Volume 1

Capítulo 8: Faces da Felicidade

A caminhada pelas ruas apertadas da região Norte da Capital já durava alguns poucos minutos, Colth e Garta seguiam em direção ao Sol prestes a se pôr.

— Então vocês são do tipo de pessoa que dão drogas para os outros dormirem? — disse Colth puxando conversa em meio a uma viela cinzenta.

— Se você está falando da Celina, saiba que ela concordou com isso. — respondeu Garta rumando os passos para um objetivo único.

— Você acha que eu nasci ontem?

— De repente ficou com vontade de bancar o esperto?

— Não. Eu só não gosto de ver pessoas com más intensões se aproveitando dos outros.

— Então não precisa se preocupar. Não temos más intensões — ela respondeu com um tom debochado ao virar a esquina deserta sob as sombras do grande muro fronteiriço da Capital.

—  É o que uma sequestradora falaria.

— Ah? Claro, uma sequestradora ajudaria um inútil como você a escapar dessa porcaria de cidade.

— Tá bom, já entendi. Não estou em posição de discutir isso — disse enganando a si mesmo de que havia se convencido. — E então?

— Já chegamos — concluiu em um tom desanimado.

A Capital era cercado por um grande muro fronteiriço que excluía todas as outras seis cidades do reino de Albores. Recentemente, o império havia anexado todas àquelas cidades, incluindo Toesane, morada de Colth, mas não mudou muito o seu tratamento com os habitantes desses lugares, a não ser pela permissão dos cidadãos de fora trabalharem nas fabricas e outros serviços braçais. Era difícil de esquecer essa realidade quando os muros ficavam visíveis ao redor da vizinhança.

A mulher se virou para o prédio estreito de três andares que tinha os vidros de suas janelas quebrados, a faixada pichada, e uma única simples porta de metal enferrujado para acesso, entrou por ela sem cerimônia. Colth apenas seguiu enquanto controlava a sua curiosidade.

Assim que passou pela porta, Garta foi imediatamente recepcionada pela fala de um homem no fundo do velho comércio:

— Ah. Se não é o cão de guarda do Edgar, Garta. — A recepção em tom animado veio de um velho atrás de um balcão de madeira desgastada.

— Deixa que eu resolvo, fique aqui — a guardiã ordenou Colth antes de mergulhar mais fundo na loja.

O lugar era um corredor largo, uma sala escura com poucas luminárias sobre diversas prateleiras desorganizadas, algumas vazias, outras lotadas dos mais diferentes objetos. O velho comerciante se levantava da sua cadeira e se debruçava sobre o balcão maltratado para atender a mulher.

— Não estou com muita paciência hoje, velho — respondeu ela enquanto caminhava até os fundos.

— É claro que não — o comerciante se resumiu. — O que te traz aqui?

Colth aceitou as ordens da mulher, permaneceu na entrada da loja observando o que podia dali. Velharias, objetos sem servidão, armas usadas, e mais um monte de quinquilharias que eram acobertadas pela espeça poeira acumulada de anos nas prateleiras encostadas as velhas paredes rachadas chamava a atenção dele enquanto o seu ouvido se concentrava na conversa distante.

— Duas coisas que eu preciso — continuou Garta. — A primeira, uma válvula de 4 milímetros. E a segunda, uma passagem para Toesane.

— Ah, ótimo. Quer um elefante voador também? E que tal uma criatura sombria de estimação? — O velho jogou os seus braços para o alto gesticulando o seu deboche. — Você tá de brincadeira comigo?

— É tão difícil conseguir uma válvula dessas?

— Não. O problema não é a maldita válvula. — disse ele colocando as suas duas mãos sobre o balcão de modo a mostrar a valia do assunto. — Você sabe, o quão difícil está para sair da Capital nesses últimos tempos? O ministério da Defesa agora tem regras até para você ir mijar no banheiro de uma estação de passageiros.

— Qual é, Frederic? Pare de tentar fazer parecer algo infinitamente mais valorizado do que realmente é...

— Eu falo sério, garota. Parece que essa mudança repentina de política do governo é para evitar a fuga de mão de obra. Boatos dizem, que encontraram uma mina de recursos preciosas bem aqui no subsolo da Capital. Vão precisar de muitos trabalhadores nos próximos messes.

