Volume 2
Capítulo 109: No Olho da Tempestade
Ela abriu os olhos e viu o céu escuro em meio a fumaça negra que o impregnava. Tossiu o gosto azedo acre antes de piscar forte os olhos e ouvir o seu nome soar em uma voz conhecida.
— Beca! Você está bem? — disse Liana, preocupada.
Ela rapidamente agiu para ajudar Beca deitada sobre o calçamento no meio da rua a se sentar e se recuperar de suas tosses afogadas em fumaça.
— Onde-onde está aquele imbecil do Hikki?! — perguntou a inventora em meio a recuperação do fôlego cheio de raiva enquanto tentava se levantar.
— Calma, não podemos fazer nada agora...
— Onde aquele traidor está? — Beca repetiu o tom.
Liana sinalizou negativamente com a cabeça e perdeu os olhos no céu distante. O que parecia um par de estrelas mais brilhante do que qualquer outra, se movimentava e esclarecia do que se tratava.
— Não, eles não tiveram essa audácia — Beca pareceu ainda mais enfurecida ao ver a máquina voadora se afastando. Seus olhos ígneos e a respiração quase um rosnado. — Usaram a minha Pluma Radiante contra mim.
— Pluma o quê? — estranhou Liana.
— Minha embarcação voadora, minha criação perfeita. Eu vou matar ele! Não bastava ser um traidor?!
Liana se surpreendeu minimamente com o tom exagerado dela sobre aquilo, mas logo tentou expor o ponto chave da questão:
— Isso não é nada. Eles levaram a Garta e...
Antes que pudesse finalizar, um estrondo, que veio de mais adiante na rua, chamou a atenção das duas.
E lá estavam, Colth e Iara se uniam a Goro e Jorge, juntos frente ao velho e convencido Edgar. Beca não se segurou ao ver o aparato, criado por ela própria, acoplado nas costas do inimigo. Disse com o mesmo anseio de antes:
— O velho Gerente está com a minha mochila fluxie...
O cheiro de cinzas e madeira queimada se destacavam no ar. As chamas que haviam engolido o prédio da oficina de Beca, começavam a atingir e crepitavam as bordas das construções ao redor. A luz intensa tremulante servia como holofotes para o que estava por vir ao centro da rua.
Goro, com o rosto suado e os músculos cansados, esboçou um sorriso sarcástico ao perceber a chegada dos aliados ao seu lado. Ele disse, com um tom de ironia: — Vocês dois demoraram.
Iara não deixou a provocação passar em branco. Com sua habitual sinceridade, respondeu, um pouco amargurada: — Se vocês tivessem chegado antes, a Garta estaria a salva.
Colth, ao lado dela, parecia visivelmente irritado. Ele se voltou para Iara em frustração: — Como pode dizer isso? Eu te salvei da morte, duas vezes, em menos de dois dias.
Goro cantarolou sarcástico, sem surpresa na voz: — Então você voltou mesmo, Colth. — Em tom de deboche, acrescentou: — Que pena, vou sentir saudades da Lashir, eu estava me dando tão bem com a bruxa assassina.
Jorge, que parecia carregar o peso de uma culpa, se manifestou interrompendo:
— Me desculpa, Colth — se expôs Jorge, interrompendo. — Eu não sabia que a adaga de Sathsai estava imbuída com um selo de Anima. Hikki me enganou direitinho, e eu caí como um idiota.
Colth, com um suspiro, acenou com a cabeça, tentando aliviar a culpa do amigo: — Não se preocupe, Jorge. Sei que não foi sua culpa. Mas tivemos sorte de a Lashir estar do nosso lado.
Goro, no entanto, não estava disposto a perdoar tão facilmente. Com um olhar severo, disse:
— Pode dizer para ela que eu não vou agradecer. Temos muito o que conversar, não vou esquecer o que ela nos fez. E pode dizer isso para ela, não se ache a heroína.
Colth manteve o tom sincero, mas com uma pitada de bom humor: — Ela está ouvindo.
Goro o olhou com uma mistura de descrença e julgamento, murmurando: — Que bizarro.
— Isso não importa agora — disse Colth, antes de voltar os seus olhos ao velho mais adiante, e expor a pergunta que o incomodava: — E como vamos passar pelo Edgar?
