Volume 2

Capítulo 112: Entre Dois Céus

O cheiro metálico da magia transformada, misturada à tristeza, envolvia todos. Goro e Beca continuaram com a atenção voltada ao Gerente, enquanto os outros tentavam socorrer Liana. Eles não cometeriam o mesmo erro duas vezes, e dessa vez estavam atentos ao velho inconsciente ao chão com a mochila.

— Esse cara ficou insano... — sussurrou Beca, após ver o brilho único que a sua ferramenta, a mochila transformadora de magia, reluzia em exaustão nas costas de Edgar. Ela continuou em preocupação: — Ele usou a fluxie além do limite.

Ao lado dela, Goro permanecia tenso, tentando compreender a gravidade da situação. Seus olhos seguiam de Edgar para a engenheira, buscando respostas.

— Mas esse era o objetivo, certo? Está tudo bem agora, não? — perguntou Goro, confuso, mas ao ver o olhar preocupado de Beca, o nervosismo começou a tomar conta dele.

Beca respirou fundo, as palavras saindo com dificuldade pela preocupação que pesava sobre ela.

— Eu não sei... — admitiu, sua voz falhando levemente. — A fluxie era só um protótipo. Nunca foi usada até esse ponto... até esse nível de sobreaquecimento. O Gerente estava desesperado quando forçou isso.

— Tá, tá, que seja — interrompeu Goro, com impaciência. — Mas o que pode acontecer? Você inventou isso, deve ter uma ideia.

Beca olhou para a mochila e mordeu o lábio, hesitante.

— Na melhor das hipóteses — ela começou, sua voz sem entusiasmo —, o calor vai queimar a válvula retentora de energia primeiro, antes de afetar os cristais de Sathsai... mas isso só se a câmara transformadora abrir antes. A probabilidade disso é mínima. Uma em cem, eu diria.

Com o rosto completamente congelado, sem entender a maioria das palavras da engenheira, Goro se apegou ao que conseguiu decifrar:

— Possibilidade pequena? Então, qual seria a maior possiblidade?

— A temperatura do cristal vai atingir o nível crítico antes que a câmara de transformação se rompa...

Ela parou, os olhos arregalados e cheios de pavor ao perceber a realidade da situação. O silêncio que seguiu suas palavras fez Goro sentir um calafrio.

— Ei, espertinha? — Goro tentou aliviar o clima, mas sua voz estava tensa. — Eu já entendi que você é inteligente, mas vai direto ao ponto.

Beca não se mexeu, seus olhos permaneciam fixos na mochila, mas suas palavras saíram rápidas, quase em pânico:

— Precisamos sair daqui. Agora.

Goro engoliu seco, entendendo a gravidade só de ver a expressão de Beca. Ele se virou bruscamente, preparado para gritar aos outros e alertá-los. Mas ao olhar para frente, suas palavras morreram em sua garganta.

Colth estava caminhando, passo firme, em direção ao corpo de Edgar. A expressão dele era determinada, como se já tivesse decidido o que fazer.

— O que você... — surpreendeu-se Goro.

— Colth, não se aproxime da fluxie! Ela pode explodir em magia a qualquer momento — Beca gritou, sua voz evidenciando o perigo iminente.

Colth, ignorando os alertas, continuou. Seu olhar fixo na mochila incandescente, nada mais ao redor parecia importar.

— Merda, Colth... — Goro sussurrou para si mesmo, já entendendo que seu amigo estava prestes a arriscar tudo.

O ar ao redor deles pareceu parar por um instante, como a calma antes da tempestade.

O aproximar de Colth à mochila fluxie foi como derramar uma enxurrada em um copo já transbordando. O metal incandescente, à beira do colapso, reagiu imediatamente à presença dele e de Lashir. A energia descontrolada que se agitava dentro da fluxie pareceu reconhecer a magia do guardião de Anima, mas ao invés de se acalmar, ela se multiplicou, faminta. Um brilho pulsante emergiu da mochila, distorcendo o ar ao seu redor, como se a realidade estivesse sendo dobrada e esticada, incapaz de suportar a pressão crescente.

Colth sentiu seu corpo ser consumido por ondas de poder. Era como se estivesse mergulhado em um mar revolto de magia bruta, onde o poder e a dor intensa tentavam tomar o controle de seus sentidos.

"Colth, a magia está fora de controle! Não vamos conseguir conter!" Lashir gritou o aviso em sua mente.

— Essa é a nossa única chance! — rebateu Colth, sua voz ofegante, mas firme.

Cada passo que ele dava era uma batalha contra a força sufocante do calor, mas Colth manteve os olhos fixos no metal vermelho incandescente à sua frente, determinado a não desviar. Suas mãos tremiam, seu rosto escorria suor e, mesmo assim, ele não hesitava.

Beca gritou algo mais atrás dele, mas suas palavras foram abafadas pelo rugido crescente da energia. Colth estendeu a mão em meio ao calor insuportável, mal conseguindo suportar a proximidade.

