Volume 2

Capítulo 113: Promessa

Celina avançava pelo curto corredor, os pés descalços ecoando suavemente contra o piso de pedra polida fria, enquanto tremulava o vestido longo bege, sem adornos, exceto pelo laço azul claro que envolvia sua cintura.

O corredor era iluminado pelo brilho azulado dos cristais de Sathsai sobre pedestais ao longo da parede cinza. Celina se mantinha calma, seus olhos fixos no final do corredor, onde uma imponente porta dupla começou a se abrir lentamente. O som grave da madeira pesada movendo-se para os lados reverberou, e ela avançou.

Do outro lado, o salão pequeno, mas grandioso em sua simplicidade circular. Ao centro do lugar, um altar de pedra que parecia ter sido esculpido diretamente da própria rocha rústica, e sobre ele, uma figura feminina. Em um vestido branco, a mulher estava ajoelhada e acorrentada, com a cabeça pendida para frente, inconsciente, alheia ao ambiente sombrio que a cercava enquanto cabos se entrelaçavam por seus membros e perfuravam sua pele.

Celina se aproximou devagar, seus olhos sem vida percorrendo o cenário diante dela.

Ao redor do altar, oito figuras em túnicas pretas mantinham-se imóveis, suas respirações tão lentas e controladas que mal eram perceptíveis sob o capuz que escondia os rostos de cada um. A única pessoa sem capuz era inconfundível. Aldren, com sua presença e postura firme, destacava-se entre os oito.

Celina parou diante do altar, os olhos fixos no rosto da mulher inconsciente, Lux. Diante da Deusa maior, ela não demonstrou nenhuma reação. Aldren, por outro lado, aproximou-se dela com uma confiança plena, como se tivesse total controle sobre o que acontecia ali.

— Você está bela, como sempre — disse ele, a voz grave e carregada de uma malícia sutil. Suas palavras quebraram o silêncio da sala, mas não provocaram nenhuma reação imediata em Celina.

— Então, é realmente verdade... — sussurrou ela, fria, com os olhos preenchidos pela mulher acorrentada ao centro. — Que seja.

Aldren sorriu de canto de boca, e parou ao lado dela. Ambos frente à Lux. Então um dos encapuzados se destacou, avançou com passos medidos, a longa veste roçando o chão de pedra. Ele parou diante de Celina e Aldren, seus olhos encobertos pelas sombras do capuz que ocultava o rosto. Iniciou:

— Com a bênção da Deusa Lux, a mãe dos deuses e a mais brilhante estrela. — A voz do encapuzado reverberava como cântico ritualístico. — Hoje, neste lugar sagrado, testemunhamos a união entre o poder divino e o propósito.

Celina permanecia imóvel, seu olhar fixo na figura acorrentada de Lux. A Deusa, mesmo inconsciente, possuía uma presença sufocante. Mas Celina, fria e controlada, não se deixava afetar visivelmente. O encapuzado ergueu as mãos em direção ao altar, um gesto reverente.

— O contrato será selado — continuou ele, voltando seu olhar encoberto para Celina. — Você, guardiã de Tera, herdeira escolhida, sempre estará conosco, em nossas orações.

— Orações? — murmurou ela, escapando em um sussurro confuso.

Aldren, ao lado, manteve-se em silêncio, mas o sorriso satisfeito que curvou seus lábios dizia tudo. Para ele, aquilo era apenas mais uma formalidade. Havia se preparado para esse momento.

— Não se preocupe. O que eu te falei? Pode confiar em mim. Estaremos juntos — afirmou ele, sua voz calma, gentil, dirigindo-se a Celina e oferecendo conforto. Mas, em vez disso, suas palavras apenas intensificaram o incômodo que crescia dentro dela. Em resposta, ela se calou, uma pequena tensão começando a se manifestar em seu semblante.

Aldren se voltou para o encapuzado.

— Continue.

— Que assim seja, meu imperador. Daremos início ao novo mundo — concluiu o homem com o rosto coberto, em tom solene, antes de erguer a voz em um comando que ressoou pelo salão: — Tragam a noiva.

Celina sentiu o ar escapar de seus pulmões, como se tivesse levado um golpe forte o bastante para abalá-la. As palavras reverberaram em seus pensamentos com uma intensidade que a deixou momentaneamente paralisada. Seus olhos se arregalaram, e uma expressão de surpresa incontida brotou em seu rosto enquanto ela se virava para olhar o início do salão.

