Volume 2

Capítulo 106: Guardião das Retaliações

O que pode ter sido isso? — perguntou Goro, cheio de preocupação após o barulho da explosão reverberar pela vila.

Ao lado de Jorge e Colth, Goro corria pela estreita rua principal, que serpenteava ladeira acima pela montanha. O sol se pondo entre as nuvens tingia o céu de um alaranjado profundo, enquanto alguns poucos moradores corriam no sentido oposto aos deles, seus rostos cheios de medo, indicando a origem do perigo.

— Eu não sei, talvez um ataque — respondeu Jorge, ofegante em corrida, suas botas batendo pesadas nas pedras da rua.

— Não tinha dito que seríamos avisados se alguém se aproximasse da vila? — perguntou Lashir, a guardiã presente no corpo de Colth, soando presumida e desafiadora.

— Sim, e... — Jorge começou a responder, mas suas palavras se perderam quando avistaram a oficina de Beca no final da rua.

As labaredas das chamas escapavam pelas janelas da pequena construção, iluminando a rua com uma luz quente. O ar estava carregado do cheiro de madeira queimada, e o calor do fogo era notável mesmo à distância.

— Ah, merda... — sussurrou Lashir, o tom de preocupação emergente.

— Garta! — gritou Goro, o som de sua voz rasgando a sua garganta com toda urgência. Ele aumentou a velocidade de sua corrida e avançou em direção à oficina em chamas.

Lashir teve sua atenção fisgada pela figura de um homem vestido elegantemente, com algo parecido com uma mochila às costas, parado diante do prédio.

A oficina estava sendo consumida pelas labaredas vorazes enquanto Goro corria, sua mente fixada em salvar qualquer um ali. No entanto, quando o rapaz estava prestes a alcançar a entrada, o homem bem vestido avançou em sua direção, pronto para atacá-lo.

De repente, Goro foi empurrado pelas costas e caiu ao chão, junto com quem o havia acertado. O golpe do homem com a mochila incomum cortou o ar quente e seco, e quando Goro se virou para entender o que acontecera, notou o homem de roupas rebuscadas olhando-o com desdém.

Goro e Lashir, presente no corpo de Colth, rapidamente se ergueram e encararam o homem mais velho de cabelos grisalhos penteados com cuidado. Goro sacou sua adaga de Sathsai, pronto para um eventual combate. O silêncio tenso, que era perturbado apenas pelo caos das chamas do prédio ao fundo, foi interrompido por Jorge, que sussurrou ao reconhecer o velho:

— Gerente.

Edgar ignorou Jorge. Seus olhos perfuraram Colth com uma expressão de insatisfação:

— Guardião de Anima, você ainda está vivo? — perguntou, antes de notar a adaga nas mãos de Goro. — Mesmo tão próximo da adaga? Não, isso não é possível. Você não é o guardião de Anima, não é?

Lashir apertou os olhos vermelhos, detestando a perspicácia do velho. Só interrompeu o seu encarar, pois um ruído se destacou no céu e lhe chamou a atenção. Os três olharam para cima e viram uma embarcação voadora em meio ao céu a se escurecer.

— Onde está aquele moleque? — resmungou Edgar enquanto observava a máquina voadora e se voltava ao prédio em chamas.

Repentinamente, sons de disparos de armas de Sathsai romperam o ar quente. Do outro lado da rua, os disparos constantes e rápidos miravam o velho Edgar. No entanto, antes que a energia se chocasse com seu corpo, desviaram, como se tivessem atingido uma barreira invisível.

Edgar se voltou para a autora dos disparos, Liana, que estava do outro lado da rua, portando a mais nova arma de Beca. O velho absoluto sorriu, seus lábios cheios de arrogância.

— Mulher idiota, — começou ele, com um tom de desdém, os olhos brilhando com confiança — você realmente acha que pode me deter com isso?

Edgar se virou completamente para Liana, que mantinha a arma apontada, determinada, apesar do tremor em suas mãos.

— Não subestime a gente! — gritou Liana, tentando disfarçar o medo com bravura.

Todos os olhares apontaram para ela, e logo ficaram surpresos. Parte do rosto da mulher, incluindo o olho esquerdo, e toda a região de sua barriga estavam com graves queimaduras. A carne exposta enquanto a dor visível no seu rosto.

Ela apertou o gatilho novamente, mas os disparos continuaram a ser desviados pela barreira invisível de Edgar. Quando tirou o dedo do gatilho, viu que o velho nem se arranhou com a sua investida.

— Como isso é possível? — se perguntou Goro.

— A portadora de Sathsai — resumiu Jorge.

— O quê? — perguntou Lashir em pele de Colth.

— Aquele negócio acoplado nas costas do Gerente. Aquele é a portadora de Sathsai. Foi criada pela Bertha e...

Em meio a chamas, algo se movimentou, uma silhueta que logo ganhou corpo ao sair do prédio a pressas. Hikki passou pela porta com algumas poucas queimaduras e trouxe em seus braços a própria irmã, Garta, desacordada.

Imediatamente Goro partiu em corrida aos dois:

— Gart...