Quando seus dedos trêmulos finalmente tocaram o metal fervente da mochila, a dor foi instantânea e esmagadora, a ardência parecia derreter sua pele e queimar o sangue de suas veias. Um grito se formou em sua garganta.

— Ahhh!!!

A palma da mão de Colth brilhou com uma luz ofuscante enquanto direcionava a energia descontrolada da fluxie. Era uma sensação como nenhuma outra, uma força primordial e indomável, pura magia, tentando destruir tudo à sua volta.

O brilho ao redor da mochila se intensificou de forma violenta e a magia, na sua forma mais pura, começou a vazar pelas pequenas fissuras entre as placas de metal. O chão tremeu enquanto um raio de luz, maior que todos os outros, fugiu e se estendeu até o céu, em cores vívidas avermelhadas quase alcançando um laranja profundo.

— Ahhh!!! — Colth continuava com as dores pelo corpo todo.

“Aguenta firme!” Lashir exclamou em sua mente, em uma constante concentração para curar Colth e mantê-lo vivo.

— Ahhh!!! — O grito de Colth reverberava no ar, quase ininterrupto. Sua pele era curada apenas para, no instante seguinte, ser queimada viva pelo calor esmagador que o envolvia novamente.

O poder de cura de Lashir era mais que providencial, mas não diminuía em nada o sofrimento do guardião de Anima.

Ele precisava transformar, canalizar a energia, para outra forma. Usar o poder dos cristais antes que eles explodissem e aproveitar a capacidade de alteração que a ferramenta fluxie possuía.

Colth cerrava os dentes, os músculos rígidos de dor, o corpo em chamas, o queimando vivo. O calor avassalador devorava sua carne, mas logo em seguida Lashir costurava seus ferimentos com a magia de Rubrum. Cada nova onda de cura era acompanhada por uma nova onda de dor. O alívio momentâneo era cruelmente passageiro, sendo seguido pelo sofrimento extremo das chamas.

“Não vou perder mais ninguém que confie em mim! Não ouse morrer!!!” — Lashir gritou em sua mente, em um esforço absurdo que demandava tudo dela, para manter a magia de cura contínua.

Colth sabia que, sem ela, já teria sido consumido. E, com esse sacrifício em seus pensamentos, ele se focou em um único objetivo, ignorando a dor avassaladora, ignorando a tentação de desistir.

Se concentrou em sua magia e em como moldá-la.

A energia contida na fluxie, que antes parecia caótica e à beira de explodir, começou a se reorganizar sob sua vontade.

— Eu disse... — Colth murmurou com esforço, seus lábios tremendo e os músculos tensos. — ...não vai ser em vão.

Um lampejo de luz ofuscante brilhou quando ele finalmente controlou a energia e a canalizou. Uma onda de poder saiu em espirais e então, subitamente, convergiu em um ponto alto no ar à sua frente.

A magia tomou forma, brilhante e deslumbrante. Uma explosão de cores reluziu enquanto o céu parecia ser rasgado. As cores do cristal de Sathsai começaram a brilhar em apenas uma direção, cortando a barreira entre os mundos.

Colth se concentrou mais, deixando a sua segurança e o resto das preocupações por conta de Lashir. O rasgo no céu cresceu uniforme em um vórtice de luz pulsante, irradiando magia em ondas, criando uma passagem entre mundos enquanto o calor que consumia o corpo do guardião se dissipava.

Beca deu um passo à frente, os olhos para o alto arregalados de espanto.

— Um portal... Ele abriu um portal? Isso é... gigantesco!

Diante dos olhos de todos, o portal se expandia com uma grandiosidade magistral. Suas bordas em energia pura emanando um brilho único para conectar os mundos. Colth finalmente reconheceu, em meio a visão deslumbrante, o que procurava.

Tera.

Dentro daquele mundo ensolarado, a silhueta da fortaleza voadora surgiu no horizonte do outro lado do portal, flutuando graciosamente sobre um oceano de nuvens douradas, seu tamanho monumental contrastando com a delicadeza dos raios solares que a envolviam.

Colth soube naquele momento que havia conseguido.

A energia ao redor ainda pulsava violentamente, mas ele sentia o poder agora sob controle, fluindo entre os mundos. Uma conexão estava feita. O caminho para Tera estava aberto.

Lashir sussurrou cansada em sua mente, não mais em tom de crítica ou preocupação, mas em admiração silenciosa:

"Você conseguiu... o portal está aberto."

Colth respirou fundo, agradecido por estar vivo e sem nenhum arranhão. Suas mãos ainda tremendo pela concentração de sua magia que era imediatamente transformada para se adequar as regras da magia de Finn.

Então, a fortaleza voadora de Nox começou a atravessar o portal, deixando o céu ensolarado de Tera e adentrando na escuridão da noite de Finn com uma imponência esmagadora.