A porta dupla rangeu ao se abrir, e por ela adentrou Hikki, carregando a própria irmã desacordada em seus braços. Garta era aconchegada por Hikki, com os olhos pesados e o semblante rígido, enquanto caminhava lentamente em direção ao altar carregando-a.

O coração de Celina disparou, batendo tão forte que ela quase podia ouvi-lo. Seus olhos frenéticos saltaram de Garta para Aldren, que observava a cena com aquele mesmo sorriso satisfeito. A compreensão do que estava acontecendo caiu sobre ela como um segundo golpe.

— O que você fez com a Garta...

— Bom trabalho — disse Aldren, em direção a Hikki, interrompendo Celina. Sua voz calma.

Hikki, cabisbaixo, colocou a irmã cuidadosamente ao chão, ajeitando o corpo dela com uma delicadeza extrema.

— Como prometido — disse Hikki, sem erguer os olhos. — E a adaga que Hui encantou, também foi entregue ao alvo.

— Olha só, Hikki — começou Aldren, com um tom esnobe —, eu realmente não esperava que você fosse cumprir todas as exigências. Sua lealdade é mesmo louvável. Não matar Bertha foi só um pequeno deslize, não é mesmo? Não se preocupe, o velho vai fazer o trabalho sujo por você. Afinal, você nunca teve estômago para isso, não é?

— Tsc. — Hikki sentiu as palavras cortantes. — Faço isso pela minha irmã, e não por você.

— De qualquer forma, fico feliz que seu objetivo tenha se alinhado ao meu.

Celina, ainda atordoada pelo desenrolar rápido daquilo, tentou falar, mas sua mente estava confusa, e sua voz, vacilante.

— O que eu... Aldren... o que você está...? — Repentinamente, sentiu seu coração acelerar ainda mais. A dor pontiaguda dentro do peito. — Ahhh!

— Celina? — Aldren se virou em direção ao grito dela.

O coração da garota ardia e sua respiração falhava. Perdeu as forças em suas pernas e caiu enfraquecida. Buscava o oxigênio do ar, mas seus pulmões pareciam não se encher. Com o pouco de ar que lhe restava em meio a dor absoluta sobre o peito, tentou expressar:

—  Eu não consigo respirar... Eu não... — Parecia estar se afogando, mesmo não tendo motivos para isso. — Ahn... ahh! — gritou ela, lutando para respirar. Sua mão tremia enquanto tentava agarrar o ar ao seu redor.

— Calma, Celina — Aldren se agachou ao lado dela, colocou suas mãos nos ombros dela enquanto a voz reconfortante. — Calma, respira devagar.

— Ahhh! Tá doendo! — sussurrou em grito Celina, suas pernas ao chão.

Aldren a abraçou de fato, seu peito nas costas dela.

— Devagar, respira fundo, acompanha a minha respiração.

Ele enchia os pulmões lenta e profundamente, e ela tentava acompanhar. Aos poucos, o ritmo de sua respiração começou a se alinhar ao dele, forçando seu corpo a seguir o compasso. As dores dela, embora ainda presentes, começaram a se suavizar.

— Assim, viu? — Aldren sussurrou, ensinando uma criança assustada. — Eu estou junto de você.

Quando Celina finalmente conseguiu respirar de forma mais regular, a dor que pulsava no peito recuou. No entanto, a confusão e o medo ainda estavam lá, presente em seus olhos.

— Por quê? Por que isso aconteceu de novo? — murmurou ela, ainda de joelhos ao chão com a mão sobre o peito, tentando encontrar sentido naquilo.

— Não importa, Celina. Eu sempre estarei aqui. Não se preocupe com os detalhes. — Ele ajeitou os cabelos dela, como se fosse uma marionete frágil em suas mãos. — Tudo vai acontecer como eu disse que aconteceria. Mas, infelizmente, o corpo de Lux não aguentará ao suceder de magia. Ou seja, precisaremos de um último dadivar, um de verdade, não um simples humano, um dadivar de um guardião.

Celina piscou, sua mente ainda nebulosa, tentando entender.

— Do que você está falando? Eu não entendo — perguntou ela, ainda nos braços dele.

