Volume 2

Capítulo 105: Guardião das Lamentações

— Aqui, chegamos — disse Jorge, frente a uma velha construção comercial em uma das poucas ruas paralelas perto da entrada da vila Nova Tera. — É ao fundo desse prédio.

— É um lugar bem escondido, não? — perguntou retórico Colth.

O rapaz ao lado de Goro observou atento o arredor. Viu apenas casas aparentemente abandonadas naquela viela estreita e sem saída. Por estar mais abaixo na costa da montanha, os raios de sol a atingiam por poucos minutos durante o dia, tornando o lugar ainda mais frio e escuro.

— Mesmo que não tenham homens do império por aqui, ainda temos que esconder muito bem nossos suprimentos, não acha? — rebateu Jorge, abrindo a simples porta da entrada do prédio.

— É, acho que você está certo. — disse Colth, ainda observando o arredor, um pressentimento ruim lhe corroendo por dentro.

Goro não podia deixar de notar a reação estranha do amigo. Não era a primeira vez que o via daquele jeito, e isso lhe deixou preocupado, mas decidiu não expor seus pensamentos. A desconfiança em seu rosto, porém, era evidente.

— Não se preocupem — acrescentou Jorge. — Temos alguns vigias lá no alto da montanha. Eles conseguem ver com antecedência se alguém do império estiver a caminho. Vamos ser alertados se qualquer estranho se aproximar da vila.

— Sério? — Goro arqueou as sobrancelhas, impressionado.

— Como eu disse, não se preocupem — repetiu Jorge. O rapaz de cabelo raspado adentrou em seguida ao velho prédio. Convidando os outros dois: — E então? Vamos?

— Sim... — assentiu Colth, seguindo os passos de Jorge.

Os três passaram pela porta e logo notaram, ao fundo do cômodo simples, um único caixote de madeira sobre um velho balcão de pedra. O ar estava impregnado com o cheiro forte de madeira mofada e umidade, fazendo Goro e Colth franzir seus narizes.

— Esperem um segundo, eu vou pegar os cristais — comentou Jorge, se afundando na sala a passos apressados.

— Achei que seriam algumas caixas — disse descontraído Goro, olhando as paredes vazias ao redor.

Jorge não se desviou de seu objetivo. Frente ao caixote, o abriu e passou os olhos no seu interior. Levou as mãos para alcançar o objeto destacado e, quando o tocou com as pontas do dedo pronto para sacá-lo, sentiu algo pressionar o seu ombro direito com alguma força.

— Se tentar qualquer coisa, eu te coloco para dormir por alguns meses — ameaçou Colth, extremamente sério com a palma da mão carregada da magia de Anima.

— Tsc... — grunhiu Jorge, estático.

— O que você está fazendo, Colth? — perguntou Goro, surpreso.

A tensão se elevou em meio a sala vazia com cheiro de madeira mofada.

— Você lembra do que a Iara disse sobre os tais Vanguardas, Goro? — Colth manteve a sua mão carregada de magia sobre o ombro direito de Jorge e continuou a explicar: — Eles queriam a guardiã de Finn morta, eles queriam matar a Garta.

— Sim, Colth, mas... — tentou Goro, mas foi interrompido.

— Nós não concordamos com Bernard nesse ponto! — vociferou Jorge.

— Merda... Então você é um desses Vanguarda? — perguntou Goro. Entendeu a motivação de Colth.

— Isso ficou no passado...

— Ah, conta outra! Vocês trabalharam com Bernard por todo esse tempo — rebateu Colth interrompendo-o, descrente. Mirou os olhos para Goro, tentando lhe convencer: — Hikki me falou tudo sobre esses Vanguardas. E não foi você quem disse que tinha algumas pessoas com Bernard, lá em Tokai, Goro?

— Sim — concordou Goro, pensativo.

— Aposto que eram esses caras...

— Vocês estão errados — disse Jorge, interrompendo Colth, defensivamente.

O homem continuava imóvel frente ao caixote de madeira enquanto rendido pela mão do guardião de Anima sobre o seu ombro.

— Nós já sabemos que Bernard queria apenas a morte de Garta. Você não pode mentir sobre isso! — Colth berrou, sua voz reverberou pela sala vazia com um desapontamento encrustado em seu tom. Ver aquele que considerava um amigo se tornar desleal trazia uma dor aguda em seu âmago. — Não é verdade, Jorge?! Não é verdade que Bernard queria a Garta morta?

— Sim... é verdade — respondeu o rapaz, cabisbaixo com um gosto de arrependimento ao dizer suas palavras. — Mas acredite em mim, eu não fiz isso por mal.

Colth balançou a cabeça negativamente e perguntou sólido:

— Então, por qual motivo está segurando essa adaga?

