Volume 1

Capítulo 7: O Apontar Para o Norte

— Vem, por aqui — ordenou Garta. Guiando Colth pelas ruas estreitas da região Norte pouco movimentada, ela acelerava os passos.

Os poucos moradores vistos naquele horário pareciam amigáveis à primeira vista, por outro lado, as ruas não eram muito convidativas, algumas delas eram completamente esburacadas e muitas outras não possuíam nem iluminação noturna dos candeeiros públicos. Não só por isso, mas para a população da região Central, o Norte era sinônimo de pobreza, poucos da alta sociedade e, muito menos da realeza, se atreviam a chegar perto dali. O motivo não era medo ou algo parecido, e sim um sentimento de nojo e desprezo por aqueles que eram tidos como os menos abençoados.

Vários prédios residenciais simples, algumas casas pequenas, e poucos comércios compunham a paisagem acinzentada das vielas estreitas. Nem um único carro foi avistado durante todo o percurso da caminhada que durou cerca de dez minutos. O silêncio da manhã começou a ser, pouco a pouco, devorado por algum barulho agitado.

— Aqui. Chegamos — disse Garta enquanto adentrava por uma pequena praça. Os olhos de Colth se encheram ao notar.

O local era simpático, um pequeno espaço que se diferenciava do resto da região. Na sua parte mais interna, dois grandes cedros sombreavam as pedras do calçamento estendido até as paredes dos prédios comercias que cercavam boa parte da praça.

Algumas pessoas trabalhavam no lugar, com escadas, martelos, chaves de fenda e outras ferramentas, eles penduravam fios de energia para a iluminação que seria feita por diversas lâmpadas amareladas ao longo do cabo, se estendendo de uma extremidade a outra da praça sobre as cabeças dos pedestres. Os trabalhadores também montavam uma tenda de tecido acinzentado no centro da praça aprimorando o visual do lugar.

— O que eles estão fazendo? — Colth ficou curioso.

— Estão se preparando para o festival da lua nesse fim de semana. — respondeu Garta.

— Festival da lua? Eu já havia me esquecido.

Se comparada ao restante da região, aquela praça parecia um centro comercial. Restaurantes, cafés, e diversas outras pequenas lojas cercavam e integravam aquele receptivo desvio de ambiente.

Garta caminhou pela praça sendo seguida por Colth. Alguns olhares curiosos dos trabalhadores, que também eram os residentes da região, não puderam ser evitados.

— Quem são esses? — Perguntava uma curiosa na praça.

— São de fora? — Outra pessoa em meio aquelas várias, sussurrava a sua suspeita.

— Aquela é a Garta? O que será que aconteceu? — Apenas mais um comentário perdido entre muitos.

Muitas daquelas palavras eram ouvidas perfeitamente por Garta,  simplesmente as ignorava e continuava a abrir espaço em meio a pequena concentração de pessoas. Colth incomodou-se o bastante para baixar a cabeça e apenas seguir os passos da líder.

Após atravessar boa parte da praça em arrumação, a guardiã parou em frente a um dos poucos restaurantes existentes ali. O prédio era simples, todo decorado por bandeirinhas coloridas e luzes por toda a faixada escondendo o cinza da construção. Uma escada de quatro degraus levava os fregueses até a entrada do estabelecimento. Sobre a porta, um painel de madeira fazia o papel de letreiro e evidenciava de vez o comércio.

O painel possuía os dizeres “Restaurante gato implacável” e era acompanhado por um desenho quase infantil de um felino extremamente feliz segurando talheres.

— Fique quieto e apenas me siga — disse ela em tom direto.

Colth a acompanhou até adentrar pela porta e vislumbrar-se com o salão do restaurante. O local não possuía nada de especial, uma dezena de mesas distribuídas organizadamente sobre o piso de madeira encerado que refletia as luzes das lâmpadas penduradas nas paredes e do pequeno lustre empoeirado ao centro do teto.

Ao fundo, apenas uma coisa chamava a atenção do rapaz, um velho piano vertical envolto de flores e enfeites. Lembranças preencheram a sua cabeça e um sentimento saudoso emergiu sem poder ser evitado. Colth fez questão de se desviar do sentimento e ignorar as memórias.

— Não fica aí parado. Vem logo — ordenou a mulher para então votar a caminhar em direção a uma porta de serviços ao fundo salão.

Colth assentiu, seguiu por entre as várias mesas com casais e famílias que aproveitavam os seus almoços. Não era um restaurante nobre, mas também não era de se jogar fora, o ambiente era aconchegante e caloroso, as mesas redondas eram forradas por toalhas brancas, e os pratos, entregues pelos dois garçons uniformizados, possuíam um aspecto suculento.

Garta abriu a porta simples dos fundos do salão sem nenhuma cerimônia, revelou a cozinha do estabelecimento ainda pouco movimentada. Simplesmente seguiu até o fundo do cômodo e subiu as escadas que se iniciavam após as bancadas cheias de ingredientes.

