Volume 2
Capítulo 107: Cinzas das Chamas
Enquanto avançava pela entrada destruída, o cheiro de fumaça invadia seus pulmões, e seus olhos ardiam com lágrimas quentes. Cada passo aumentava o calor insuportável, mas Lashir se manteve determinada. Não sabia se era devido ao seu altruísmo ou ao seu egoísmo, mas não parou para refletir. A urgência de salvar Beca a impulsionava.
O interior da oficina era um caos de destroços e chamas. Lashir movia-se o mais rápido que podia, mas a fumaça fervente e as brasas em todas as direções lutavam contra ela, atrapalhando até seus pensamentos. O som incessante do fogo consumindo o prédio prejudicava sua audição, e a fumaça espessa dificultava a visão. Como se o destino estivesse ao seu lado, um vento noturno soprou a fumaça para longe por um instante, revelando uma figura em meio aos escombros, iluminada pelas intensas luzes das chamas. No centro da oficina, uma jovem estava rodeada por três espécies de lobos e uma criatura maior, guardando-a.
Lashir, no corpo de Colth, ficou boquiaberta e sussurrou, surpresa, em meio ao caos:
— Índigo?
Um déjà vu, uma memória inesquecível repetida. Lashir achou que estava delirando devido ao calor ou à fumaça corroendo seus pulmões.
— Não. Isso não é possível — murmurou para si mesma, tentando se convencer.
Apertou os olhos vermelhos e focou novamente. A cena era a mesma de anos atrás, exceto por uma diferença notável. Ao invés de Índigo, uma garota estava de pé em meio às criaturas sombrias, controlando-as.
— O que está acontecendo aqui? — Lashir se perguntou.
— Colth! — gritou a garota, mostrando o rosto em direção à guardiã de Rubrum.
Lashir finalmente reconheceu a figura no centro da oficina em chamas, era Iara. A garota suplicava por ajuda através dos olhos enquanto abraçava um corpo desacordado. Devido os óculos de proteção sobre a cabeça, Lashir percebeu no mesmo momento de que o corpo desmaiado se tratava de Beca, ela estava visivelmente ferida com sangue escorrendo por um dos seus braços até o chão.
“Você a protegeu?” Pensou Lashir boquiaberta. Em seguida, sacudiu a cabeça, expulsando qualquer pensamento desnecessário, e avançou.
Cada passo era um grau a mais na escala de dor devido ao calor intenso. Lashir sentia seus pulmões fervendo a cada respiração curta, a garganta completamente seca, e seus movimentos cada vez mais lentos. Mesmo assim, continuou se aproximando de Iara.
— Colth! Não faça isso! — gritou Iara. Em meio às chamas mais intensas, a garota se mantinha viva graças ao sacrifício das criaturas sombrias, principalmente do Capelobus, que com seu imenso corpo resistente se fazia de escudo e a protegia do calor mortal.
Lashir deu mais um passo. Estava perto, mas o calor era ainda mais intenso ali ao centro do incêndio. Sem o acolhimento da criatura imensa, Iara já estaria carbonizada há muito tempo. Mesmo sabendo disso, e sem proteção alguma, Lashir continuou.
— Para, Colth! Você vai... — Iara tentou alertá-la mais uma vez.
— Esse é o único...
Lashir tentou mais um passo, prestes a tocar Iara, mas suas pernas estremeceram. Dobrou os joelhos e caiu com força no chão chamuscado.
— Merda... Que corpo inútil... — murmurou, balbuciando apenas para si enquanto sua visão se tornava borrada. Não conseguia mais se mover.
Pôde ainda ouvir a voz intensa de Iara enquanto sentia seu braço ser abocanhado por fileiras de dentes pontiagudos:
— Colth! Acorda, Colth!
Sentiu-se ser arrastada pela superfície em brasas. Escutou uivos e choros caninos em meio ao crepitar das chamas. E então a voz doce, acentuada em meio ao caos, soou perto de seu ouvido, quase confortante:
— Colth! Colth! Por favor — suplicou Iara.
