Volume 2

Capítulo 103: Reflexão

— Eu as chamo de Choquinho Faísca — disse Beca elevando o nariz cheia de orgulho. — É a mais nova atualização de uma ferramenta que venho aprimorando há algum tempo.

Colth e Garta encheram os olhos de curiosidade vendo as tais “ferramentas” que mais pareciam dois mosquetes de cano curto. Ambos tentavam entender para o que aquele emaranhado de fios e peças de metal serviam. A mesma dúvida era vista no rosto de Hikki e Goro que seguravam as duas peças incomuns.

Goro se manifestou enquanto investigava o objeto em mãos:

— Essa é a sua tal vantagem? O que exatamente essa coisa faz?

— Oras — Beca em réplica, desafiando-o —, com esse nome, não é óbvio?

Goro afiou os olhos e disse sarcástico:

— Deixa eu pensar, isso dispara arco-íris e amizade.

Beca fechou a cara imediatamente:

— Se não gostou do nome, então porque não pensa em um melhor e...

Goro interrompeu-a, a voz sincera:

— Não, não. Eu adorei esse nome. Eu só não entendi o que essa coisa faz, na verdade.

— Espera. Está falando sério? Você realmente gostou do nome? — perguntou a engenheira com um brilho nos olhos.

— Sim, eu falo sério. Juro pela vida do Colth.

— Idiota, não coloque a vida dos outros nos seus juramentos — reclamou Colth, sem que suas palavras surtissem efeito no argumento do rapaz.

— Então, não achou estranho o nome? — refez a dúvida Beca, se certificando.

— De forma alguma, nanica — disse Goro, parecendo genuíno. — Combina perfeitamente com você. Eu não poderia ter dado um nome melhor.

— Sério?

— Sim, sim — confirmou Goro, acenando positivamente com a cabeça para ela.

— Qual é a desses dois? — sussurrou Garta, ao lado de Colth. — Ele está zombando, não é?

— Eu não teria tanta certeza — respondeu Colth com sinceras dúvidas sobre a estranha conversa entre aqueles dois.

— Já chega disso — interrompeu Hikki, mirando suas palavras à engenheira: — O nome pouco importa. O que exatamente essa coisa faz, Beca?

A mulher de pouca estatura revirou os olhos de forma a se mostrar entediada:

— Ah, eu vou explicar de uma forma que até uma criança vai entender: O Choquinho Faísca possuí uma pedra de Sathsai, no centro dessa bobina. — Beca apontou para o emaranhado de fios ao redor do objeto metálico que Hikki segurava. Continuou: — Quando você apertar esse gatilho, a Sathsai vai gerar um campo elétrico forte o bastante para a eletricidade escapar, mas a resistência do ar não deixaria essa corrente elétrica ir muito longe, além disso, a eletricidade segue caminhos aleatórios no ar. Por isso que raios em uma tempestade fazem desenhos tão incomuns no céu e nunca se repetem, mas é aí que o Choquinho Faísca brilha. Eu tive a esplêndida ideia de usar uma pequena, minúscula, parcela da energia da pedra de Sathsai para atirar um feixe de energia praticamente imperceptível, cerca de um por cento da energia de que um disparo do mosquete de Sathsai fornece. Isso não é suficiente nem para fazer cócegas em um inimigo, mas é o bastante para abrir caminho em meio a resistência do ar para que a corrente elétrica gerada pela bobina percorra uma linha reta até o alvo. Desse modo, o Choquinho Faísca usa menos energia por disparo se comparado a um mosquete de Sathsai e não sobreaquece, fazendo com que os disparos possam ocorrer mais frequentemente, chegando a trinta e seis para um. — Beca elevou o nariz mais uma vez, seu orgulho transbordando — Uma cadência de disparos inimaginável, mas que eu tornei real, o que acharam? Não precisam dizer nada, eu sei que é genial.

Os outros quatro se entreolharam brevemente, reconhecendo a dificuldade em acompanhar os detalhes técnicos da engenheira. Goro ergueu a mão como se estivesse em uma sala de aula.