O vento soprou e as chamas se atiçaram.
— Pronto? Já acabaram? — perguntou o próprio Edgar, sendo alvo dos olhares, sereno com o rosto invocando o seu nobre pretensiosismo.
— Ahn? — desdenhou Goro. — Você ainda está aqui? Não vai fugir, velhote? Agora são quatro contra você. É melhor você pegar essa sua mochila e dar o fora daqui!
Edgar manteve-se plácido. Olhos frios, contrastando com o fogo que extinguia suas sombras, e lábios performando uma expressão que poderia ser considerado um sorriso ou uma soberba silenciosa.
— É — Jorge incomodou-se em preocupação —, acho que é melhor não provocar o Gerente.
— Ele tem razão, Goro — concordou Colth, aconselhou no mesmo sentido: — Edgar não é apenas o que aparenta.
Goro revirou os olhos e sorriu ostensivo:
— Deixem de serem medrosos. Esse velho não vai ser problema algum agora que...
A luz do outro lado da rua, onde Edgar se encontrava, aumentou exponencialmente. Um clarão seguido por um barulho ensurdecedor. Goro protegeu os olhos e surpreendido, demorou para acreditar:
— Puta merda...
O clarão que iluminou mais do que o próprio fogo foi seguido por uma distorção no ar, devido uma energia cintilante e instável. Edgar ergueu uma das mãos e, com um gesto quase casual, rasgou o espaço ao seu lado, abrindo um portal negro que pulsava com um brilho púrpura. Do interior, surgiram criaturas grotescas. Quatro seres alados, com corpos deformados que misturavam traços de morcegos e humanos em uma visão deturpada.
As criaturas tinham asas largas e cobertas de veias, e a cada batida ecoavam um som úmido e desagradável. Seus rostos eram bestiais, com olhos avermelhados e focinhos achatados repletos de dentes afiados que se sobressaiam em suas bocas largas. Garras longas desprendiam-se das pontas de seus dedos finos, preparados para apenas dilacerar. A pele rugosa refletia o brilho das chamas ao redor, e um cheiro nojento, como o de carne apodrecida, surgiu no ar.
O grupo recuou instintivamente. Goro, retirou a sua confiança do rosto e foi tomado por um arrepio ao ver as criaturas. Ele cerrou os dentes e murmurou frustrado para si mesmo:
— Caramba! De onde surgiu isso?
— São criaturas sobreviventes do mundo de Anima — alertou Colth, se lembrando daqueles seres e do que fora lhe dito na fortaleza de Nox. — Eles são como parasitas, sugam energia mágica e força vital!
— Além disso, parecem famintos — Jorge completou, enquanto entregava a lâmina de Sathsai a Colth, sua expressão preocupada e tensa.
— É mesmo? — Goro sarcástico. — Eu nem havia percebido eles babando e olhando para nós como se fôssemos o último pedaço de uma torta de carne.
Edgar observava ao fundo com um sorriso satisfeito, como um maestro regendo seu espetáculo. As criaturas levantaram voo com as suas asas bizarras, em seguida, se lançaram ao ataque. Voaram levantando poeira e cinzas em zigue-zague, rápidas e imprevisíveis.
Duas delas mergulharam pelo ar quente diretamente sobre Goro e Jorge, suas garras prontas para dilacerar. Goro esquivou saltando com agilidade para o chão, sentiu o vento cortante raspando seu rosto enquanto a criatura passava próxima. Ao seu lado, Jorge bloqueou a outra criatura com os braços cruzados em um “X” perfeito frente aos olhos.
A criatura rasgou o tecido das mangas do casaco do homem e revelou a proteção cintilante de metal que revestia todo o antebraço dele. As garras afiadas apenas arranharam o metal do bracelete ajustado e não o feriram mais gravemente, mas o impacto fez Jorge deslizar para trás, a sola do sapato corroeu superficialmente o calçamento da rua e evidenciou a comparação de força bruta entre ele e a criatura sedenta.
Enquanto isso, as outras duas criaturas aladas avançaram em direção a Iara e Colth. A garota seria a primeira a ser atingida pelas garras afiadas, mas Colth, antecipando o ataque, se concentrou. No instante seguinte, manifestou o escudo translúcido de Agnes ao redor de Iara, envolvendo-a em uma barreira protetora.