Aldren a segurou mais firme, aproximando-a de seu peito, seu queixo sobre o ombro esquerdo dela, em um gesto que pretendia ser reconfortante.

— Não precisa entender. Apenas confie em mim — ele murmurou, palavras suaves, mas que serviam um propósito medido. — Eu sempre cuidei de você, não cuidei? É o destino, ele sempre nos entrelaça.

Celina, ainda tonta e emocionalmente exausta, se agarrou às palavras dele. Essas palavras, que sempre trouxeram a ela um conforto, pareciam vazias, agora. Ela tentou se lembrar de todas as vezes que Aldren havia estado lá. Quando a tirou da escuridão do porão de Buregar, quando a salvou em Rasuey, quando lhe protegeu na Capital, e quando...

A voz de Aldren soou outra vez, mais íntima e envolvente. Interrompendo os pensamentos dela.

— Confie em mim.

Celina levantou os olhos lentamente, observando o mesmo sorriso que tantas vezes confundiu com afeto. Mas dessa vez, o sorriso não a confortava. Não havia o calor que imaginava antes. Algo estava errado.

Calou-se. Pensou por mais um segundo.

— Aldren, o que você acha de mim? — perguntou ela, sua voz baixa, quase imperceptível, mas com uma firmeza inesperada.

A pergunta o surpreendeu. Ele desfez o abraço, se afastando ligeiramente para encará-la, a sobrancelha arqueada de curiosidade.

— Por que isso agora, Celina? Do nada?

Ela o olhou diretamente, sem qualquer emoção visível, como se estivesse tentando enxergar através dele, ver o que realmente havia ali.

— Qual é a sua opinião sobre mim? — repetiu.

Aldren sorriu, ainda um tanto surpreso pela indagação inesperada.

— Eu te amo, Celina — disse ele, seu sorriso se alargando, tentando manter a situação sob controle.

Ela desviou os olhos sem mover a cabeça, sem ser impactada ou demonstrar qualquer emoção quanto àquilo.

— ...

— Você também me ama, não é? — perguntou ele, insistindo.

— Amo — respondeu ela, seca. — Mas não era disso que eu estava falando. O que você gosta em mim?

Fixou os olhos nele, novamente.

— Bom — Aldren começou, relaxando um pouco e ajustando o tom —, eu gosto de como você é inteligente. Amo o seu jeito sério e como você é toda regrada e comportada. Você nunca consegue mentir, e sempre parece confusa com os seus sentimentos. Eu acho isso encantador.

Celina o escutou em silêncio, mas as palavras não mais a tocavam. No fundo, ela já sabia a resposta que estava buscando.

— E mesmo assim, vai me fazer de sacrifício.

Aldren se levantou lentamente, a calma de sua voz minimamente abalada.

— Celina — ele disse, suave, mas incisivo. — Não seja leviana. Eu vou sentir muito a sua falta. É um sacrifício meu também.

Ela baixou a cabeça, talvez lamentando.

— Eu não te reconheço — sussurrou, enquanto se levantava. Pela primeira vez, parecia mais firme.

— Como? — Aldren não entendeu de todo as palavras dela, mas mesmo assim ficou visivelmente desconfortável com a mudança de tom.

— Eu não sou a mesma de antes, sabia? — disse ela, sem mostrar os olhos que miravam o chão. — Percebi que eu não sou tão inteligente, que eu só conhecia o mundo pequeno de dentro da minha cela. Percebi que eu gosto de sorrir, desde que as pessoas ao meu redor estejam sorrindo. Eu não gosto mais tanto das regras, na verdade, eu prometi que não aceitaria mais o destino imposto pelos outros sobre mim. E eu me esforço muito para não me confundir com os meus próprios sentimentos, mesmo que as vezes eu tropece nisso ainda.

Ela respirou fundo, levantando o olhar diretamente para Aldren. Seus olhos, antes submissos, agora carregavam clareza, finalmente decididos, encarando-o sem hesitação.

— E por fim, Aldren... eu não falo mais só a verdade. Eu não te amo.

O sorriso dele desapareceu por um momento, apenas para ser substituído por um riso amargo.

— Hahaha, Celina... você está confusa. Está cansada, é só isso...

— Não, Aldren. Eu não vou ser parte do seu sacrifício, independente para qual fim. Deixa a Garta ir, agora.

