Volume 2
Capítulo 104: Reencontro
Colth emergiu adentrando à oficina com o rosto ainda marcado pela inquietude da revelação que Lashir lhe fizera. Seus olhos, sombrios e carregados, refletiam o peso da informação que agora pairava sobre ele. Respirou fundo, tentando se recompor antes de voltar à mesa onde os outros estavam reunidos, mas sua mente ainda estava presa na conversa que acabara de ter com a guardiã dentro de sua cabeça. Cada passo que dava parecia mais pesado que o anterior.
— Tudo bem, Colth? — perguntou Garta, notando a expressão tensa do rapaz e lançando-lhe um olhar preocupada.
— Sim, só precisava de um momento — respondeu ele, esforçando-se para soar convincente. Se sentou à mesa, tentando ignorar o zumbido persistente em seus ouvidos.
Hikki estava inclinado sobre os dois mosquetes, ajustando os emaranhados de fios e peças de metal, enquanto Beca explicava, pela terceira vez, como os "Choquinhos Faísca" funcionavam. Goro observava com fascinação, ainda provocando a engenheira com suas tiradas sarcásticas. A oficina de Beca era um espaço caótico, mas funcional, com ferramentas espalhadas por todos os cantos, engrenagens e partes mecânicas cobrindo quase todas as superfícies disponíveis.
Colth sabia que precisava agir rapidamente, as palavras de Lashir ecoavam em sua mente, mas ele não podia simplesmente dizer que carregava parte daquela mulher em seu interior, seria apenas um motivo a mais para Beca e Hikki desconfiarem. Sem contar que Garta, provavelmente, também não aceitaria bem aquele fato, foi o que pensou.
Ficou imaginando como faria para revelar tudo isso, dizer que a guardiã de Rubrum estava residindo em sua mente e que tudo o que ele viria propor a partir dali, partiu dela. Mas antes que pudesse se decidir, e de fato, sugerir algum plano para o grupo, alguém bateu à porta, o ritmo das batidas soando não natural, quase melódico.
Colth e Goro sacaram as armas de Beca que estavam sobre a mesa e apontaram para a porta. Garta fez o mesmo, retirando sua espada de outro mundo, trazendo-a após um leve brilho na palma da mão direita e fazendo a arma aparecer no instante seguinte com sua magia. O ambiente, já tenso, ficou ainda mais carregado, cada um dos presentes segurando a respiração.
— Ei, calma aí vocês três — repreendeu Beca, sem intensidade. — Querem destruir minha oficina, é? Baixem as armas.
— O que os Vanguardas estão fazendo aqui, em uma hora dessas? — perguntou Hikki, estreitando os olhos após reconhecer o ritmo nas batidas na porta.
— Eu os chamei — disse Beca.
— O quê? Por quê? — Hikki parecia genuinamente surpreso e alarmado.
— Para nos ajudar, não é óbvio? Precisamos de toda ajuda que pudermos conseguir. — Beca se levantou com a intenção de atender a porta, seus passos ecoando pelo chão de madeira desgastada.
— Vai trabalhar com eles? — Hikki perguntou, um tanto eufórico. — Eu não aprovei isso.
— Deixa de ser chato. E vocês, — Beca se virou para os outros três à mesa — eu já disse para baixarem essas armas.
Colth, Goro e Garta se olharam antes de concordarem em seguir a solicitação da pequena engenheira. Lentamente, baixaram suas armas, mas permaneceram atentos, a tensão ainda evidente em seus rostos.
— Aff — Beca suspirou antes de finalmente abrir a porta de onde vinham as batidas em ritmo específico. Ao colocar os olhos nos de fora, disse: — Vamos, entrem, estão atrasados.
Duas pessoas adentraram ao lugar, uma mulher mais velha e um rapaz jovial alto. A engenheira fechou a porta antes que um deles se pronunciasse:
— Não é fácil andar pelas ruas se escondendo — justificou a mulher. — Além disso, tem mais homens do imperador do que o normal rondando a cidade.
— Claro, claro... — desconversou Beca, sem interesse aparente, enquanto observava os recém-chegados.
— Eles realmente estão aqui? — perguntou o homem de roupas escuras e um casaco pesado. Sua cabeça raspada e os olhos cheios de vida eram fáceis de reconhecer.
— Sim, venham logo. — Beca respondeu com a sua superioridade no revirar dos olhos. Caminhou em direção de volta à mesa e elucidou todos ao se encontrarem no centro da oficina: — Acho que alguns de vocês já se conhecem, mas se não estão lembrados...
— Jorge! — Garta e Colth, uníssonos, assim como a surpresa e a empolgação de vê-lo.
— Ah! — o rapaz deu um grande e belo sorriso — Vocês estão iguaizinhos como eu me lembrava.
— Você está bem diferente — disse Colth, em bom humor ao rever o garoto em suas memórias, notando como o tempo havia transformado o jovem em um homem robusto e confiante.