Jorge suspirou profundamente ao soltar o objeto que não havia sido retirado da caixa. O ruído cristalino se chocando com a madeira do fundo da caixa se fez ouvir em meio ao silêncio repentino. Desarmado, Jorge escondeu o rosto em sua própria sombra.

— Como pôde? — Colth estava desconcertado. — A Garta confiava em você. Eu confiava em você. Poxa, a Iara quase morreu por causa dessa merda.

— A Iara? — perguntou Jorge, parecendo preocupado.

— Sim. Ela quase morreu por conta de um ataque do Bernard. Quase morreu por causa da sua traição.

— Eu nunca traí ninguém! — Gritou Jorge, indignado. Se virou ao mesmo tempo que sua raiva súbita ganhou suas palavras.

Jorge firmou seus olhos no de Colth. Ambos se mostravam em furor ao se encararem. O guardião de Anima não recuou:

— Diz isso, mas estava com o Bernard. E agora... eu nem sei mais...

Colth arremessou as mãos para o ar, mostrando a sua irritação frente ao homem maior.

— Nunca foi a minha intenção machucar a Garta. Vocês salvaram a minha vida, esqueceu? — perguntou Jorge, tentando o entendimento. — Foi a Garta que manteve a região Norte de Albores, a minha casa, segura. E foi você e a Celina que me salvaram naquele dia horrível, no dia em que perdi a Runa!

O homem grande e forte manteve o ímpeto, mostrando a sua irritação. Focou-se em Colth e continuou: — Eu nunca, jamais, trairia vocês. Por que não acredita em mim?

— Então, por quê? Por qual motivo você se juntou ao Bernard, Jorge?

 — Porque você não estava lá! — gritou Jorge, a sua voz cortante. — Porque você não estava, quando nós precisamos, Colth.

Colth deu um passo para trás, seus ombros despencando. Jorge não reduziu a intensidade das emoções em sua voz:

— Eu, Liana, qualquer um de Tera que o maldito Imperador encontrasse, era simplesmente capturado, catalogado, enumerado e jogado em algum trabalho de merda nos arredores da cidade de Última, só esperando para ser levado até a fortaleza e desaparecer para sempre, sem nem ao menos saber o que acontece lá. Nós não tínhamos mais qualquer esperança, completamente desesperados. E você, Colth... Você não estava lá.

O guardião de Anima sentiu a culpa remoer em seu estômago. Encontrou dificuldade em respirar e trouxe a mão colada ao peito procurando pelo ar que lhe faltava. Jorge continuou, seus olhos brilhavam em raiva:

— Foi por isso que eu e a Liana entramos para a Vanguarda. Era isso, ou simplesmente ser levado para aquela fortaleza. Eu vi dezenas, centenas de pessoas nunca retornarem daquele lugar. E a gente nem sabe o que eles fazem lá. Mas Bernard veio até nós. Ele nos deu o que havíamos perdido. Esperança.

Jorge deu um passo à frente, sua voz tremendo com a intensidade de suas emoções, prosseguiu:

— Você não faz ideia do que passamos, Colth. Vivíamos como animais. Nos reuniam em cercados sujos, nos forçavam a trabalhar até o limite das nossas forças. Eu vi crianças e velhos, todos se tornarem apenas pele e ossos, cascas do que eram antes. Quando não tinham mais condições de trabalharem, as pessoas eram arrastadas para longe, para a fortaleza Última e as que voltavam... bem, ninguém nunca voltou. E então, um dia...

Jorge se interrompeu, respirou fundo, lutando contra as lágrimas que ameaçavam cair ao se lembrar dos dias sombrios. Colth sentiu um nó se formar em sua garganta e uma dor crescente em seu interior, sua culpa apenas aumentando.

Jorge voltou aos seus dizeres enquanto cerrava os punhos em ódio e tristeza:

— Eles nos marcavam como gado, Colth. Você tem ideia do que é ter sua pele queimada sob um ferro fervente? — Jorge levantou a manga da camisa, revelando uma cicatriz de queimadura com três números enfileirados. — Essa é minha marca, meu número. Para eles, eu não sou o Jorge, eu não sou ninguém. Sou apenas o número dois, quatro, seis, oito, um objeto a ser usado e descartado quando não for mais útil.

Goro observava em silêncio, visivelmente abalado pela história. Jorge continuou após um segundo de memórias passarem pela sua cabeça.

— Então, em uma noite, quando eu já mal conseguia ficar de pé, recebi a notícia de que seria levado. Mas a Liana me salvou, ela já estava em contato com um grupo que conseguiu escapar com a ajuda de Bernard. — Jorge se mostrou mais sério: — Eu... nós não tivemos escolha. Foi por isso que me juntei a Bernard. Ele nos ofereceu uma chance de lutar, de resistir. Ele nos deu esperança quando não tínhamos mais nada. E foi isso que nos manteve vivos.