— Você precisa trazê-lo de volta — interrompeu Lashir. Sem enxergar, sem sentir mais o cheiro da magia ou do sangue de quem estava ali, apenas entregando-se às palavras em sussurros debilitados: — Você precisa trazer o Colth de volta...
— O quê? Do que você está falando? — perguntou Iara, confusa, sem saber como reagir àquela afirmação desconexa. Afinal, era o próprio Colth que disse aquelas palavras, ou pelo menos o seu corpo.
Lashir tentou um último suspiro:
— A alma continua aqui, você pode ver a cor, não pode?... guardiã de Véu.
No momento em que as palavras fracas foram pronunciadas, o Capelobus urrou de dor intensa devido suas costas chamuscadas ardentes.
— Guardiã? — Iara se impactou.
Lashir não resistiu e, o que antes era um borrão sem forma, se tornou uma escuridão uniforme.
***
— Posso te perguntar uma coisa, Índigo? — disse a menina, com os olhos empolgados enquanto aperfeiçoava a corda de seu arco na segurança do pequeno esconderijo subterrâneo sob a Albores destruída.
— O que foi, garota? — rebateu Índigo, sem dar muita atenção à jovem Iara. Ele se debruçava sobre um antigo mapa da cidade capital que deixou de existir, realizando anotações com um lápis gasto. A chama calma da lanterna tremulava suavemente, iluminando o papel velho e as feições concentradas do homem.
— As criaturas que você invoca, elas não são desse mundo, certo?
— Sim. — O homem continuou focado no mapa sobre a mesa improvisada ao centro do abrigo enquanto ele permanecia sentado diante de suas anotações.
— E você já tentou trazer alguém? Uma pessoa? — perguntou Iara, curiosa e uma fagulha de ansiedade.
— Não vai funcionar tentar trazer a Garta. — respondeu ele, sem empolgação. — Diferente de um deslocamento da magia de Finn, para uma invocação dar certo, é necessária uma ligação bem forte entre as pontas dessa linha, assim como esse seu arco, garota. Assim como a ligação do seu corpo com a sua alma. E assim como as criaturas sombrias e Véu. No final das contas, a capacidade que a magia de Véu fornece é apenas a de manipular um pouco essas linhas.
— Bom, eu não estava me referindo a Garta, especificamente. — Iara interrompeu-se, fez uma pensativa pausa, ponderando sobre o que estava prestes a dizer, o fez: — Estava me referindo a trazer alguém que já deixou de viver.
Índigo paralisou seus rabiscos sobre a folha de papel imediatamente. Refletiu sobre aquelas palavras e sobre o que já havia pensado a respeito daquele assunto durante vários dias seguidos após o fim de seu mundo. Lembrou-se de respirar, ganhou ar e finalmente:
— Está me perguntando se eu já tentei invocar um dos meus próprios filhos? — perguntou ele, ainda sem se mover ou mostrar o rosto. Apenas observava a ponta do grafite arruinado afundado sobre o papel perfurado ao final do risco.
— Desculpa, eu não deveria ter falado sobre isso. Esquece o que eu disse e...
— Uma alma nunca deixa de existir — resumiu Índigo. Ele soltou o lápis e finalmente se virou. Focado apenas nos olhos da garota, sincero: — Por outro lado, o corpo ou a mente sempre vão ruir. Por isso não é possível trazer os mortos de volta a vida. A magia de véu pode invocar um corpo, e até uma mente, mas jamais uma alma.
— Mas as criaturas sombrias... — Iara insistiu, tentando entender.
— Elas não possuem alma, apenas o desejo de servir ao seu invocador — esclareceu Índigo.
Iara pensou por um breve momento, procurando compreender o que ele dizia:
— Então, se você tentasse...