— Que droga... — sussurrou a mulher ao lado de Jorge. — Eu ainda tinha esperança dessa história de não ter passado o tempo para vocês, ser só uma lenda. Mas parece que eu realmente sou a mais velha aqui.
Jorge coçou a cabeça, um tanto confuso, comentou:
— Mas, mesmo que eles não tivessem se envolvido na explosão de magia, e tivessem vivido normalmente, você ainda seria a mais velha, Liana.
A mulher fechou a cara e, plenamente triste, finalizou:
— Ah! Cala a boca.
— Hahaha — riu verdadeiro Jorge. Se voltou aos velhos amigos: — Como é bom ver vocês.
— É bom ver você também — Garta respondeu ao sorriso. Ela não conseguiu disfarçar o quanto estava impressionada em ver o “moleque bobo da vizinhança” se tornar aquele homem grande e forte com quase a mesma idade sua.
— Como vocês vieram parar aqui? — perguntou Colth, interessado. — Quer dizer, a última vez que nos vimos foi em Tekai, antes do mundo acabar.
Liana e Jorge se olharam como se procurassem as lembranças um no rosto do outro.
— Ah, sim, sim. Nossa — respirou fundo o rapaz da cabeça raspada com os olhos distantes se lembrando —, aconteceu tanta coisa. Por onde eu começo...
— Não, não — interrompeu Beca, se colocando em meio a eles. — Não vai começar nada. Não, sem antes me entregar os cristais.
— Tá brincando, Beca? Quer que eu suba com eles até aqui? — perguntou Jorge, chocado.
Mas é claro. Você é idiota? Por que já não subiu com eles?
— Porque você disse que era para deixá-los na entrada da vila, esqueceu?
— A... — disfarçou ela. — Temos outros planos agora. Leva a Garta, o Colth e o outro idiota com você, para te ajudar a trazer os cristais. Eu preciso conversar com a Liana.
— Só pode estar brincando... — murmurou Jorge. Em seguida se voltou aos outros na mesa: — Vocês podem me ajudar?
— Claro — disse Colth, enquanto Garta e Goro concordavam.
— Espera — Hikki se levantou chamando a atenção. —, a Garta não pode ir.
— Ué? Por quê? — perguntou Goro. Todos estranharam, mas foi ele quem deu voz ao sentimento.
— É... eu preciso conversar com você, Garta.
Os três rapazes olharam para a guardiã, esperando a resposta simples:
— Tá. Tudo bem — concedeu Garta.
— Bom, então somos só nós — concluiu Jorge, para os outros dois homens. — Vamos lá.
O rapaz saiu da oficina acompanhado por Colth e Goro. O brilho do sol entre as nuvens o recebera radiante. Ambos os forasteiros procuraram pela rua vazia, mas não acharam nada.
— Não precisam se preocupar — disse Jorge, iniciando a caminhada pela rua calçada em pedra. — Aqui vocês estão seguros. Essa é a vila de Nova Tera, não tem nenhum soldado do imperador por aqui.
— Nova Tera? — perguntou Colth, acompanhando os passos do guia.
O lugar exalava uma simplicidade acolhedora em meio a brisa leve da altitude. Situada no alto de uma montanha, a vila parecia um refúgio perfeito, e trazia uma familiaridade para Colth e Goro que não podiam deixar de compará-la com Toesane, sua cidade natal. Pequenas casas de madeira, com telhados inclinados e janelas de vidro colorido, formavam fileiras ordenadas ao longo de ruas de pedra que serpenteavam pela encosta.
— Quase todos daqui vieram do mundo de Tera.
— Vocês construíram tudo isso em nove anos? — perguntou Goro, impressionado com as construções simples de pequenas casas ao redor.
— Não. A vila já existia, nós só a repopulamos. Há muito tempo, ela foi inteiramente abandonada, quando Lux atacou e praticamente dizimou o mundo de Finn — explicava Jorge — É um lugar meio isolado por conta das montanhas, mas não é tão longe da fortaleza última e da cidade.
Colth respirou fundo o ar puro e fresco, carregado com o perfume dos pinheiros que circundavam a vila e o som suave do vento sussurrando entre as folhas. A tranquilidade era quebrada apenas pelo canto dos pássaros e o riso das crianças brincando nas ruas.
— Repopularam? — Colth se perguntou em voz alta, refletindo. — Então, o Aldren deu uma nova oportunidade às pessoas de Tera?
— O quê? Não. Quer dizer, no começo essa foi a promessa — respondeu Jorge, ganhando um tom mais sério. — Mas tudo começou a ganhar um rumo estranho quando pessoas começaram a desaparecer.
Colth parou, seu olhar se fixando nos olhos de Jorge, a preocupação evidente em sua expressão.
— O que você quer dizer com “rumo estranho”?