A voz de Celina saiu firme, implacável. Cada palavra derrubando a manipulação que Aldren havia erguido ao redor dela.

Ele a encarou, com intensa frustração nos olhos. Sua voz, antes calma, começou a perder a suavidade.

— Celina, você não está pensando direito. Você já não pode mais receber a magia de Lux, sabe disso. De nada serviria o nosso casamento. Seu corpo já foi...

— Não é nada disso! — Ela o interrompeu com um berro. — Eu não estou falando de casamento, Aldren. Não dou a mínima para com quem você vai se casar. Me refiro ao dadivar.

— Esse é o único jeito. Se não for o seu sacrifício, será o de outra pessoa, talvez o da Garta. É isso o que você quer?! Quer sacrificar uma amiga sua?!

Ele usou o tom em chantagem, tentando retomar o controle. Mas Celina não era mais a mesma.

— O quê? — indagou Hikki, ao fundo. Foi completamente ignorado.

— Você nunca disse nada sobre sacrifício ou dadivar. Você tentou esconder isso de mim. Jamais apoiaria isso, se eu soubesse — ela respondeu, firme e convicta. Perseverando para que suas palavras alcançassem o antigo amigo. — Eu já disse, vou fazer o meu próprio destino, e ele não incluí um dadivar. Não concordo com isso, e espero que você entenda.

Aldren se manteve em silêncio por um breve momento, seus olhos se estreitando com uma fúria contida enquanto observava Celina. Seu sorriso havia desaparecido por completo, dando lugar a uma expressão amarga.

— Espera que eu entenda? — repetiu ele, calmo. — Eu entendo. Eu entendo.

— Que bom que entendeu. Acho que você confundiu as coisas. Eu jamais iria sacrificar a minha vida ou a vida de outra pessoa por um mundo novo e...

— Não importa o que você acha, Celina — Aldren interrompeu, a voz fria sem remorso. Surpreendendo Celina. — Isso vai acontecer. Pelo bem de todos. Pelo bem do nosso novo mundo. É a única forma.

Mesmo enquanto falava, Aldren parecia estar tentando convencer a si mesmo tanto quanto a ela.

— Continuem — ordenou ele, acenando para os encapuzados ao redor.

Os homens encapuzados não hesitaram. Quatro deles ergueram as mãos ao redor do altar da Deusa Lux. E gritaram com todo o ar dos pulmões.

— Se faça o sacrifício!!! Se faça o dadivar!!!

Celina deu um passo para trás, impactada pela definição de Aldren. Não esperava que ele fosse realmente avançar com aquilo. Seus pensamentos abalados foram interrompidos quando a deusa Lux gritou.

— Ahhh!!! — Em absoluta dor, a bela mulher de branco sobre o altar se estremeceu em agonia e apontou os olhos para o teto do salão.

— Se faça o sacrifício!!! Se faça o dadivar!!! — continuaram os quatro encapuzados.

A Deusa agonizou mais, e então cintilou, como se entrasse em combustão, seu corpo emanou uma luz branca em direção ao céu. Mas não era só luz, era pura magia, arrebentou o telhado e subiu pelo céu noturno.

Impactada pela visão que chegava a ser magnifica, Celina não percebeu os outros três últimos encapuzados lhe cercando. Agarraram seus braços e ombros com força, enquanto ela tentava, inutilmente, se desvencilhar.

— Não! — gritou Celina, lutando com todas as forças. Seu corpo tenso e o rosto distorcido em dor e frustração. — Para com isso, Aldren!

Celina tentou se concentrar na sua magia de tempo, tentando manipular os segundos, buscando uma saída. Mas não foi o suficiente.

Aldren a observava, com olhos superiores.

— Sua magia não serve para combate, e você sabe disso — disse ele, com alguma coisa lhe incomodando. — Então porquê? Por que ainda tenta usá-la? Você não era assim, Celina. Não era tola. Não era dramática, como uma garotinha... O que fizeram com você?

— Por favor, Aldren! — Ela se debatia inutilmente em meio aos três pares de mãos lhe agarrando.

— Você não entende a situação! — esbravejou. — Não vê, que é simples?!

Aldren coçou a cabeça com ambas as mãos, aborrecido, agressivo.