— Por mais que eu quisesse — interrompeu Índigo —, jamais conseguiria trazer uma alma de volta. Traria o corpo, ou a mente, talvez ambos. Mas seria apenas uma casca, algo sem vontade, emoções ou ambições, um ser que se auto extinguiria devido a falta do motivo de existir.
Iara ouviu atentamente e rapidamente prosseguiu com suas dúvidas:
— “Por mais que eu quisesse”, você disse. Mas não pensa em procurar alguma forma para dar um jeito nisso? Encontrar algum método de trazer a alma também e...
— Isso seria um tremendo de um egoísmo — disse Índigo. Curto e convicto.
— O quê?
— Trazer alguém de volta dos mortos, para esse mundo sujo e corrompido. Apenas alguém coberto de um horrendo egoísmo faria isso, não acha?
Iara ficou em silêncio por um momento, refletindo sobre as palavras frias de Índigo, assim como o abrigo subterrâneo. O som distante de água pingando e o murmúrio do vento lá fora criavam uma atmosfera melancólica.
Índigo voltou a se concentrar em suas anotações, mas sentiu o olhar penetrante de Iara sobre ele. Ela parecia lutar contra suas emoções e pensamentos conflitantes.
— Mas... — Iara começou, a voz trêmula e os olhos verdadeiros: — Não é justo.
O silêncio se fez entre os dois. Índigo ergueu o olhar do mapa, vendo a sinceridade nos olhos da jovem. Ele entendia a dor dela. Expôs:
— Sabe qual é a principal virtude da magia de Véu?
— ... — Iara se manteve com o rosto entristecido. Com os olhos perdidos em pensamentos.
— Não é conseguir invocar, ou controlar criaturas. — Índigo se fez ouvir com seriedade em suas emoções: — A maior virtude é ver a alma de qualquer pessoa. E quando eu vi a sua alma...
— Hã? — Iara foi fisgada pela curiosidade. Se virou para o homem esperando a resposta.
— Sua alma era cristalina. Mesmo para uma criança, é muito raro uma alma sem cor. Mesmo tendo todos os motivos para odiar quem matou os seus pais, ou quem tirou seus amigos de você, mesmo assim, mesmo agora, continua praticamente incolor, como se estivesse esperando alguma coisa para finalmente ganhar coloração.
— Sem... cor?
— Um verde claro tranquilo e seguro, um vermelho intenso e corajoso, um laranja ambicioso, um rosa carinhoso. Nossas almas estão rodeadas dessas cores, algumas mais visíveis e saltantes, outras apenas mornas e distantes. — Índigo mantinha a explicação com afinco de fazê-la entender: — Mas todos possuem cores, uma cor que não é única e nem eterna, mas que está lá, preenchendo a alma de cada um.
— Mas a minha...
— A sua é cristalina, como a de uma criança esperando para conhecer o mundo, esperando para ser tingida. E isso é fascinante. — Índigo era sincero, olhos fixos aos dela e verdadeiro como sempre: — Eu a vejo se colorindo aos poucos, mas nunca assumindo uma cor. É como um cristal que muda de cor dependendo da luz do dia. É como um véu que te cobre sem te esconder.
Ela esperou um segundo, pensando e tentando processar aquelas informações. Continuou com dúvidas:
— É por isso que me protegeu, na explosão de Lux?
— Não. É claro que não. — O homem balançou a cabeça negativamente e voltou direto: — Mas é por isso que eu tive a certeza de que tomei a decisão certa de te proteger.
— Hum — Iara conteve uma risada. — E qual é a cor da minha alma, agora?
— Ah... — Pausou pensativo Índigo, observando o rosto da garota, agora menos entristecido. Respondeu os olhos e se afastando da pergunta: — A cor da esperança.
— Mentiroso — ela rebateu com um breve sorriso em bom humor. — Se não vai me dizer a minha, que tal me falar qual é a cor da alma da Garta?
— A cor da Garta? Bom, geralmente, é uma cor púrpura carregado de poder e virtude.