— Tá brincando!? — Goro exclamou, o coração acelerado, os olhos fixos na ilha flutuante que agora dominava o céu. A fortaleza, gigantesca, parecia desafiar qualquer senso.

Iara, que mal havia piscado desde o começo, sussurrou incrédula:
— Isso é real? Como...

A fortaleza flutuou completamente para dentro do mundo de Finn, lançando uma sombra vasta e impressionante sobre a vila, enquanto o portal, com um último suspiro de luz, se fechava atrás dela. O silêncio que se seguiu era nítido.

Exausto, Colth finalmente permitiu que seu corpo cedesse. Ele se deixou cair no chão de pedras da rua, deitando-se de costas, encarando o céu que agora era ocupado pela silhueta colossal da fortaleza. Um sorriso cansado, mas satisfeito, curvou seus lábios. Ao seu lado, o que restou da fluxie, apenas sucata de metal.

— Então, esse era o reforço? — Iara perguntou, ainda boquiaberta, seus olhos fixos na estrutura massiva acima.

— Esse tal imperador, está muito ferrado — comentou Goro, também impressionado.

— Isso não é justo! — Beca esbravejou, indignada. — Passei anos aprimorando minha embarcação para ganhar os céus... e aí surge isso, uma coisa desse tamanho voando como se fosse fácil?!

Goro e Iara trocaram olhares ao ouvirem os protestos exasperados da pequena engenheira. A frustração inesperada de Beca trouxe uma leveza que ambos precisavam naquele momento, e um sorriso se formou em seus rostos, compartilhando o alívio temporário.

— Não é justo! — Beca repetia, indignada, olhando para a majestosa fortaleza voadora de Nox. As luzes acesas em suas janelas pareciam estrelas flutuando pelo céu, refletindo-se nos olhos perplexos de todos. A grandiosidade da estrutura contrastava com a tranquilidade do céu noturno de Finn, iluminado pelas lâmpadas douradas que formavam um rastro luminoso conforme a fortaleza avançava lenta.

Enquanto os outros se maravilhavam, Colth permaneceu deitado nas pedras frias da rua, absorvendo cada segundo do sucesso.

“Acho que, com isso, nós igualamos as forças com o imperador.” Disse Lashir, ecoando na mente do guardião.

— Quem sabe… — Colth respondeu com serenidade, sua respiração se acalmando. Ele delineou um sorriso tranquilo nos lábios, que refletia tanto a satisfação quanto o cansaço que sentia. — De qualquer forma, obrigado, Lashir.

“Me agradecer? Quanta idiotice. Eu só fiz isso porque, se você morresse, eu também morreria. Não esqueça, minha existência depende da sua vida. Até que eu consiga arrumar um jeito de me desvencilhar disso, esse será o único jeito.”

— Eu entendo. — Colth suspirou profundamente, um sorriso suave persistindo em seu rosto. Havia algo de reconfortante na irritação de Lashir.

“Por que está sorrindo enquanto diz isso?” Lashir perguntou, irritada.

Colth fechou os olhos por um momento, como se estivesse tentando gravar aquela sensação de alívio e tranquilidade em sua mente. Sabia que poderia ser o último.

— Lashir — ele começou com mais seriedade —, daqui em diante, vou arriscar minha vida para encontrar e proteger a Celina. Então, por favor, continue fazendo o melhor para se manter viva também.

“Ah, vocês homens... sempre covardes. Faz uma declaração a outra mulher e ainda me pede uma ajuda velada para protegê-lo em torno disso. Você sabe mesmo como amarrar as coisas.” Rebateu Lashir com o tom descontente, mas concedente.

Colth sorriu mais uma vez, aproveitando, ainda deitado, enquanto seus olhos seguiam a fortaleza a se mover majestosamente pelo céu. Ele sentiu uma estranha paz tomando conta de si, até que uma sombra se projetou sobre seu corpo e uma mão forte se estendeu à sua frente.

— Achei que não me chamaria mais — disse uma voz grave e inconfundível. — Fiquei até preocupado de você ter lidado com tudo isso sozinho, e feito eu me preparar à toa.

A mão estendida pertencia a um homem imenso, sua silhueta eclipsando a luz das janelas da fortaleza ao fundo. Colth aceitou a mão e, com a ajuda, se ergueu. Em pé, ainda precisou levantar o olhar para encarar o enorme guardião de rosto bravio e sorriso largo à sua frente.

— Obrigado por vir, Mon — respondeu Colth, orgulhoso de sua escolha enquanto ainda de mãos dadas com o homem.

— O povo de Nox jamais deixaria um amigo na mão, especialmente um herói do nosso mundo — respondeu Mon, com convicção. Ele soltou o aperto de mão e finalizou com determinação: — A fortaleza está pronta, meus guerreiros a postos. Me diga o que fazer, e derrotaremos o inimigo juntos.



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