A primeira criatura colidiu brutalmente contra o escudo, como se fosse uma parede sólida de vidro. O impacto a fez recuar com um rosnado agudo, enquanto suas asas desajeitadas tentavam estabilizá-la.
Iara, sem perder tempo, agachou-se girando o seu corpo em busca de seu arco, seus olhos varreram o chão. A arma não estava ali, contudo, em um piscar de olhos, o lobo Sirveres emergiu do calçamento, seu focinho atravessando o véu que separava os mundos graças a invocação de Iara.
Em meio as mandíbulas do lobo, o arco e a aljava repleta de flechas eram erguidos de encontro com a sua invocadora. A garota agarrou rapidamente sua arma, enquanto o lobo desaparecia novamente em meio à bruma mágica derramada ao chão.
Com uma destreza fluida, Iara terminou o giro em seu próprio eixo já com o arco em punho e uma flecha preparada para disparar. Seus olhos afiados travaram na segunda criatura alada, que avançava com as garras prontas para cortar o pescoço de Colth. Mas Iara foi mais rápida, precisou apenas de um respiro. No mesmo instante em que Colth desfez o escudo ao seu redor, a arqueira soltou a corda tensionada do arco.
O som do disparo ecoou no ar enquanto a flecha rasgava o espaço, atingindo em cheio o olho vermelho da criatura. A besta soltou um grito estridente de dor antes de cair no chão, se debatendo em agonia com a flecha cravada fundo em seu crânio.
Sem hesitar, Iara alcançou uma segunda flecha em sua aljava e, com precisão letal, a disparou contra a primeira criatura, que ainda estava tonta devido ao impacto anterior no escudo. A flecha perfurou seu peito escamoso, atravessando sua carne podre e o derrubando ao chão.
Colth não deu chances a nenhuma delas de se levantar, correu apontando a lâmina de sua adaga até os corpos caídos e a cravou nos pescoços pútridos da criatura sem pensar duas vezes, cessando definitivamente seus movimentos. As asas das abominações se contorceram antes de murcharem e repousarem ao solo.
Colth respirou fundo com o sangue quente escorrendo de suas mãos e, em seguida, retirou a adaga da carne. Não teve tempo de pensar, um som reconhecido proveniente de um revólver de Sathsai estourou. Quando mirou seus olhos para a origem do característico ruído, viu Goro sorrindo esnobe frente a uma das criaturas com o rosto desconfigurado.
Ele havia acabado de acertar um disparo de Sathsai à queima roupa na besta alada, que acabou por ter o seu rosto queimado e perfurado pela energia potente do cristal do revólver.
— Como é bom ter a oportunidade de usar essa coisa de novo — Goro vociferou seus pensamentos satisfeitos, enquanto observava o revólver fervente frente aos seus olhos.
— Argh! — Gritou Jorge, enquanto socava a criatura que avançou contra ele. — Argh! Não vanglorie a violência! É errado! — Finalizou com um último e derradeiro soco na criatura ao chão.
Esmagou a cabeça da besta contra as pedras do calçamento e a deixou irreconhecível antes de se levantar retomando o fôlego.
— ... — Goro parou observante, visualizando o homem musculoso com os punhos imersos nas vísceras da criatura liquidada, enquanto recebia dele uma bela lição de moral. Em seguida balbuciou em seu tom mais leve, estranhamente lhe faltando o tom sarcástico: — Disse o estripador pacifista.
Percebendo que os aliados estavam seguros, Iara se voltou a Edgar:
— Pare com isso, Gerente! Desista! — gritou ela. Seus olhos determinados rompendo em meio a rua caótica.
Edgar observando tudo do alto de sua confiança, manteve seu sorriso satisfeito. Disse eminente com um sentimento nostálgico:
— Ah, como vocês cresceram bem, Iara e Jorge.
O Gerente obsevava os seus inimigos, principalmente aqueles dois que viu como pequenas crianças sem futuro no distrito norte da Capital de Albores.
— Tsc.
— Cresceram, e parecem que esqueceram de tudo o que passaram — declarou Edgar. — Não veem o que está prestes a acontecer aqui? Estamos a minutos de ver a unificação dos mundos.
