudo bem — disse Lashir, sem mágoas, sabendo exatamente da dor que ele sentia.

Enquanto isso, os primeiros raios do sol começavam a despontar no horizonte, pintando as montanhas ao redor com tons dourados. As construções de Toesane, antes consumidas pelas chamas, agora eram apenas resquícios de brasas fumegantes, a fumaça subindo lenta e se desfazendo no vento gentil.

— Já está amanhecendo. — pronunciou Agnes, seu rosto iluminado pela luz suave da manhã. Um sorriso grandioso surgiu em seus lábios enquanto ela admirava a paisagem.

Lashir hesitou, seus olhos presos na figura da garota. A silhueta de Agnes, moldada pelo brilho do amanhecer, era quase etérea. Algo naquela visão mexia com a guardiã de Rubrum, mas também trazia perguntas incômodas. Depois de um momento de indecisão, encorajou-se, a voz cautelosa.

— É ela mesmo... ou só alguma lembrança da sua mente, Colth? —perguntou Lashir, sem desviar os olhos da garota que parecia tão serena diante do novo dia.

Colth levou os olhos para a sobrinha e depois voltou para Lashir, prestes a responder.

— Ela...

— E isso importa? — interrompeu Agnes, sua voz leve, mas convicta.

A garota respirou fundo e deixou que a luz morna banhasse seu rosto mais uma vez, enquanto a brisa balançava seus cabelos. Em seguida, se virou, seus olhos pousaram em Lashir, avaliando-a por um instante antes de abrir um sorriso, tão brilhante quanto o próprio sol as suas costas.

A guardiã de Rubrum se surpreendeu, mas disfarçou logo em seguida, tentando manter a compostura.

— Pirralha... Quer dizer, Agnes, eu preciso te falar uma coisa e... — se interrompeu, os olhos inquietos, sem se fixar aos da garota.

— Tudo bem. Pode falar. Eu estou ouvindo — respondeu Agnes, paciente.

Lashir hesitou. Seus olhos buscaram rapidamente por Colth, como se procurasse apoio, mas ele permaneceu em silêncio, respeitando aquele momento. Ela engoliu em seco e tentou disfarçar a respiração ofegante, fixando o olhar nos pés delicados da garota, que calçavam sapatos pretos simples e um tanto desgastados.

— Agnes, eu... eu sei que não mereço... e que jamais deveria pedir isso, mas... — A voz de Lashir fraquejou. Ela apertou os punhos, reunindo forças para continuar. — Eu quero que saiba que eu me arrependo de tudo. Do que fiz a você, do que te obriguei a passar. Eu jamais vou me perdoar por isso, jamais vou conseguir compensar, e todo o castigo e sofrimento não seria o suficiente.

Lashir perdeu a voz por um instante, sentindo um nó se formar em sua garganta. Ela notou os pequenos pés da garota se moverem, avançando na sua direção. Seus olhos permaneceram fixos nos sapatos pretos simples e desgastados dela, hesitando em encarar o rosto da pequena.

— Espera... — Lashir respirou fundo, sussurrou, a voz trêmula e insegura. Continuou: — Eu fui uma pessoa horrível. Por onde eu passei eu causei desgosto e desgraça. Eu causei a destruição do meu mundo, e causei a decadência do seu mundo. Envergonhei minha família e meu povo, e devastei a sua família e tudo o que você amava.

Quando Lashir se deu conta, estava com a cabeça apontada para baixo, observando os próprios pés diante dos pés da garota. Se esforçou para tentar colocar as palavras para fora, mas sem coragem para erguer os olhos.

—  Eu-eu... Eu... Se eu pudesse...

— Lashir — interrompeu Agnes, a voz doce soando como a brisa gentil na manhã. — Eu te perdoo.

Lashir ergueu o rosto, chocada.

— O quê? Por quê? — balbuciou, os olhos arregalados encontrando o sorriso puro e verdadeiro que iluminava a expressão de Agnes.

A garota respondeu de imediato. Como se estivesse esperando pela pergunta da guardiã:

— Porque eu sou egoísta.

— Hã? — Lashir congelou o rosto em confusão.

— Você ouviu. Eu sou egoísta — repetiu Agnes, dando alguns passos leves, quase saltitantes, até estar ao lado de Lashir. Apontou para o horizonte, onde o sol começava a brilhar com uma intensidade dourada que contrastava com a desolação ao redor. — Está vendo essa paisagem? Se eu pudesse, eu a pegaria só para mim. Guardaria em uma caixinha de madeira e a esconderia debaixo da minha cama.