— Eu deixei você estudar os livros, Celina! — exclamou ele, ecoando em fervor. — Não vê que essa é a melhor alternativa para todos?! Você mesma disse que não via mais motivos para viver, esqueceu? Então, por que não me deixa usá-la para algo nobre?!

— Não, Aldren, você está errado. Isso foi antes. Eu quero viver e...

— Para! Para com isso! — gritou ele. Negando em gesto com a cabeça. — Eu não sei o que fizeram com você, mas você não é egoísta, Celina. Você é minha.

— O quê? — estranhou ela. Finalmente entendendo. Deixou escapar suas emoções sobre aquilo e entristeceu-se, encarando o vestígio de pessoa que um dia ele foi. Sussurrou: — Você é maluco...

— Pare de me olhar assim!

Aldren interrompeu ao ver o olhar da guardiã. Ela o encarava com desapontamento e compaixão, e isso o enfurecia. Seu rosto, que minutos antes era controlado e frio, se torceu em uma expressão de raiva crescente.

— Pare de me olhar assim! — repetiu ele, em gritos que ecoaram pelo salão. — Com essa pena! Eu estou fazendo isso pelo bem de todos!

Celina, ainda presa pelos encapuzados, sentia a dor e a frustração se acumularem dentro de si. Não era apenas a força física que a oprimia, mas a sensação de não poder fazer nada por aquele homem que, por tanto tempo, ela acreditou que se importava com ela.

— Aldren... — sussurrou a guardiã, os olhos já úmidos de lágrimas que ela se recusava a deixar cair. — Isso... isso não é pelo bem de ninguém.

Aldren cerrou os dentes, amargo.

— Acha que pode me julgar? — Ele caminhou em direção a ela, os olhos ardendo em raiva e os passos pesados. — Não me importa mais o que você acha ou sente. Eu vou terminar isso, e você será o meu sacrifício. Esse mundo novo vai nascer!

Ele ergueu as mãos e avançou em direção ao pescoço de Celina. Ela, ainda presa e indefesa, sentiu o pânico crescer conforme seus braços eram imobilizados com mais força e os dedos de Aldren cercavam seu pescoço.

— Argh! — tentou gritar em súplica, mas a voz ficou presa entre os dedos de Aldren.

O imperador apertava com mais força, seus dedos se afundando à carne frágil dela. Celina enxergava o reflexo do próprio rosto em expressão de dor nos olhos dele, dilatados pela fúria cega.

— Aldren... — sua voz mal conseguiu escapar, rouca e quebrada pela pressão em sua garganta, assim como seu corpo completamente seguro pelos encapuzados.

— Eu não... posso... falhar... — murmurou Aldren, seu aperto vacilando por um segundo.

As palavras dele soaram como se tentasse se convencer de que estava fazendo a coisa certa, mas havia uma hesitação, algo que o corroía.

Celina sentiu esse momento de fraqueza, um vislumbre da pessoa que Aldren havia sido, mas foi apenas uma breve abertura. O aperto logo voltou, e a frustração dela somado com a impotência e a dor transbordaram em lágrimas silenciosas.

— Aldren...

— Eu não vou falhar — afirmou ele.

— Se faça o sacrifício! Se faça o dadivar! — os encapuzados ao redor do altar repetiam em uníssono.

Celina sentia o peso das palavras deles, como se fossem um comando que arranhava, talhava e gravava sua alma de algum modo. Seus olhos se fecharam.

“Minha promessa não é vazia, como a dele, senhorita Celina.” Ela não ouviu, mas sentiu aquelas palavras.

Surgindo entre as sombras, algo pequeno e quase imperceptível pulou em direção ao grupo, e revelou-se. Apesar de ser uma criatura de tamanho insignificante, tinha uma lealdade imensa.

Com um movimento ágil, a criatura lançou-se sobre Aldren, mirando diretamente em seu rosto. A surpresa fez o imperador recuar por um instante, e sua mão escorregou do pescoço de Celina. Ela respirou fundo, seus pulmões finalmente recebendo o ar que lhe fora negado, enquanto seus olhos entreabertos captavam a figura da pequena criatura, determinada e feroz.

— Koza... — murmurou Celina, surpresa e grata.

Aldren, claramente perturbado, levou a mão ao rosto, onde sentia o impacto do golpe inesperado.