— E você acreditou? Sério? Que baboseira. — Garta frisava o seu desdém.

— O que mais explicaria essa política? Quem sabe o que pode ser? Talvez prata? Ouro? Ou quem sabe, cristais de Sathsai?

Pfff. Achei que a velhice trouxesse a sabedoria. — Mais desinteresse por parte de Garta. — E então, o que você pode fazer?

— A válvula, eu tenho aqui. São 9 Malpezas. — Frederic colocou o objeto que se assemelhava a uma pequena lâmpada sobre o balcão, em seguida, continuou com a proposta. — Quanto a passagem, vou precisar de alguns dias para conseguir uma falsificação ou coisa parecida.

— Quantos dias?

— Eu não sei. Talvez uma semana ou mais.

— Uma semana!? — Garta quase subiu sobre o balcão ao se surpreender. — Não, não. Você consegue antes, vai. Eu sei que você tem até passagens pelos muros por onde consegue suas várias mercadorias. Eu pago o que for necessário para você simplesmente contrabandear alguém por lá, que tal?

— O problema não é o dinheiro — suspirou ele. — De fato, eu tenho fornecedores que utilizam uma abertura no muro. Mas é para Tekai, não tem nada parecido com isso na direção de Toesane. Mesmo que eu quisesse, eu não consigo.

— É só expurgar uma pessoa da Capital, qual a dificuldade?

— Expurgar? — se surpreendeu com a escolha da palavra — Tá falando daquele ali? — Frederic apontou com os olhos para Colth que observava os restos de uma armadura prateada jogada ao canto da loja.

— Não importa quem seja — Garta deu de ombros. — Você consegue ou não?

— Quantas vezes eu vou ter que repetir?

— Argh. — A mulher fechou os olhos para engolir a realidade. Esfregou a mão sobre rosto tentando se livrar da amargura enquanto aceitava a proposta. — Tá certo. Uma semana e nada mais. Só consegue isso, tá bom?

A mulher colocou as nove moedas sobre o balcão e agarrou a válvula pedida por Bertha antes de dar meia volta e voltar para a entrada do comércio.

— Foi um prazer fazer negócios com você, Garta. — se despediu o lojista.

— E então? Você conseguiu? — perguntou Colth ao deixar o comércio ao lado da guardiã.

— Não — Garta rosnou a resposta com os olhos enfurecidos.

                                               ***

Ambos fizeram o caminho de volta enquanto a tarde começava a dar lugar a noite. Assim que chegaram na praça comercial, que já possuía os enfeites e as decorações para as comemorações do dia da Lua completos, Garta atravessou o local e parou na entrada de um outro prédio, exatamente em frente ao letreiro do restaurante Gato Implacável.

— Entre, suba as escadas até o primeiro apartamento. Espere por mim — resumiu sua impaciência com poucas palavras.

— O quê? Como? Que lugar é esse? — Colth estava completamente confuso enquanto a mulher já havia se virado e o deixado para trás.

— Eu disse que já volto... Só faz o que eu mandei — irritadiça, avançou os passos em direção ao restaurante do outro lado da praça que aos poucos enchia de convidados para as festividades.

“Que garota arrogante. Arrogante e irritante.” Pensava Colth enquanto observava o prédio comercial com apartamentos nos dois andares superiores. No térreo, a placa “Alfaiataria da Runa” indicava o comércio que já se encontrava fechado devido ao horario.

Colth entrou pela passagem simples da lateral do lugar que dava acesso as escadas estreitas e, assim como ordenado, subiu até o primeiro apartamento. Quando abriu a porta viu uma moradia quase completamente vazia, já havia imaginado que teria que passar a noite ali, não se surpreendeu.

— Nada acolhedor — disse em um sussurro para si mesmo no momento em que passou pela porta e obteve a sua primeira impressão.

Dois cômodos e um banheiro, basicamente uma grande caixa de concreto, haviam duas camas simples, quase que coladas uma na outra no que parecia o quarto, um pequeno armário, e uma pequena janela na parede dos fundos por onde os últimos raios de Sol iluminavam o ambiente com cheiro de bolor a meia luz.

— Não é por muito tempo, né? — Colth dizia em voz alta para se convencer de que não era tão ruim quanto parecia.