Ele foi interrompido pelo próprio Hikki que gritou lhe alertando:

— Não se mexa! — berrou o homem com a irmã nos braços. Goro parou estranhando a reação. Hikki aumentou o aviso enquanto colocava o corpo de Garta sobre os seus ombros: — Não venha!

— Ah, bom garoto — disse Edgar, como um elogio a Hikki.

— Hã? O que... — Goro tentou entender, mas novamente foi interrompido.

Dessa vez, uma escada feita por cordas surgiu vinda dos céus. Ela ficou pendurada, se estendendo até a máquina voadora, que sobrevoava a vila em voo estacionário, e só parou de chacoalhar pelos ares quando Hikki a agarrou com a mão que não se ocupava em segurar o corpo de sua irmã.

— Hikki, você... — finalmente Goro entendeu. Enervou sua reação e tentou avançar em direção ao rapaz se sentindo traído: — Eu não vou deixar que a leve e...

Uma pulsação de energia rompeu acertando forte o peito de Goro e lhe arremessando para trás por alguns metros. Seu corpo caiu de costas ao chão de pedra, mas ele logo se levantou agilmente.

— O que foi que você disse? — perguntou Edgar, mostrando a palma da mão com sua luva peculiar e seu sorriso convicto.

Hikki, com o corpo da sua irmã nos ombros, agarrou com força a escada de cordas e pisou sobre ela se preparando para a retirada aérea.

— Que merda é essa, Hikki?! — gritou Goro, traído.

O rapaz alvo escondeu os olhos, observando rapidamente o rosto de Garta de perto. Sussurrou:

— Eu sinto muito. É o único jeito.

No momento em que Hikki finalizou suas palavras, ele puxou a corda duas vezes de leve, enviando o sinal. Imediatamente, a corda começou a ser recolhida, elevando Hikki e sua irmã aos céus. O barulho do mecanismo rangendo no céu compunha o ambiente em conjunto com o fagulhar do fogo no prédio ao fundo.

— Seu... — Goro gritou em fúria.

Ele tentou avançar em direção a Hikki, mas Lashir o segurou, com seu olhar fixo no perigo iminente do outro lado.

— Não, não, não — disse o velho, levantando a palma da mão enluvada, que brilhava com uma luz intensa ameaçadora. — Não vai querer interromper a reunião de família, não é?

Enquanto Hikki e Garta eram erguidos pelos céus, o vento chicoteava suas roupas, e as luzes da vila diminuíam abaixo deles com a aeronave iniciando movimento e partindo em direção a fortaleza última. Goro sentiu um aperto no coração vendo a figura de Hikki e Garta desaparecer sobre a máquina voadora no céu com traços noturnos cada vez mais longe.

— O que vão fazer com a Garta?! — vociferou Goro em direção ao Gerente.

— Vamos fazer apenas o que ela gostaria que fosse feito — respondeu Edgar de imediato, sua voz fria. — O melhor para ela.

O velho mantinha um sorriso neutro no rosto, que aos olhos de todos os outros era uma simples máscara ardilosa.

— O melhor?! — Jorge gritou energeticamente.

O corpo do rapaz chegou a tremer de raiva enquanto seus olhos melancólicos refletiam a reprovação.

— Você não consegue entender, não é garoto? — rebateu Edgar, impaciente em tom superior.

— É claro que não. Você quer sacrificar a Garta. Depois de anos a usando, fazendo ela sofrer. Agora você quer descartá-la. É cruel, até mesmo para você. — Jorge suspirou pesadamente desapontado. O suor escorria por sua testa, refletindo a luz das chamas que continuavam a consumir o prédio onde antes era a oficina de Beca.

— Não faça essa cara, Jorge. Você mesmo se juntou a Bernard, que queria simplesmente eliminar a Garta a qualquer custo, esqueceu? — Edgar olhou para o rapaz com desdém em uma expressão sombria e envenenada.

— Sabe muito bem que eu jamais faria mal a Garta. Foi minha única opção para tentar te deixar longe dela — respondeu Jorge, convicto.

A voz do rapaz era firme, mas trazia consigo uma centelha de tristeza e arrependimento. Ele apertou os punhos, tentando controlar a raiva.

— Você foi sempre um garoto tão bom. Tão puro, não é? Que seja. Isso não importa mais. Todos nós fazemos escolhas sobre o que sacrificar. Você sabe disso muito bem, Jorge. Runa se sacrificou por você e... — Edgar foi interrompido por um grito furioso.

— Não ouse falar da senhora Runa, seu monstro! — disse Jorge, enervado. Soando com uma evidente dor manifesta. As memórias de Runa, a mulher que cuidou dele como uma mãe, e da região Norte de Albores inundando sua mente.

— Faço o que faço, Jorge, para manter todos vocês aqui seguros, como sempre fiz. E é assim que me retribui? — disse Edgar. Balançou a cabeça negativamente em superioridade.

— Você a odeia, não é?

— ... — Edgar permaneceu em silêncio com a repentina acusação.

O olhar do velho não se moveu, manteve-se fixo aos olhos de Jorge, mas ainda assim era possível notar a sua irritação. O ar quente e tenso não só vinha do incêndio no prédio.