— Você, qual é a sua dúvida? — permitiu Beca, apontando para o rapaz.

— Com que tipo de criança você convive, ou conviveu, nanica? — perguntou Goro, cheio de seu sarcasmo, mas verdadeiramente confuso.

— Aff... — a mulher expirou superioridade.

— Beca, dá para resumir isso? — solicitou Hikki, impaciente.

Mais uma vez a engenheira revirou os olhos antes acatar o pedido e simplificar sua explicação: — Isso aqui é um mosquete de Sathsai que atira muito mais rápido do que o normal.

— Ah, então é mesmo uma arma, agora eu entendi — rebateu Goro.

— É claro que é uma arma! O que mais seria? — A engenheira se sentiu atingida e imediatamente demonstrou a sua irritação no olhar penetrante.

— Não liga para ele, Beca. Isso é mesmo uma vantagem. Vai realmente nos ajudar — comentou Garta, satisfeita, tentando amenizar. — Você é Impressionante, como sempre.

— É claro que eu sou. Humpf — A inventora cruzou os braços ergueu o queixo.

— Por que nunca falou sobre isso para mim? — perguntou Hikki, em direção à engenheira, se sentindo contrariado.

— Porque você é muito chato com essas coisas. Da última vez que te mostrei uma invenção, você me fez descontinuar o projeto, esqueceu? — explicou Beca, com uma pitada de frustração.

— Você é tão teimosa — reclamou Hikki. Pareceu preocupado, talvez desconfiado dos perigos que aquela coisa poderia trazer. Desfez: — Que seja então.

Finalizou ele, colocando a arma sobre a mesa e se sentando. Goro fez o mesmo, antes de Beca os acompanhá-los com um sorriso convencido no rosto:

— Dois Choquinhos Faísca. Isso vai surpreender tanto o imperador, que ele vai ter desejado nunca ter apontado uma arma para mim.

Colth impactou-se com a nova informação. Perguntou de imediato com uma curiosidade latente:

— O Aldren realmente apontou uma arma para você?

— Humpf. — Beca franziu a testa demonstrando mais do que raiva: — Ele não só apontou, como também atirou em mim. Por sorte, errou, o disparo não me atingiu em cheio, e eu sobrevivi após rolar morro abaixo em uma floresta próxima daqui.

— Faz sentido ele errar um alvo tão pequeno — comentou Goro, com a língua afiada.

Beca apertou ainda mais os olhos encarando o rapaz, mas logo em seguida voltou ao assunto que importava:

— Eu consegui escapar com a ajuda do Hikki. Ele encenou minha morte dizendo que tinha concluído o trabalho e me matado. Estou escondida aqui, desde então.

— Por qual motivo o Aldren tentou te matar, afinal? — perguntou Garta, intrigada.

— Digamos que, eu sabia demais. E ele também não precisava mais das minhas invenções — elucidou Beca, continuou ao se lembrar do momento que fez sua decisão: — Me arrependi de tê-lo ajudado a capturar Lux, e não cometeria o mesmo erro novamente. Me neguei a cooperar em "dar o próximo passo", então ele simplesmente me descartou.

— Próximo passo? — perguntou Colth, preocupado.

Beca o encarou antes de responder diretamente:

— Transferir todo o poder de Lux para si.

— O cara quer se tornar um deus? — perguntou Goro, debochado.

— O deus, para ser exato — corrigiu Beca, colocando em evidência o singular.

— E isso é possível? — perguntou Garta, intrigada.

— Eu não sei — rebateu a engenheira. — Recusei antes mesmo de pensar a respeito. Mas não importa, ele parece ter encontrado outro método. Não é à toa que me dispensou.

“Conceito de Unidade” sussurrou a voz na cabeça de Colth. O rapaz imediatamente escondeu o rosto e murmurou apenas para si:

— O que você disse, Lashir?