Lashir permaneceu em silêncio, os lábios entreabertos e os olhos indecisos.

— E toda manhã — continuou Agnes, os olhos brilhando em uma alegria melancólica —, eu abriria a caixa para olhar e rever aquele momento só meu, em segredo, escondido de todo o resto. Talvez as pessoas me odiassem por deixá-las no escuro, sem o amanhecer, e só então eu perceberia que a paisagem bonita não é mais do que uma simples visão, e que a beleza nela está na companhia que observa essa paisagem com você, e nos sentimentos que você carrega após isso.

Agnes se virou para a guardiã de Rubrum, o sorriso persistente se igualando ao tom em sua voz, compaixão.

— Passei tempo demais nas suas lembranças, bruxa vermelha. Sei exatamente o que está pensando. Então, eu te perdoo.

— O quê? Não — Lashir protestou, quase engasgando com as palavras. — Eu não mereço. Não é isso que...

— Não importa o que você acha que merece. — Agnes balançou a cabeça suavemente. Voz firme, mas gentil. — Eu quero que todos que se lembrem de mim, se lembrem com um sorriso. Quero que meu nome traga alegria, não tristeza, remorso ou pena. Eu disse, eu sou egoísta.

Lashir permaneceu em silêncio, sua garganta estava apertada por uma emoção que a pegava de surpresa.

Agnes deu mais um passo à frente e, com um gesto delicado, estendeu a mão pequena, tocando de leve o braço retraído da guardiã. O toque era sutil, mas carregado de significado. A garota então declarou com uma convicção e maturidade muito maior do que sua idade aparente:

— Você acha que é difícil perdoar, mas é muito mais difícil carregar o peso de não fazer isso. Não se trata de esquecer o que aconteceu, mas sim de seguir em frente.

Lashir sentiu as lágrimas brotarem nos cantos de seus olhos, sem saber se era, de alívio, dor ou os dois somados.

Colth, que havia ficado em silêncio até então, observando a cena com o peito apertado, finalmente se pronunciou:

— Agnes... você sempre foi a melhor.

A menina voltou a atenção a ele e ergueu uma sobrancelha, o rosto delicado adquirindo uma expressão satisfeita.

— Alguém tinha que colocar ordem nessa bagunça. E claramente não seria você.

Por um momento, o silêncio pairou, mas a resposta inesperada arrancou um riso seco e incrédulo de Colth. Até mesmo Lashir esboçou um pequeno sorriso entre as lágrimas que não se desprenderam de seus olhos.

Sem hesitar mais, Colth deu alguns passos e se abaixou diante de Agnes, abraçando-a com toda a força que o peso de sua culpa e saudade permitiam. Ele a segurou como se o tempo ou a realidade pudessem roubá-la novamente a qualquer instante.

Agnes suspirou suavemente, apoiando a cabeça no ombro dele. Seu sorriso, brilhante e gentil, falava por ela.

— Como um escudo — murmurou a garota, com simplicidade.

Colth soltou uma risada curta, como se, por um instante, tivesse esquecido todo o fardo que carregava. Relutante, desfez o abraço, com os olhos voltando brilhar recuperado.

Agnes deu um passo para trás e ergueu os braços, mostrando animação.

— Certo, hora de voltar para o que importa — começou ela. — Porque, sério, no momento em que o tio Colth voltar para a realidade, ele vai levar um golpe fatal.

Colth acenou com a cabeça, admitindo, e depois desviou o olhar com um sorriso sem graça, reconhecendo a possibilidade.

— Ela tem razão — começou Lashir, recomposta, em direção a Agnes. Seus olhos, antes cheios de dor, agora brilhavam com algo mais próximo à determinação. — Não podemos enfrentar o imperador aqui. A mente do Colth ruiria ao poder.

— Vão ter que encará-lo na realidade — comentou Agnes, cruzando os braços e observando os outros dois.

Lashir deu um passo à frente, seus olhos sérios encontrando os de Colth.

— O Aldren está claramente se alimentando da energia das almas de seus seguidores, dos encapuzados. Acredito que, se ele usar essa energia contra você, Colth, sua alma será devorada e seu corpo deixará de existir.

Colth franziu o cenho, percebendo o perigo iminente. A mulher continuou, sem dar chance para ele pensar.

— Então, o mais lógico seria eu... — Lashir hesitou, mas firmou o olhar em Colth. — Dar minha alma no seu lugar.

— O quê? Não! — Colth negou, imediatamente.