— O velho caducou — insultou Goro —, não tá mais falando coisa com coisa.
Edgar ignorou a provocação, e continuou a falar em tom sério:
— Não era isso que vocês também queriam? Não teremos mais guerras, miséria ou injustiça.
Jorge elevou as sobrancelhas de modo confuso. Perguntou sem nem ao menos acreditar no que tinha ouvido:
— Do que você está falando, Gerente? Vocês construíram uma cidade de escravos há alguns quilômetros daqui e...
— Eu odeio! — esbravejou Edgar, suas veias marcantes dilatando no rosto vermelho de raiva. — Eu odeio o que a Garta fez com vocês! Ficam agindo como crianças, como se o mundo fosse um conto de ninar, e não conseguem entender que não há outra maneira. Sempre vai existir o grupo dominador e o grupo imperado.
— E você chama isso de um mundo justo? — perguntou Iara, com a face reprovadora. — É cruel.
— Ah, não se preocupem, eu estive por muito tempo no lado dos mais fracos. É por isso que vamos refazer tudo de uma forma melhor. O grupo dominado não sentirá mais dor alguma. Estarão em um sonho após adormecerem, afinal, precisaremos apenas da energia de seus corpos.
— Do que você está falando? — perguntou Goro, com sinceras dúvidas sobre a sanidade do velho.
Edgar voltou a explicação:
— Colocaremos todos que vieram de Tera para dormir. Sem dor, sem sofrimento.
— Quanta benevolência — caçoou Goro.
— Sim, eu sei. Mas não precisarão me agradecer — comentou Edgar. — Eles vão todos estar em um sono profundo e feliz depois que Hui os colocar para dormir.
— Isso demandaria uma energia mágica inimaginável — pensou alto Colth.
— A guardiã de Tera vai dar um jeito nisso — rebateu o Gerente.
— A Celina? — perguntou Colth, espantado. — Ela nunca concordaria com isso.
— Aha. — Edgar deu uma leve gargalhada. — Ela já concordou. Ou quase isso, mas não importa...
Foi interrompido. O barulho de disparos de Sathsai em sequência rompeu pelo ar. Os disparos vieram das costas do grupo e foram em direção ao Gerente, mas não o impactou, a energia do cristal se chocou com o escudo invisível que o envolvia.
— Vocês são idiotas?! — gritou Beca, distante as costas do grupo. Ela portava a sua arma de Sathsai denominada de Choquinho Faísca ao lado de Liana. Ela fez questão de mostrar o seu rosto zangado em bronca. — Não percebem que ele está ganhando tempo?
— Ganhando tempo? — perguntou Colth, olhando para trás e encontrando Beca e Liana, com as “ferramentas” de nome peculiar.
Ainda em tom de bronca, Beca prosseguiu:
— Enquanto vocês ficam papeando aí, a fluxie esfria.
— Quem diabos é fluxie? — rebateu Goro, confuso.
— A mochila de Sathsai! — se intrometeu Liana, adiantando o entendimento dos outros.
Beca continuou a explicação em voz alta aos quatro amigos mais adiante.
— Se ele usar as magias em seguida, sem um período adequado para o devido esfriamento, a mochila vai colapsar.
— Alguém entende o que a nanica fala? — perguntou Goro, aos outros três ao seu lado.
— Não podemos dar tempo para ele respirar — disse Colth, com os olhos conscientes mirando a mochila e o Edgar.
— É só atacar o Gerente até ele e a mochila cansarem — concluiu Iara.
— Ah, entendi. Então é como um defeito na mochila — comentou Goro, acompanhando o olhar determinado dos outros.
— Não é um defeito!!! — gritou Beca, irritada. — Eu não tive tempo de concluir a fluxie, e isso é um problema de qualquer ferramenta que dependa de Sathsai!!!
Goro se inclinou para frente, sussurrando em tom de deboche para os outros: — Ela é baixinha, mas faz um grande barulho, não é?
À frente, Edgar apertou os dentes e lançou um olhar furioso para Beca: — Você não tinha morrido, Bertha? Garota insolente.
— Não sou mais Bertha, seu velho arcaico! — Beca retrucou, firme, enquanto mirava novamente com precisão. Ela disparou outra rajada de energia de Sathsai de seu rifle.