“É só uma ideia maluca que o Hui tinha. Algo insano e grandioso. Ele queria criar uma versão distorcida da Unidade de Lux, uma fusão absoluta de consciências e poderes, mas nunca teve energia mágica o suficiente, até então. Mas agora o imperador tem.”

— Com licença, pessoal — Colth se levantou em meio a conversa dos outros a mesa. Todos ficaram em silêncio, com a atenção voltada a ele. — Vou ao banheiro.

— E precisa anunciar isso, é? — perguntou Goro, amargurado dando voz aos outros.

— Desculpa. Com licença — repetiu Colth, para então caminhar em direção ao banheiro.

Adentrou ao lavabo enquanto ouvia a reclamação dos outros que ficaram a mesa sobre o seu estranho e repentino comportamento.

Colth trancou a porta e imediatamente foi até a pia de porcelana barata, olhou nos seus próprios olhos no espelho pendurado a parede e perguntou em voz baixa:

— O que isso significa? O que o Aldren tem, Lashir?

“Como que eu fui ficar presa em uma mente tão idiota? Não é possível.” Reclamou a voz na cabeça do rapaz antes de retornar a verdadeira resposta: “Qual foi a coisa que mais se destacou nesse mundo, para você, quando comparado ao mundo de Tera?”

— Hã... O clima mais frio? — se perguntou Colth. — Ainda bem que o chuveiro tem a água quente.

“Exatamente. O chuveiro, mas não só ele. Percebeu como que o automóvel que te trouxe até aqui não fazia barulho? Percebeu como durante a noite a cidade é clara? Como tem luzes nesse lugar?”

— Aonde você quer chegar?

“Tem um outro motivo, além da engenheira irritante, que fez esse lugar prosperar tão rápido.”

— E seria?

Lashir fez a sua voz mais séria:

“A fonte de energia, praticamente ilimitada, que o imperador subjugou.”

— Espera. — Colth pensou por um segundo, encarando a si próprio no reflexo do espelho — Está dizendo que Lux é a energia para tudo isso?

“Veja o seu tão amado chuveiro de água quente. Está vendo alguma fonte de energia?”

Colth buscou com os olhos o chuveiro no alto da parede ao fundo do banheiro. Lashir continuou:

“Não tem fogo, vapor, energia elétrica, pedra de Sathsai ou qualquer outra fonte de energia conhecida em meu mundo, ou no seu, abastecendo esse chuveiro. Isso é pura magia. Magia que está abastecendo tudo nessa cidade.”

— Caramba... — impressionou-se Colth.

“É, eu sei. Mas não acaba por aí. Com essa magia em poder do imperador, ele pode tentar concluir o conceito distorcido de unidade que Hui tinha.”

—Tá, tudo bem — Colth voltou-se ao espelho e focou-se em entender as palavras que vinham da sua própria mente compartilhada: —, me explica como isso funciona, essa tal unidade.

“Basicamente, uma transferência de magia entre guardiões. É como eu posso resumir.”

— Isso não é algo que sua magia como guardiã de Rubrum fazia?

“Não. Minha habilidade permite coletar o poder mágico que está no sangue que corre nas veias de um guardião, mas assim que eu utilizar esse poder mágico, eu não sou mais capaz de usá-lo. Isso que o Hui pretende é diferente, é uma incorporação da magia de um guardião por outro. Algo semelhante ao que você conseguiu, Colth.” Finalizou pensativa.

— Eu? — perguntou o rapaz, surpreso.

“Droga...” Um ar de preocupada surgiu no tom dela. “Agora eu entendi. Merda. Hui, seu filho da puta.”

                                               ***

Aldren atravessou os corredores ornamentados e adentrou à biblioteca da fortaleza Última com alguma pressa. Sua capa real arrastando-se atrás dele enquanto se aproximava de Caio, que estava imerso em uma pilha de livros antigos sobre a mesa central do cômodo.

— E então. Como ela está? — Aldren indagou, sua voz acelerada.

Caio ergueu o olhar brevemente, os tirando das velhas páginas amareladas do livro que o envolvia.