— Eu não sabia... — murmurou Colth, a voz cheia de arrependimento.

“O que é isso? O que você está fazendo?” Disse Lashir com a sua voz reverberando pela mente confusa de Colth.

— Ele está certo. Eu deveria estar aqui — disse Colth, sem direção.

— Colth, você está bem? — perguntou Goro, preocupado com o estado do amigo que disse palavras desconexas. — Com quem você está falando?

“Ele está mentindo, Colth.” Lashir continuava a assombrar os pensamentos do guardião. “A Vanguarda estava até agora com Bernard. Você ouviu o que Hikki te disse mais cedo a caminho para cá. Viu o estado da Iara. Viu a preocupação da Garta.”

— Não, Lashir. A culpa é minha. Eu deveria...

— Lashir? — Goro arregalou os olhos, surpreso, e no momento imediatamente seguinte, enfurecido: — Então é isso. A Lashir está com você, não é? Eu devia ter percebido. Ela está viva na sua magia dos sonhos. Merda, Colth, seu idiota.

— A guardiã de Rubrum? — perguntou Jorge. — Ela é extremamente perigosa. Não dê atenção a ela.

“Não escute eles, Colth. Eu te ajudei. Esse brutamontes quer te confundir.” Lashir ecoou suas palavras na mente do rapaz enquanto ele pressionava a cabeça com ambas as mãos, desorientado.

— Eles são meus amigos, Lashir — rebateu ao vento.

— Colth, para com isso — pediu Goro, preocupado.

— Você não pode se deixar levar por ela — aconselhou Jorge.

— Não dá! — berrou o guardião. — Ela está na minha mente.

— E você só fala isso agora? — estranhou Goro. — Você precisa lutar contra ela. Precisa tirar essa megera da sua cabeça, Colth. Ela só quer te usar! Ela matou a Agnes, droga. O que você acha que ela vai fazer?

“Não é verdade, Colth. Você precisa me ouvir. Eu te ajudei. Se não fosse por mim, a Iara estaria morta, esqueceu?” Lashir soou preocupada, apenas Colth podia ouvir sua voz. Com uma dor insuportável que se alastrava pela sua cabeça, o rapaz gritou com toda a sua força:

— Por que está fazendo isso Lashir!? Por favor, pare!

“Eu não estou fazendo nada.”

— Essa dor, é você, não é?

“Não, eu não sei do que você está falando. Esse Jorge é o inimigo! Ele falou aquilo apenas para te perturbar.” Acusou ela, onde apenas Colth podia escutar. Colth rebateu de imediato:

— Eles são meus amigos, Lashir! Agora, pare de provocar essa dor!

“Amigos? Amigos?! Você viu o que tinha na caixa sobre o balcão, não viu?”

— Aah! — gritou Colth, como nunca antes.

Os outros dois em volta se preocuparam ao extremo, mas não sabiam como proceder frente a algo tão incomum. Um pobre homem se contorcendo de dor enquanto parecia discutir com a seus pensamentos em voz alta.

Colth olhou para o fundo do cômodo e, levantando o braço trêmulo, apontou a palma da mão em direção a Jorge.

“Chama isso de amigo?”

— Chama isso de amigo? — repetiu.

“Já chega! Sai da minha cabeça!” Colth tentou expor, mas as palavras não pareciam querer sair em meio a sua dor.

— O que está acontecendo, Colth? — preocupou-se ao extremo Goro.

Jorge não teve reação ao ver os olhos fervorosos de Colth se mostrarem a ele enquanto o guardião erguia a palma da mão esquerda em sua direção.

— Eu não vou deixar que se entregue assim, Colth — As palavras saíram dos próprios lábios do guardião de Anima, mas o jeito de falar, e até mesmo o tom, não pareciam em nada com o dele. — Não vai acontecer.

O guardião de Anima avançou sobre Jorge com uma velocidade impressionante. No momento seguinte, tinha o pescoço do rapaz nas suas mãos.

— Que merda é essa, Colth?! — esbravejou Goro, confuso. Não era para menos, o seu amigo repentinamente estava esganando Jorge com um furor incomum.

“Por quê? Por que isso está acontecendo?” Pensou Colth, sem ter controle do seu próprio corpo. Ele tentava resistir, mas era em vão.

— Argh — Jorge tentou reagir ao sentir as mãos do guardião pressionar sua garganta, mas mesmo que seus músculos aparentassem possuir força para levantar uma pessoa com facilidade, ele não conseguia usar esse poder contra o guardião. Seu vigor parecia se esvair junto com o seu fôlego pressionado.

“Não faça isso, Lashir!” pediu Colth, a dor lhe corroendo.

— Ele é o inimigo, Colth — disse a si própria, em voz alta. — Você viu o que tem na caixa. Sabe o que aquilo significa.