A voz dele ecoava pelas frias paredes do minúsculo quarto e retornava aos seus próprios ouvidos trazendo-lhe uma sensação solitária. Com apenas três passos, caminhou de volta até o centro do apartamento e puxou uma fina corda vinda do teto. A lâmpada pendurada de modo precária no teto, se esforçou para acender e iluminar cômodo com a sua fraca luz amarela.

Sua preocupação com o lugar só perdeu força quando ouviu o barulho das festividades vindo da praça. Colth alcançou a única janela do cômodo e a abriu para deixar a brisa da recém noite entrar e os sons alegres da praça tomarem o ambiente.

Alguns artistas com diferentes instrumentos musicais acabavam de se estabelecer abaixo da tenda acinzentada e eram destacados pelas diversas lâmpadas instaladas mais cedo no centro da praça.

Não podia haver um festival sem música, foi a partir das primeiras notas tocadas pelo violão e pela flauta comprida dos musicistas, que realmente podia se dizer que a festa do dia da Lua havia começado.

Crianças brincavam, casais dançavam, pessoas se divertiam. Colth abriu um sorriso contagiado ao ver a felicidade compartilhada, se debruçou sobre o parapeito da janela e deixou a música passar pelo seu corpo. Não durou muito tempo, a porta da frente do apartamento bateu sem aviso.

Garta já havia entrado na residência trazendo com sigo mais um, Aldren a seguia de perto enquanto tagarelava.

— Então o esconderijo de vocês fica dentro da Capital? Isso é bem impressionante. Você não tem medo do que pode acontecer, tão perto do inimigo? — disse ele, demonstrando empolgação em meio a uma conversa duradoura com a mulher entediada. Ao passar pela porta, e ver Colth sem reação, se surpreendeu e revelou um sorriso sincero. — Colth! Então, você também vai ficar por aqui?

O “também” usado por Aldren confirmavam as suspeitas do rapaz. Colth dividiria o apartamento e o quarto com o colega até que a sua passagem de trem para Toesane estivesse em suas mãos. Não achou ruim, pelo contrário, sorriu em resposta e ficou aliviado de ter alguém conhecido com quem pudesse compartilhar as suas impressões sobre todo aquele lugar.

— Tem comida nessa sacola... — Garta arremessou um saco de papel pardo em direção a Colth que o agarrou perplexo. Ela mantinha a mesma cara despreocupada de sempre. — Me encontrem no restaurante amanhã de manhã. Até lá, não saiam daqui.

A guardiã deu meia volta e se preparou para deixar o apartamento, mas antes que o fizesse, Aldren a interrompeu:

— Espera. Você disse que eu veria a Celina.

— Amanhã, foi o que eu disse.

— Mas ela...

— Qual é o problema de vocês!? — esbravejou Garta — Eu já disse que a Celina está bem.

A ferocidade da guardiã de modo repentino fez o rapaz dar um passo para trás e baixar a cabeça.

Ela, por sua vez, sentiu o remorso vindo daquele evidente desapontar e chacoalhou a cabeça para se livrar da culpa em seus pensamentos.

— Amanhã...

— Tá. Claro — respondeu Aldren ainda cabisbaixo.

— Hum — suspirou Garta, fazendo questão de deixar claro que não estava arrependida. — Boa noite.

Ela saiu e bateu a porta, deixou para trás os dois rapazes que se olharam em um breve silêncio constrangedor. Colth levantou o saco de papel que tinha em mãos para oferecer o que seria o jantar. Aldren hesitou, mas logo acenou positivamente com a cabeça e a volta de seu sorriso.

                                                ***

— É bom saber que ela está bem. Eu fiquei um pouco preocupado — concluiu Aldren após receber as notícias de Colth de que a garota Celina estava do outro lado da praça sem quaisquer riscos aparentes.

Eles acabavam de terminar de comer as sobras do restaurante trazidos por Garta e, agora satisfeitos, contemplavam as festividades pulsantes do alto da janela. O rapaz tentava, mas não conseguia esconder o seu sorriso de felicidade no rosto.

— Eu nem acredito que vou de fato começar a viver na capital — Aldren mudou de assunto após estar mais tranquilo com a comida no estômago.

— Isso é tão incrível assim? —perguntou Colth sem entender a profundidade da alegria.