Como antes, Edgar foi protegido pela barreira de energia sólida, mas seu olhar fervoroso mostrou algo além de sua irritação crescente, preocupação.
— É por isso que vocês sempre vão ser os perdedores do grupo imperado! — Edgar esbravejou, sua voz permeada de desprezo. Ele então abriu os braços, e a magia da mochila fluiu como um rio de poder ao seu redor.
Dentro da mente de Colth, a voz de Lashir ressoou com clareza, trazendo uma resolução súbita. Ele sussurrou para si mesmo: — Eu sei.
Goro, ao lado dele, o observava com seus olhos cheios de desdém e suspeita: — O que você está tramando com a bruxa vermelha agora?
Colth manteve a calma e respondeu: — Precisamos do nosso reforço, Goro.
Goro arqueou uma sobrancelha, claramente irritado com a situação. — Eu sei, mas a Garta não está aqui, caso não tenha percebido — retrucou, apontando o óbvio com uma pitada de sarcasmo. — A menos que você e sua amiguinha imaginária saibam outra forma de deslocar o resto da festa para cá.
Antes que Colth pudesse responder, uma intensa energia começou a emanar da mochila de Edgar, fazendo o ar ao redor vibrar com força. A ferramenta claramente se energizava novamente com a magia dos cristais. Edgar ergueu os braços mais uma vez, seus olhos brilhando com um fanatismo assustador enquanto proclamava:
— Vamos assistir todos juntos ao reinício, mas desta vez, estaremos do lado certo!
Dessa vez, quatro fendas sombrias se abriram de ambos os lados dele, girando e contorcendo magia como redemoinhos de pura escuridão. Dos portais, emergiram criaturas que, assim como as próprias portas para outro mundo, pareceram se multiplicar. Grotescas e desfiguradas, cada uma mais aterrorizante que a anterior
Colth voltou seu olhar para Goro, seu rosto refletindo confiança diante do caos que se desenrolava. Não precisou de palavras.
Goro franziu o cenho por um instante, mas logo seus olhos se arregalaram em compreensão súbita. — Ah... — murmurou, endireitando a postura enquanto um sorriso ousado surgia em seus lábios. No instante seguinte, desfez o riso e hesitou: — Espera. Isso vai funcionar?
— Só tem um jeito de descobrir — finalizou Colth.
Enquanto isso, Iara estava em constante movimento, disparando flecha após flecha em uma tentativa desesperada de impedir que as criaturas atravessassem os portais. Suas flechas cortavam o ar com precisão, atingindo várias das bestas e retardando seus avanços, mas a quantidade avassaladora de inimigos começava a sobrecarregá-la. Respirou fundo ofegante enquanto puxava mais uma flecha de sua aljava quase vazia, seus braços começando a sentir o peso da exaustão.
Mais atrás, Beca e Liana portavam seus rifles de Sathsai com eficiência letal, esbanjando rajadas de energia que iluminavam a rua enquanto atingiam os monstros que escapavam das flechas de Iara. O som dos disparos ecoava pela rua, misturando-se aos rugidos das criaturas e ao crepitar das chamas.
Mesmo com todo esse esforço, um grupo de bestas aladas conseguiu romper a linha de defesa e avançou rapidamente em direção a Iara, suas asas batendo freneticamente enquanto garras afiadas brilhavam ameaçadoramente. Antes que pudessem alcançá-la, uma figura robusta se colocou firmemente em seu caminho.
Jorge plantou os pés no chão, erguendo os punhos envoltos dos braceletes metálicas reforçados. Cheio de determinação e coragem impressionante enquanto gritava desafiador:
— Venham! Se querem sangue, é o que vão ter!
As primeiras criaturas mergulharam sobre ele, suas garras afiadas cortando o ar com um assobio ameaçador, mas Jorge estava pronto. Ele aguentou habilmente o primeiro impacto feroz contra os braceletes. Em seguida, devolveu golpes poderosos que ecoaram como galhos secos se quebrando. Aquele era o som dos ossos animalescos se partindo em pedaços. Ele derrubou os monstros no chão, cada soco carregado de força bruta e técnica, mostrando a experiência e o treinamento árduo adquiridos durante anos fugindo das forças do imperador.