Jorge suspirou, olhando ao redor como se para se certificar de que ninguém mais estivesse ouvindo. Trouxe a resposta:
— Não sabemos ao certo, mas é óbvio que algo está muito errado. As pessoas que desapareceram são todas de Tera. No início, pensamos que era apenas coincidência, mas logo ficou claro que era algo constante.
Goro, que até então observava em silêncio, franziu a testa e apressou:
— O que você está insinuando, Jorge?
— Aldren está sequestrando as pessoas que ele prometeu proteger. Ele está mandando levá-las à força para algum lugar. Não sabemos exatamente para onde, e nem o porquê, mas está acontecendo.
— Lashir está certa... — sussurrou Colth, como se seu pensamento tivesse escapado involuntariamente.
— Lashir? — Goro reconheceu o nome, mas não entendeu o contexto. — Do que você está falando, Colth?
— Quem? — perguntou Jorge, ao silêncio do rapaz.
Colth sentiu um frio percorrer sua espinha. As palavras de Jorge ressoavam com as advertências de Lashir e pareciam se encaixarem perfeitamente. Se decidiu.
***
— Ufa... Essa foi por pouco — sussurrou Koza, pendurado precariamente no parapeito da janela no alto exterior da fortaleza Última.
Seu coração batia acelerado, e ele sentia cada pulsação ecoando em seus ouvidos enquanto o vento lhe acertava forte. Observou com olhos atentos enquanto Aldren, o imperador, deixava a biblioteca para trás, a figura imponente desaparecendo nos corredores.
— O que esse tal imperador está planejando afinal? — murmurou Koza para si mesmo, enquanto com suas garras cravadas nas paredes externas de pedras rústicas.
A criatura pequena e ágil, de escamas brilhantes e olhos penetrantes, se atirou para o alto, agarrando-se às saliências da fortaleza. Sua respiração rápida e o esforço físico faziam seu corpo tremer ligeiramente. Enquanto escalava em direção à janela mais alta, ao piso mais superior da fortaleza, seus pensamentos estavam em tumulto: “Não importa o que ele está planejando. Eu preciso achar a Celina, mas essa forte magia emanada em todas as direções dificulta saber onde ela está. Até parece a magia de Lux, mas isso é impossível, não?”
Koza forçava cada músculo pequeno de seu corpo, sentindo a aspereza das pedras contra suas garras enquanto o vento lhe balançava.
“Qual o motivo de isso ser tão alto? Mais um pouco e eu vou alcançar o céu. Ah, esquece isso. Vamos, Koza, só mais um pouco.” Ele se motivava, sentindo cada vez mais a urgência de sua missão.
Finalmente, alcançou o parapeito da janela mais alta. Com um último esforço, se ergueu, permitindo-se um breve momento para visualizar a paisagem. Seus olhos se arregalaram diante da vastidão.
“Uau. Daqui dá para ver toda a cidade,” pensou, maravilhado.
A cidade abaixo se estendia, um emaranhado de ruas e edifícios que pareciam minúsculos àquela altura e finalizavam aos pés de uma cadeia de montanhas que se misturavam ao horizonte e brilhavam sob a luz do sol tímido entre as nuvens.
Virando-se para olhar para o interior da janela gradeada por barras de metal sem vidro, Koza foi imediatamente impactado por uma visão horrenda. Seus olhos, ainda cheios da beleza da vista exterior, se arregalaram ainda mais, agora em choque. “Mas que...” Não conseguiu concluir o pensamento. Ficou pasmo, seu corpo inteiro paralisado pelo horror.
No interior, uma câmara com pouca luz imersa em um cenário que parecia vir de um pesadelo. O chão de pedra fria estava repleto de cadáveres e restos de corpos humanos, uma visão macabra que foi acompanhada pelo ar com um odor pútrido e metálico.
A luz fraca que entrava pela janela criava sombras grotescas, acentuando a morbidez do cenário. Mais ao fundo, sobre uma plataforma elevada que mais parecia um altar, o corpo de uma bela mulher estava preso por correntes e cabos que se entrelaçavam por seus membros e perfuravam sua pele por várias vezes.
A mulher parecia desacordada, embora seus olhos estivessem abertos e brilhantes, fixos no teto da câmara alta. Sua postura ajoelhada, com o rosto voltado para cima, dava-lhe uma aparência trágica e desolada, quase divina em sua agonia.
Koza prendeu a respiração, completamente impactado. Sua mente tentava processar a cena grotesca diante dele, mas as palavras mal conseguiam sair de sua boca. Gaguejou, sentindo um nó se formar em sua garganta:
— E-essa é a Deusa mãe... Lux?
Seus olhos se perderam pelo cenário, a visão preenchida com uma preocupação crescente. Sabia que a situação era muito mais grave do que imaginava, fazendo com que a urgência de encontrar Celina se intensificasse ainda mais em seu peito.