Koza não recuou. Em um movimento ágil, ele saltou de um lado para o outro, desviando dos olhos de Aldren até acertar em cheio o queixo do homem.

Aldren foi jogado para trás, e por pouco não caiu ao chão, fazendo-o cambalear.

— Desculpe por desobedecer suas ordens, senhorita — declarou Koza, com um brilho de orgulho em seus olhos ao encarar Celina. — Mas eu vou continuar te acompanhando. Você não achou que se livraria de mim tão facilmente, não é?

— Koza... — Ela sorriu aliviada. Em seguida sentiu o arrependimento de suas últimas palavras a ele. — Me desculpa por antes e...

— Não precisa pedir desculpas, senhorita. Só vai precisar pagar um jantar bem caro pra mim, depois que isso acabar. — Koza a interrompeu, com os olhos resolvidos e um sorriso bem-humorado.

Celina respondeu em reflexo a feição dele, um sorriso.

— Agora — Koza continuou determinado —, eu vou dar uma surra nesse tal imperador. E vamos sair daqui juntos...

Aldren, ainda desnorteado pela interferência, tentava recuperar sua compostura. Ele fixou seu olhar na criatura, sua expressão em fúria e desprezo. Apontou a palma da mão na direção de Koza e, o interrompendo, vociferou:

— Morra, criatura.

Koza sentiu algo estranho no ar, uma força avassaladora que jamais imaginaria vir de Aldren, uma pessoa comum, que não era deus, guardião ou emissário. Alguém que ele julgava ser nada além de humano. Ele se virou, confuso, enquanto uma energia massiva convergia na sua direção.

— O quê? — murmurou Koza, perplexo. Não era possível que Aldren concentrasse tanto poder assim. Afinal, até um segundo atrás, não havia indícios de magia alguma que pudesse preocupá-lo, mas, de repente...

— Cuidado, Koza! — Celina gritou, com urgência.

O silêncio se fez, visceral.

Uma quietação absoluta caiu sobre o salão. No chão de mármore frio, onde antes Koza estivera, agora restava apenas uma poça espessa e vermelha que escorria lentamente.

Celina ficou imóvel. Sua mente incapaz de processar o que havia visto. Os olhos fixos na mancha desformem de sangue e carne, seu peito congelado, e até mesmo o seu respirar desapareceu por um instante. As palavras ficaram presas em sua garganta, transformadas em um nó de espanto.

— ...

— Finalmente. Eu encontrei a praga que estava passeando pela fortaleza — disse Aldren com despreocupação, passando a mão pelo próprio ombro, como se tivesse removido um incômodo trivial.

Ao lado de Celina, um dos encapuzados que a seguravam estremeceu e caiu de joelhos, soltando um último gemido antes de tombar, sem vida, sobre o mármore. Os outros dois mantinham suas mãos firmes em Celina, mas ela não oferecia resistência, não moveu um músculo sequer.

— Koza... — sussurrou ela, quase inaudível, ainda processando.

Aldren caminhou calmamente, passou sobre a mancha de sangue e carne, como se fosse apenas uma sombra, em direção à Celina. Ela, por sua vez, estava paralisada, olhos fixos naquela mancha, sem entender, sem acreditar.

Ele parou por um momento, distraído, como se algo o perturbasse. Com atenção nas vozes que atingiam sua mente.

“Por que está demorando tanto? O que foi que aconteceu aí, em? Senti a perda de um dos esquisitões.” Reverberou na mente do imperador.

Aldren lançou um breve olhar ao corpo inerte do encapuzado, sem um pingo de remorso.

— Foi necessário — murmurou ele, baixando o olhar para o chão manchado em vermelho sob seus pés. — Mas o contratempo já foi superado.

“Então é melhor se apressar. Já não sinto a presença do velho, e...”

O imperador estranhou a interrupção abrupta nas vozes que chegavam à sua mente.

— Hui? — não obteve resposta. — Ah, esse sujeito é muito problemático.

Recobrando o foco, Aldren voltou a se concentrar na figura à sua frente. Celina continuava paralisada, os olhos ainda arregalados, recusando-se a aceitar o que estava diante dela. A mancha de sangue, o silêncio mórbido, a ausência de Koza.

— Muito bem, Celina. Vamos acabar com isso — disse Aldren, aproximando-se dela com um olhar decidido, indiferente ao sofrimento que havia causado.



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