Colth seguia de perto, atravessaram um estreito corredor e se depararam com duas portas, uma de cada lado, Garta escolheu a da direita. Ambos entraram na sala mal iluminada.

Mesas de trabalho encostadas na parede, estantes lotadas de objetos e engenhocas estranhas, e um velho sofá no centro do cômodo virado para o lado contrário ao da porta, tudo sobre um carpete com rasgos e partes faltantes.

Uma mulher solitária, miúda como uma criança, manipulava algumas ferragens frente a uma das mesas, estava tão ocupada e entretida com seu trabalho, que pareceu nem ter notado a presença de outras pessoas ali. O seu casaco leve, óculos de proteção na cara, e uma série de equipamentos sobre a bancada de madeira onde trabalhava, davam indícios de suas atribuições ali.

— Bertha? — Garta chamou a atenção da mulher sem sucesso. Ela precisou insistir mais de uma vez para que então fosse atendida. — Bertha? Alô?

— Ah, Garta... — finalmente respondeu e, assim que colocou os olhos na guardiã, teve uma surpresa. — O quê? O que é isso no seu pescoço?

— Achei que eu fosse fazer essa pergunta — retrucou Garta desanimando-se. — Uns homens, provavelmente seguidores de Lux, me emboscaram e colocaram isso em mim. Eu já tentei tirar, mas não sai.

— Isso parece uma pedra Sathsai. — Bertha tirou os seus óculos de proteção os deixando sobre a testa, e aproximou os olhos do colar no pescoço da mulher para visualizar os detalhes. — Mas não parece ter o brilho interno de uma.

— De qualquer forma, depois que isso agarrou o meu pescoço, não consigo mais usar o deslocamento.

— Sério? — A garota começou a esboçar um sorriso à medida que Garta confirmava com a cabeça. — Isso é incrível!

— Você tá falando sério? — murmurou insatisfeita. — Eu não consigo usar minha habilidade, o que isso tem de tão incrível?

— Isso significa que conseguiram um jeito de neutralizar as habilidades dos guardiões — complementou Bertha brandindo o seu sorriso de orelha a orelha. Em seguida, se deu conta da situação e ficou séria repentinamente. — Não é incrível para você, já que está com ele no pescoço. Na verdade, isso é um problema. Um problema bem grande.

— Aff... Tem como tirar isso?

— Bom... Parece que há algum tipo de fechadura aqui. — A garota dizia ao caminhar em torno de Garta observando cada pedaço do objeto com atenção até parar nas costas da guardiã.

Realmente, de baixo dos belos cabelos negros de Garta, o colar escondia um pequeno buraco minúsculo, não parecia nada com uma fechadura, mas era a única coisa que se diferenciava no objeto além da pedra sem brilho na parte da frente.

— Consegue tirar? — repetiu esperançosa.

— Vou ver o que posso fazer. Sente-se na cadeira. — disse a menor indo até a bancada. Recolheu algumas ferramentas com intensão de usa-las e, ao perceber a pessoa estranha que acompanhava a guardiã, hesitou. — Ah? Quem é esse aí?

O rapaz estava ali, observando o ambiente, aquele tempo todo, mas só após cruzarem os seus olhares, foi que a garota tomou conhecimento de sua presença.

— Esse é o Colth. Não liga para ele, só está de passagem — Garta respondeu ao se sentar na cadeira do canto da sala. — Não é ninguém.

— Agradeço a gentileza — resmungou Colth sarcasticamente. Não deu maior relevância ao comentário, em seguida, voltou a observar as prateleiras cheias de ferramentas e não suportou a curiosidade. — O que você faz aqui?

— Mecânica, engenharia, elétrica. O que precisarem. — Bertha retornava até a guardiã após a resposta sem profundidade.

— Uma engenheira? Isso é bem legal — sussurrou Colth ao notar um pequeno dispositivo aberto com os fios e peças expostas sobre a bancada, tremeu a mão imaginando segurar uma ferramenta nunca antes vista por ele.

— Não coloque a mão em nada! — advertiu a garota com braveza.

— Não. Eu não iria encostar em nada. — disfarçou Colth.

— Ah... — suspirou em rejeição. Se voltou para a guardiã. — O “ninguém” que você trouxe é bem irritante.

— Dá para você se concentrar no que importa? — retrucou Garta.

— Certo. Vou começar a operação, então. — disse a engenheira ao se posicionar as costas da mulher.

— Operação? — perguntou ela assustada.

— Quietinha — sorriu desajeitada para a mulher à sua frente. Em seguida começou a se focar no colar — E então, por que você está trazendo essas pessoas estranhas para cá, Garta?

— ...? — Colth se surpreendeu ao ser tão duramente julgado pela pequena garota de cabelos amarelados e olhos brilhantes, mas novamente não se deu trabalho de contestar.