— Você odeia a Garta. Convenceu até o Hikki a isso — continuou Jorge. A tremulação de sua voz ganhou aspectos de indignação. Ele deu um passo à frente, desafiador. — Você é o pior de todos, Gerente. Você sempre odiou a Garta. Desde sempre, e o motivo é apenas um. Ela não é sua filha, não é?

— Como? — Surpreso, Edgar arregalou os olhos em plena raiva.

— Naquela época eu era apenas uma criança, mas agora eu entendo, você a amaldiçoou, esse tempo todo. Como uma vingança, uma vingança de um homem vazio refém de suas próprias derrotas.

— Eu a protegi! Eu sempre protegi todos naquele miserável distrito da região norte! — Edgar gritou com uma intensidade inesperada.

— Você protegia o seu poder! Nunca se tratou de nós, e sim do quanto você poderia se sentir poderoso — rebateu Jorge. — Runa tinha razão.

— O quê?

— Você é um fantoche da sua própria ambição e de seu ódio. É de dar dó.

O rapaz manteve a sua expressão desafiadora. Com os olhos determinados, ao lado de seus aliados e de um único inimigo, Jorge sentia que o embate seria inevitável.

— Quer saber de uma coisa, moleque ingrato, eu vou calar essa sua boca — rosnou Edgar.

O velho avançou um passo com a sua mão emanando magia, pronto para o confronto. Jorge se contrapôs e preparou os punhos.

Enquanto os dois velhos conhecidos trocavam acusações, Lashir, enquanto no corpo de Colth, sentiu um cheiro que só ela poderia notar. Imediatamente, alertou Goro que estava ao seu lado, em voz baixa:

— Aquela pequenina mulher atrevida, eu sinto a presença dela, e não está só.

— Beca? — perguntou Goro, percebendo uma súbita preocupação no tom de Lashir.

A guardiã de Rubrum confirmou acenando com a cabeça, continuou então:

— Eu sinto o cheiro de um sangue amargo e convencido. Sem dúvidas, é ela.

— Quê?

Goro franziu a testa, confuso e desconcertado pelas palavras que saíam da boca de seu velho amigo Colth. Ele o conhecia bem, e aquelas palavras definitivamente não combinavam com o guardião de Anima. A voz era de Colth, mas o tom e a escolha das palavras pertenciam a outro alguém.

Lashir, no corpo de Colth, concluiu:

— Beca. Ela está ferida.

Goro se desfez de seus pensamentos e se focou no real problema:

— Onde? — apressou Goro.

— Lá. — A guardiã de Rubrum apontou com seus os olhos vermelhos a direção correta.

Goro se virou para tal direção e teve o rosto coberto pelas luzes das chamas que continuavam a consumir a oficina. Ele congelou por um segundo, tentando afastar os pensamentos terminantes. Poderia realmente Beca estar no meio daquele incêndio? E se estivesse? Dificilmente alguém permaneceria vivo mais do que alguns minutos naquele inferno de chamas.

Antes que Goro pudesse responder a altura da urgência que aquilo se configurava, um estrondo em meio a briga de Jorge e Edgar se fez o centro das atenções.

Quando Goro notou, viu o corpo grande e musculoso de Jorge ajoelhado diante da magia emanada das mãos de Edgar. Na direção contrária, o barulho do fogo devorando a oficina e o ar respirável que Beca, talvez, ainda pudesse se agarrar. Ele hesitou, dividido.

Goro teria que decidir a quem ajudar, mas não sabia nem por onde começar a ponderar sua escolha. Quem precisava mais? Quem era mais merecedor de sua ajuda, ou qual deles se manteria um melhor aliado? Perguntas sem fundamentos e, muito menos, sem respostas passaram por sua cabeça. Hesitou mais uma vez, seu corpo imóvel interpretando a sua mente melindrosa.

Sentiu um empurrar nas costas, como se alguém o apressasse. Sim, de fato alguém o apressou:

— Vá ajudar o brutamontes — disse Lashir —, deixa que eu dou um jeito na baixinha.

Goro deu um passo para frente, forçado pelo empurrão. Imediatamente, cogitou que aquele gesto fosse de Colth.

“Não. Não é o Colth. Ele ainda não recuperou o seu corpo. Aqueles olhos vermelhos sem arrependimentos não são do Colth.” Pensou Goro, deu mais um passo em socorro a Jorge, ainda estava cheio de dúvidas em sua mente: “Mas então, qual é o motivo de Lashir estar ajudando? Ela tomou o corpo do Colth e agora... Ah! Isso não importa agora.”

Goro se desfez dos pensamentos e agarrou com mais força a adaga de Sathsai. Avançou apontando a lâmina contra Edgar.

Lashir observou Goro se afastar. Com um último olhar para a batalha iminente, ela virou-se e correu em direção ao prédio em chamas. Sentiu o calor intenso das labaredas contra sua pele. As chamas ardiam violentamente, consumindo o resto das paredes desmoronadas da oficina.

— Ah! — rosnou ela. — É bom você valer a pena.

A guardiã, no corpo de Colth, respirou fundo e adentrou ao prédio em prédio ardente sem hesitar mais.



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