— Sério? — Os olhos de Iara brilharam.
— Sim, mas as vezes tendiam para um azul solitário sem brilho, e outras vezes um amarelo intenso cheio de energia que poderia machucar qualquer um que ousasse se aproximar.
— Uau, isso é incrível. E quantas cores podemos ter? Quantas você já viu?
— Uma infinidade que não se repete. E não é tão simples der vê-las, é mais sentir a cor do que observá-la.
— Impressionante. — impactou-se, Iara. Continuou com curiosidade: — Hum, vejamos... E a cor da alma do Colth?
— Huh — Índigo recebeu a pergunta com surpresa, imediatamente sorriu com o canto da boca. — O Colth? A cor da alma dele é um...
***
— Um cinza cheio de cor! Colth! — Gritou Iara, interrompendo sua própria fala e, por um momento, perdida nas lembranças. Ela voltou a si com determinação ardente em seus olhos.
“Cinza é a cor da alma do Colth. A cor que vejo em meio às chamas vermelhas e intensas do fogo e da alma de Lashir. A cor que destaca todas as outras! Eu vejo, Índigo! Eu vejo!”
O calor do incêndio fazia o ar ao seu redor ferver, tornando difícil até mesmo respirar. A fumaça espessa, sufocante, a envolvia como um abraço mortal. O capelobus, a criatura sombria que se sacrificava para mantê-la a salvo junto com Colth e Beca desacordados, estava em seus últimos momentos. O pelo espesso das costas da criatura chamuscava e se inflamava em meio ao intenso calor. Com um rugido final, o corpo trêmulo do capelobus cedeu.
— Colth! — gritou Iara, espelhando o rugido de sua criatura sombria.
Não havia mais como sair dali. As chamas consumiam o capelobus e adentravam sua guarda. Fagulhas e fumaça fervente atingiam o corpo de Iara, que estava prestes a perder a consciência. No seu último suspiro, ela viu o cinza tomar conta do vermelho.
No instante seguinte, o calor pareceu diminuir, aliviando a dor intensa das queimaduras que se acumulavam em sua pele. Quando Iara notou, estava cercada por uma parede incolor, quase como vidro, uma cúpula de pura magia que os protegia das intensas chamas.
— Eu saio por alguns minutos, e é assim que você deixa tudo, Lashir? — disse Colth, com a consciência recuperada.
“Eu não consigo usar minha magia com esse seu corpo fraco. Não coloque as suas fraquezas sobre mim.” Rebateu Lashir, de forma áspera, nos pensamentos do homem. Por mais que parecesse incomodada e até ríspida, no fundo, era possível sentir um tom de alívio em suas palavras.
— Ah, deixe suas desculpas para depois, tá bom? — repercutiu Colth, irônico. — Acabou o descanso.
“Quem estava tirando um cochilo aqui era você.”
— Tem razão — concordou o rapaz, com a voz de Lashir ressoando em sua cabeça. — Tá certo, então está na hora de colocar ordem nisso tudo.
Colth abriu os olhos, determinado e convicto do que precisava fazer. Observou o rosto de Iara, sofrido, mas esperançoso ao vê-lo recuperado dos sentidos. Seus olhos mostravam alívio e exaustão, mas também uma fé inabalável nele.
— Bom trabalho, Iara. Você só não me trouxe de volta, como também protegeu a Beca — disse Colth observando a pequena engenheira desacordada, se voltou aos olhos da guardiã de Véu e concluiu: — Você é mesmo brilhante, Iara. Não esperava menos de quem foi treinada pela Garta e pelo Índigo.
A garota sorriu desgastada em resposta, um sorriso que carregava toda a sua força e resiliência.
— Vamos sair daqui. Ainda não acabou — finalizou Colth, sóbrio e confiante em seus próximos passos com a proteção do escudo de Agnes concebido da pura magia de Mutha lhe envolvendo.