— Foi apenas uma recaída. Ela está estável por agora — respondeu, seu semblante marcado pela preocupação. — Mas precisamos nos apressar. O tempo está contra nós.

— Sei disso muito bem. Onde está aquele maldito de...

Antes que Aldren pudesse concluir sua frase, um brilho intenso surgiu no grande espelho ao canto da biblioteca em meio as pilhas de livros, e Hui emergiu de sua superfície reflexiva.

— Falando nele — comentou Caio, sua voz de desconfiança.

Hui sorriu enigmaticamente ao entrar na sala e trouxe suas palavras em mesmo tom:

— Parece que minha presença era aguardada. O que posso fazer por vocês?

Aldren, mais do que impaciente. ergueu a voz no alto de sua autoridade inquestionável:

— Onde você estava? Deveria estar nos preparativos para...

— Ah, realeza, você se preocupa demais — respondeu Hui ao interromper o homem, sem qualquer apego à reverência. Com um sorriso enigmático ainda pairando nos lábios, continuou: — Não é como se ela pudesse fugir das suas mãos, não é?

— Você não entende. Eu estou protegendo milhares de pessoas. É minha responsabilidade manter esse império...

— Claro, claro, imperador — interrompeu Hui, mais uma vez. — Eu vou terminar os preparativos em algumas horas, como planejado. Mas ainda está faltando uma peça fundamental para tudo isso funcionar, esqueceu?

A pergunta de Hui foi exacerbado em provocação. Aldren franziu o cenho, seu desagrado evidente:

— Eu já estou cuidando disso. Agora, volte ao trabalho.

Hui inclinou a cabeça, seu sorriso se alargando de maneira perturbadora, aceitou:

— Como desejar, imperador. Deixarei tudo preparado, só aguardando a sua vontade.

O homem indecifrável se virou e caminhou pela biblioteca em direção a porta dupla que o levaria ao corredor principal da fortaleza e deixou o lugar.

— Esse cara é muito esquisito — comentou Caio, antes de se voltar aos seus livros.

Aldren, após um silêncio pensativo, suspirou descontente e então ordenou brevemente ao homem que restou:

— Vá com ele, Caio. Não deixe que o Hui faça nada imprevisível.

— Hã?  — Caio foi pego de surpresa com o pedido. — Ah, claro. Sim.

Ele rapidamente se dirigiu a saída da biblioteca, repetindo os passos de Hui. Antes de passar pela porta, porém, ouviu um último pedido do imperador:

— Ah, Caio, mais uma coisa.

— Sim? — se dispôs.

— Tente não machucar a Celina, tá legal?

Caio mais uma vez se surpreendeu, dessa vez devido os olhos misericordiosos de Aldren. O subordinado respondeu tentando não hesitar mais do que já havia:

— Sem machucá-la. Tudo bem, farei o possível.

Confirmou mais do que com as palavras. Acenou positivamente com a cabeça e recebeu o mesmo gesto do imperador.

— Agora, vá — finalizou Aldren, dispensando o rapaz.

A porta se fechou, trazendo de volta o vasto silêncio à biblioteca. O ambiente, preenchido pelo cheiro de pergaminhos antigos e móveis de madeira polida, parecia envolver Aldren em uma tranquilidade forçada. Ele respirou fundo, tentando encontrar clareza em meio aos pensamentos tumultuados. Lentamente, virou-se em direção à janela, por onde a luz do sol invadia o lugar.

Enquanto procurava organizar suas ideias sob a luz suave, algo do outro lado do vidro desenhado à mão chamou sua atenção. Um movimento rápido e inesperado, do lado de fora, uma pequena criatura que saltou para além da vista da janela.

— Aquilo era um sapo? — murmurou Aldren, um tanto surpreso. Em seguida reclamou solitário: — Onde foram parar os empregados que mantêm esse lugar limpo?

Se desapegou da estranheza que era ter um sapo escalando as paredes exteriores da fortaleza. Deu de ombros, e caminhou para fora da biblioteca com seus objetivos em mente.



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