— A caixa? — se perguntou Goro. — O que tem na caixa? — O homem, que ainda estava indeciso diante daquela situação, mirou a caixa sobre o balcão e avançou tentando obter respostas.

Goro rapidamente colocou as mãos dentro da caixa e encontrou o objeto, o trouxe para a luz da sala enquanto as mãos de Colth mantinham controle atroz sobre Jorge que, mesmo sendo muito mais forte e maior que o próprio guardião de Anima, não conseguia reagir diante de uma magia poderosa de um outro mundo.

— Eu posso explicar... — suplicou Jorge.

Goro tinha fixo os seus olhos sobre o objeto em mãos. Reconheceu aquele artefato e perdeu o chão no momento em que se lembrou da última vez que havia ouvido falar dele. Elevou a cabeça e focou-se em Jorge:

— Essa é a adaga do Colth... Quer dizer, a adaga de Sathsai.

— Me deixe explicar...

— Cala a boca! — berrou Colth, com a ferocidade de Lashir. Pressionando mais forte o pescoço de Jorge.

O homem cheio de músculos sentiu o impacto e a magia em suas veias e artérias. No momento seguinte, sangue escorreu pelo canto de sua boca e tingiu seu queixo.

“Pare com isso, Lashir! Você vai matá-lo.” Apelou Colth, em busca de alguma emoção da guardiã de Rubrum. Ela respondeu em voz alta, determinante, utilizando-se do corpo dele:

— Se isso impedir esse moleque de te matar, Colth, então...

“Lashir, me escuta.” disse Colth com alguma dificuldade, a voz completamente abatida. Parecendo o seu último esforço, ele continuou: “Eu confio no Jorge.”

Lashir cessou a sua raiva por um instante, finalmente ouviu a voz de Colth e percebeu a sua fragilidade. Mesmo assim, tentou argumentar:

— Mas Colth, você ouviu o que Hikki disse sobre a Vanguarda e sobre a adaga de Sathsai. Viu que o Jorge estava se armando, justamente, com a adaga de Sathsai e...

“Deve ser algum engano, só pode ser. Eu confio no Jorge...”

— C-como você pode saber? Como pode ter tanta certeza?

— Por que eu confio nele, assim como confio em você, Lashir... Por favor...”

A voz, que era ouvida apenas pela guardiã de Rubrum, reduziu a força até se esvair por completa.

— Colth? — preocupou-se Lashir. Ela imediatamente abriu mão de Jorge, que caiu ao chão buscando ar para os seus pulmões, e se concentrou em sua própria mente: — Colth? Você está aí, Colth?

O silêncio se fez presente em sua mente e no cômodo mofado.

Goro e Jorge, ao suspeitar, se entreolharam espantados e preocupados com a terceira pessoa ao centro da sala.

Jorge já havia se levantado, mas foi Goro quem se aproximou aos passos lentos com os olhos cheios de dúvidas, perguntou:

— Colth?

Assim que o terceiro indivíduo se virou, tudo ficou mais claro.

— Eu não estou ouvindo mais ele. — disse ela preocupada.

— Merda... — sussurrou Goro. Engoliu em seco.

— O que foi? — perguntou ela, estranhando os olhares de Goro e Jorge, sobre si.

— Seus olhos... Você não é o Colth, não é? — sussurrou Jorge, a observando.

Goro deu mais um passo, se aproximando, reconheceu aqueles olhos vermelhos. Não havia como esquecê-los. Enfureceu-se:

— O que você fez com o Colth!?

— Você entendeu errado, eu...

— Cale a boca! Traga o Colth de volta, agora! — Goro avançou, com uma expressão feroz enquanto empunhava a adaga de Sathsai. A lâmina brilhou à luz fraca do ambiente, pronta para qualquer uso, mas então foi interrompido.

Antes que Goro pudesse dar mais um passo, o chão tremeu violentamente, acompanhado por um som poderoso, como uma explosão distante às ruas da vila.

As janelas do prédio vibraram com força, lançando poeira pelo ar e fazendo todos perderem o equilíbrio. Tiveram que lutar contra a própria gravidade para se manterem de pé.

Quando o tremor finalmente cessou, o silêncio tomou conta por um breve momento. Os três se recompunham, ainda tentando entender o que havia acontecido.

— O que foi isso? — perguntou Lashir, soando através do corpo de Colth.

— Pareceu vir do alto da montanha — disse Goro, alarmado, deixando de lado a discussão anterior por um momento.

Jorge, com o rosto pálido, sussurrou quase inaudível:

— Garta...

A palavra escapou de seus lábios, evidenciando seus medos. A aflição em seus olhos era clara. Ele compreendeu imediatamente a origem do tremor e, talvez, o seu motivo.



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