Jorge teria passado ileso, se continuasse a vir uma criatura de cada vez, mas quando se deu conta, estava cercado por três bestas famintas.
— Tsc.
Soube na mesma hora que não poderia contra os três de uma só vez. Ele percebeu que ao se proteger de um ataque, outros dois estariam prontos para explorarem sua vulnerabilidade. Afinal, ele não era guardião ou emissário, não teria o que fazer diante daquilo.
Quando a primeira criatura atacou, Jorge se protegeu, as garras arranhando o metal que cobria seus antebraços, mas o impacto foi mais forte do que ele esperava. Seu joelho dobrou levemente, o suficiente para fazê-lo perder o equilíbrio. Ao recuperar a postura, viu a garra afiada da segunda criatura prestes a atingir seu pescoço. Ele suspirou, como se fosse o último.
“Tudo bem. Está tudo bem. Não foi em vão, afinal.” Pensou ele, apenas aceitando com bravura o seu destino.
A garra, como lâmina, foi de encontro ao seu alvo certeiro. Não atingiu.
Um rosnado, diferente dos grunhidos pútridos que se acumulavam pela rua, ressoou como a salvação.
Um Sirveres saltou vindo das costas de Jorge e abocanhou o braço esquelético da criatura, arrastando-a com toda a força para o chão. O lobo negro não estava sozinho, acompanhado de outro semelhante, o segundo Sirveres combateu a criatura que ainda corria para acertar Jorge.
Os lobos, ágeis e ferozes, rasgavam as criaturas com fúria.
O homem grande e musculoso arregalou os olhos surpresos. Em seguida, afastou a criatura que ainda o pressionava e a socou com força, arrancando todos os dentes deformados de sua boca podre, antes de derrubá-la.
Ainda surpreendido, Jorge se virou para colocar os olhos em direção a sua salvadora que trouxe aqueles lobos na hora certa. Viu Iara, acompanhada de seu terceiro e último Sirveres que lhe entregava mais um amontoado de flechas para serem usadas na batalha que continuava intensa.
Ela acenou positivamente com a cabeça para Jorge, lhe passando confiança plena, e voltou a se posicionar armando o seu arco com a próxima flecha a ser disparada, preparando-se para continuar o ataque de suporte.
Jorge sussurrou seus pensamentos impressionados enquanto um sorriso admirado persistia em seu rosto: — Você tinha razão, senhora Runa, a Iara se tornou uma mulher incrível.
Sacudindo a cabeça para afastar os pensamentos que poderiam distraí-lo, Jorge voltou a focar nas criaturas que continuavam a se aproximar, os punhos cerrados e prontos para mais uma rodada, agora ao lado dos Sirveres.
Enquanto o caos reinava ao redor, Colth e Goro se preparavam para executar seu plano.
Colth fechou os olhos por um breve instante, concentrando-se profundamente enquanto sentia a energia mágica pulsar através de seu corpo. Lashir, presente na mente do guardião, canalizou seu poder, intensificando a aura de magia ao redor de Colth e preparando-o para o próximo movimento.
— Essa sua ideia é insana — comentou Goro. — Se não alcançar o velho caduco, você vai virar churrasco.
Colth, ainda em concentração, respondeu com o silêncio. Goro insistiu:
— Cara, essa mulher na sua cabeça te deixou maluco — disse ele, sem amenizar —, sabe disso, não é?
Colth manteve os olhos fechados em concentração silenciosa.
— Tá bom, tá bom. — Goro suspirou, resignado. — Eu só espero que você saiba o que está fazendo.
Ele checou o revólver de Sathsai uma última vez, os olhos analisando o panorama à frente, pronto para o que viria.
E então, Colth abriu os olhos. Eles brilhavam com uma luz intensa e determinada.
— Conto com você, amigo — O guardião finalmente respondeu, com gratidão franca.
O amigo deu um leve sorriso com o canto da boca, mostrando a sua confiança.
Colth deu um passo à frente, seu pé direito atingindo o calçamento com força, a superfície da rua aquecendo sob seu toque. Com um impulso poderoso, ele partiu em uma corrida veloz, deixando para trás a marca incandescente de sua pegada enquanto avançava em direção a Edgar, decidido a mudar o destino.