— É o único jeito — insistiu Lashir, resoluta. — Minha alma será devorada, mas você estará seguro para recuar e tentar algo diferente.

— Não! — Ele deu um passo em sua direção, os olhos ardentes. — Eu vou pensar em alguma coisa! Não vou permitir que você faça isso!

A guardiã de Rubrum o encarou, surpresa pela intensidade em sua voz e pelo calor que parecia emanar dele. Ainda assim, manteve o tom desafiador ao cruzar os braços.

— E o que você sugere?

Colth respirou fundo, mantendo a calma íntegra.

— O escudo de Agnes é forte. Eu posso aguentar.

— Você não entende, Colth. Se você for pego por aquela energia...

— Lashir. — A voz dele foi grave e firme, interrompendo-a, enquanto seu olhar preenchia o dela. — Confie em mim.

Lashir sentiu as palavras a atingirem como um golpe. Sua respiração vacilou levemente, e ela se pegou desviando o olhar por um instante, como se precisasse recuperar o controle. Seu coração acelerou, misturando a seriedade da situação com algo que ela não conseguia nomear.

Após uma breve hesitação, disfarçando o rosto quente, Lashir ergueu os olhos e acenou de leve.

— Tudo bem. Eu confio.

Agnes estreitou os olhos, estranhando a reação da guardiã de Rubrum.

— Isso aí é novidade para mim — pensou alto a garota.

Colth se virou para ela, sem entender de fato as palavras.

— O que foi, Agnes, teve alguma ideia?

— Não é nada não, seu bobinho — rebateu ela, então mirou os olhos estreitos à Lashir.

A guardiã de Rubrum corou, desviou os olhos incomodados imediatamente e disfarçou.

— Não é isso que você está pensando, sua pirralha! — esbravejou Lashir.

— Hã? — Colth levou seus olhos de uma para outra, sem compreender.

E então a luz do sol ao redor se intensificou repentinamente. Lembrando-os do que estava por vir.

— Bem na hora — disse Agnes, com alguma preocupação, mas satisfeita e esperançosa.

Colth e Lashir estranharam as palavras de Agnes.

— O que você... — Colth foi interrompido.

Uma luz intensa invadiu repentinamente a visão de Colth, engolindo tudo ao seu redor. Por um breve instante, o calor parecia o de um abraço do sol, mas logo se dissipou, dando lugar à realidade brutal. Ele estava de volta ao salão no topo da fortaleza Última.

A transição foi abrupta. Colth mal teve tempo de se situar antes de ser dominado por uma sensação de perigo iminente. Sua mente ainda lutava contra a confusão quando percebeu o escudo de Agnes ao seu redor. Ele estava rachando, prestes a desmoronar sob a pressão da magia de Aldren, que mantinha as mãos erguidas, alimentando o ataque com uma energia opressora.

Então, o escudo se partiu, mas algo ainda mais inesperado aconteceu.

Uma figura surgiu à sua frente. Uma mulher, cabelos longos e negros tremulando ao vento, de costas para ele, interrompendo o ataque de Aldren.

— Garta — sussurrou Colth.

Ela havia se deslocado com agilidade impressionante, posicionando-se entre Colth e o ataque devastador que vinha em sua direção. Sua presença era a de uma verdadeira guardiã, inabalável. Em um movimento rápido e habilidoso com as palmas das mãos brilhando, a espada de Finn materializou-se ao chamado dela.

— Você é idiota, por acaso?! — gritou Garta, segurando a espada com ambas as mãos e usando a lateral da lâmina para conter a energia esmagadora que se lançava sobre eles.

O impacto era feroz. O corpo de Garta tremia com o esforço, mas ela não cedeu. Os músculos rígidos, a postura inflexível e o brilho feroz em seus olhos sustentavam a resistência contra a pressão implacável. Faíscas e resíduos de magia ricocheteavam pela lâmina e explodiam em pequenos rastros de luz ao redor deles.

— Mas como...? — sussurrou Colth novamente, a voz em incredulidade.

— Por que eu ainda me dou ao trabalho de perguntar? É óbvio que você é idiota! — retrucou Garta, a voz carregada de irritação. Suas botas escorregaram levemente sobre o piso liso devido à força do ataque.

— Eu achei que você estivesse...

Mesmo sob a pressão esmagadora, Garta desviou o olhar, apenas o suficiente para encará-lo de relance, e esboçou um sorriso de canto, desafiador e repleto de um orgulho velado.

— Até parece.



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