— Sim. Claro — afirmou de forma convicta. — É por isso que estávamos fazendo as provas da seleção da Defesa, não é? Para nunca mais voltar às nossas cidades.

— A não. Não é exatamente isso. — Colth não concordava com a parte de “nunca mais voltar.” — Sinceramente, eu só estou aqui por um último pedido de uma pessoa com a qual eu me importava muito. Eu gosto bastante de Toesane.

— Importava? Tipo uma namorada? — perguntou Aldren curioso, a música e as risadas ressoavam na noite do lado de fora.

— O quê? Não — negou de imediato ao ver o olhar curioso no rosto do rapaz lhe alcançar. — Essa pessoa “importante” era o marido da minha irmã. Eu prometi a ele que conseguiria uma vaga na guarda Real. Ele passou quase um ano inteiro me treinando para isso.

Colth baixou a cabeça sem perceber. Os sentimentos que vinham com aquelas lembranças, ainda doíam. Mas não durou muito, Aldren interrompeu o sentimento do colega ao se empolgar com a pequena história.

— Que legal! Tipo um mestre, então?

— Mestre? O Thomas me ensinou, mas não penso que seja isso. — respondeu com um sorriso tímido no rosto após levantar a cabeça de forma surpresa. — Depois que meu pai morreu, ele me falou ser importante vir para a Capital para que as portas do meu futuro se abrissem, esse tipo de coisa. Foi aí que eu prometi fazer parte da guarda Real, desde que ele me treinasse. Infelizmente, ele morreu em um acidente pouco tempo depois.

— A... — Aldren interrompeu o seu bom humor de forma desconfortável — Eu sinto muito. Então, você tem uma família te esperando em Toesane?

— Eu tenho uma irmã mais velha que mora com a filha. Esperava conseguir passar na seleção para não precisar ficar dependendo dela. Mas aqueles caras do ministério da Defesa são todos uns babacas.

— Pois é. Se acham só por causa dos seus uniformes legais.

— O Coronel me chamou de “turvo”, aquele idiota. — Colth demonstrava a sua raiva franzindo as sobrancelhas.

— Isso é por sermos de fora da Capital. Como se fizesse diferença. Idiota. Mas o uniforme é legal.

Colth sorriu surpreso com as palavras desapegadas do rapaz. Tratou de superar o assunto.

— Você disse que veio de fora. De onde, exatamente, Aldren?

— Eu e a Celina somos de Rasuey.

— Rasuey? A cidade do céu? — Colth utilizou do pouco conhecimento que tinha sobre o local.

— Isso. A cidade com as maiores montanhas do continente, e com os maiores hipócritas também.

— Por que não quer voltar para lá?

— Eu não sei Toesane, mas Rasuey resistiu a anexação e guerreou por sua liberdade. Obviamente, não deu certo — Aldren respondeu e pausou pensativo. — Tanto faz. Nada mais presta naquele lugar mesmo.

— Tem a ver com a garota? — Colth insistiu.

— A Celina? — novamente pareceu amargurado. — Sim. Ela arrumou uma briga feia com gente importante de lá. Eu acabei me envolvendo e acabamos fugindo da cidade.

Colth não escondia seu olhar surpreso. Se perguntava coisas como: “Aquela garota minúscula arrumou um problema tão grande assim? A ponto de ter de abandonar a cidade?”

— E é isso. — Aldren forçou o final do assunto.

— Entendi. Mas escuta, você não fica com receio de estar completamente cercado por muros aqui? Não está simplesmente abrindo mão da sua liberdade?

— Nem um pouco. Eu e a Celina já perdemos nossa liberdade há muito tempo. — respondeu Aldren observando as crianças e os adultos se divertindo em meio as festividades no calçamento da praça. Refletiu sobre suas próprias palavras: — Eu só quero experimentar um pouco da felicidade que essas pessoas tem. Acha que estão se perguntando sobre liberdade?

— ...

— Bom, pelo o que eu pude notar, amanhã vai ser um dia cheio. — Aldren deixou o parapeito da janela em direção ao quarto. — É melhor descansar. Boa noite, Colth — se despediu.

— Boa noite — respondeu e continuou a pensar sobre as palavras sem pretensões de Aldren enquanto seus olhos refletiam a festa animada.



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