— Não foi culpa minha... — Garta começou a se explicar de modo entediado, mas em meio a isso, sentiu o colar se apertar em seu pescoço. — Ai! O que foi isso?

— Acho que temos um problema — disse Bertha em resposta. — Parece que a cada tentativa falha de abrir esse negócio, o colar se aperta ainda mais ao redor do seu pescoço.

Garta arregalou os olhos, Colth também mostrou a sua preocupação ao se aproximar curioso.

— Mas isso vai acabar sufocando ela, ou pior...

— Não se preocupem, vai ser tão fácil quanto montar um motor...

— Espera, — Garta se preocupou a ponto de suar frio — e se você errar e...

Sentiu o colar apertar o seu pescoço mais um pouco. Estava prestes a desistir e se levantar da cadeira, mas assim que decidiu pelo abandono, foi novamente surpreendida.

— Pronto. — Bertha já se adiantará.

— Pronto? — Colth continuou preocupado.

A guardiã sentiu o seu pescoço se livrar das amarras do colar metálico. Mesmo sabendo que aquela garota possuía incríveis dotes no ramo da engenharia, não poderia deixar de se impressionar.

— Como você...

— Eu precisei pensar apenas por dois segundos, não era uma coisa tão díficil assim. Bem fácil, na verdade. — respondeu a garota apática, quase cabisbaixa. — Pensei que seria um desafio. Que pena.

— Que pena? — franziu a testa. — De qualquer forma, obrigada. — Garta se levantava com a sensação da liberdade retornada.

— Não precisa agradecer...— aguçou os olhos — pelo menos, não com palavras.

— O que você está planejando? — A guardiã já havia entendido o recado. Não pareceu completamente animada com um evidente pedido que estava por vir, mas não poderia negar, não depois de pedir um favor que literalmente salvou o seu pescoço.

— Eu não estou planejando nada. O Gerente é quem está. — Bertha abriu os braços para se esquivar de qualquer responsabilidade. — Eu só estou cumprindo ordens.

— É claro que está. E então?

— Eu preciso de uma válvula de 4 milímetros. — gesticulou ela com as mãos para desenhar a silhueta do objeto.

— O quê?

— Você sabe que não vai conseguir entender, né? Quer mesmo que eu te explique?

A resposta da garota podia parecer arrogante aos olhos de Colth, mas para Garta era natural, não demonstrou qualquer oposição.

— Não. Claro que não. Só me fala onde conseguir.

— Com o velho Frederic — concluiu a pequena.

— Sem problemas, já estava pensando em passar por lá mesmo. — assentiu Garta seriamente. — E a guardiã de Tera?

— Depois que ela teve um ataque, chamando por um tal de Aldren, eu a coloquei para dormir. — Bertha voltou a se concentrar em seu trabalho sobre a bancada no canto da sala. Dessa vez, estava interessada no colar de metal recém removido do pescoço de Garta. — Ela está aí no sofá. Vai ser difícil de acorda-la, usei uma dose bem alta de folhas negras.

— Você a dopou? — perguntou Colth irritado. Rapidamente caminhou até o centro da sala e verificou o sofá, não foi surpreendido, a garota estava dormindo como uma criança. Seu cabelo claro escondia parte do seu rosto sereno.

— ... É. — respondeu a engenheira sem entender o motivo da pergunta.

Colth a reprovou com os olhos antes de continuar com as perguntas.

— Ela chamou pelo Aldren?

— Foi o que eu disse... — Bertha pareceu irritada. — Garta, você poderia ir logo, esse seu amigo está me atrapalhando.

— Ele não é meu amigo — rebateu de primeira.

— Tá, tá. Só vai logo. Eu tenho trabalho para terminar — a garota apressou os dois enquanto vestia os seus óculos de proteção em preparação ao trabalho que viria, mas antes disso, jogou a pedra de Sathsai recém retirada do colar para que Garta a agarrasse. — E leva isso também.

A guardiã abdicou da resposta com a pedra em mãos.

— Vamos, Colth. — apressou ela.

— Vai deixar a Celina aqui?

— Ela vai ficar bem. Vem logo.

Colth concordou sem argumentos. Saíram pela porta do cômodo enquanto ele mantinha-se desconfiado.

— O que foi? Você só está de passagem, não vai pensando em se apegar as coisas daqui — disse Garta perversamente após receber duros olhares por parte de Colth no corredor apertado.

— Que seja. — O rapaz não escondeu o seu desgosto ao desviar o rosto incomodado.

— Vem. Eu já sei onde conseguir a sua passagem para fora da Capital. — Ela entregou a pedra de Sathsai para Colth de forma a se livrar da sucata.

— Ótimo. — Colth franziu a testa para deixar evidente a sua intenção de partir o mais rápido possível. Agarrou a pedra sem propósito e importância, apenas a colocou no bolso da calça para se livrar e manter as mãos livres.



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