Volume 1

Capítulo 6: Fortaleza Última

Colth acompanhou Hikki pelos corredores da fortaleza, quadros pelas paredes, lustres sob os tetos, e estatuas de mármore sobre os carpetes refinados, elevavam ao máximo o luxo do lugar.

O garoto abriu uma porta dupla após o fim do seu caminhar ecoante e revelou o exterior do ambiente. Adentraram a uma sacada incrivelmente espaçosa com o vento calmo os abraçando.

Sobre pedras acinzentadas da construção, uma mesa de vidro com um par de cadeiras os esperava. Hikki se adiantou e sentou à mesa desleixadamente.

Colth caminhou até a o parapeito de pedra maciça da sacada, seus olhos brilharam. A paisagem era a mesma vista anteriormente pelas janelas dos corredores, mas agora podia sentir a brisa fria e suave do outono enquanto ouvia os pássaros cantarem sobre os seixos que se erguiam em meios as florestas douradas. Dali de cima, o sentimento de ser irrelevante, atingia qualquer um que reconhecesse a grandiosidade do lugar pela primeira vez.

— Uau — sussurrou deslumbrado mais uma vez.

— Liz, pode me trazer aquele bolo de frutas, e o chá, é claro — ordenou Hikki a mulher que se apresentava em trajes de empregada.

Ao se virar, Colth se surpreendeu novamente. “Uma serva? Por que eu estou impressionado? Olha o tamanho desse lugar, é claro que está cheio de empregados por aí. E que olhos são esses?” Pensou enquanto tentava não parecer impactado. Em seguida, se dirigiu a cadeira desocupada e se sentou acompanhando o garoto. Se conteve para não encarar os rosto delicado da mulher e ficar hipnotizado pelos olhos rosados dela.

— O que, exatamente, vocês são? Você e a Garta?

— Minha irmã é a guardiã de Finn. Ela já te disse isso, não? Achei que fosse mais esperto do que o nanico nervosinho.

— Engraçado — Colth sorriu, curioso sem levar em conta as palavras provocantes, continuou: — O Aldren não parecia tão nervoso, quando o conheci.

— É culpa daquela garota. A guardiã de Tera.

— Celina?

— Isso. O nanico a vê como impotente, uma criança. Quase como um cachorrinho que deve estar com ele o tempo todo.

Hikki dizia as suas palavras com os olhos fixos nas nuvens do horizonte sobre as montanhas rochosas distantes.

— Sério? Você acha isso, mesmo?

— Não é difícil de enxergar. Vejo esse olhar sempre — disse o garoto ao ser servido com uma xícara de chá pela empregada.

— É impressionante, para uma criança — deduziu Colth com uma pitada de sarcasmo em suas palavras.

— É impressionante que você não tenha percebido isso. Aliás, fica bem óbvio que você não tem rumo algum. E sabendo que, estava na seleção do ministério da Defesa, imagino que tenha brigado ou sido forçado a prestar tal prova.

Colth engoliu seco, o garoto era realmente sólido em seus dizeres. Disfarçou agarrando delicadamente a xícara de chá recém servida e umedeceu os seus lábios com a bebida quente para finalmente responder:

— Um pouco dos dois. Brigado ou obrigado, tanto faz. Já não importa mais. Logo estarei de volta à minha cidade e poderei recomeçar. Mas e você? Ainda não me disse o que faz aqui, é apenas o irmão da tão incrível guardiã de Finn?

— O que esperava? Eu sou apenas uma criança. Foi você mesmo quem disse. — O garoto buscou no centro da mesa uma fatia do bolo recém cortado pela criada que continuava de prontidão ao lado da entrada da sacada. — Sabe de onde veio as frutas para esse bolo? — mordiscou um pedaço.

— Certeza de que não veio da Capital do império. — respondeu o óbvio para não ficar em silêncio.

— Veio de um vilarejo. Uns quinze minutos daqui. Digamos que, se não fosse pela minha irmã, esse lugar já teria colapsado.

— Não acha que está exagerando? — perguntou Colth despreocupado. Mastigava um pedaço do bolo enquanto lembrava da comida caseira de Toesane e sentia a fria saudade da sua terra natal.

— De forma alguma. Garta foi a responsável por unir as últimas famílias desse mundo e fazê-los cooperarem para sobreviverem. Só agora que, finalmente, começamos a colher os frutos disso. Literalmente — apontou para o seu pedaço de torta com os olhos e terminou com ela em mais uma mordida.

— Se ela é tão incrível assim — Colth continuava a duvidar — por que foi correndo atrás desse tal “Gerente” para cumprir ordens daquela forma? Não parece algo que uma mulher, super poderosa que uniu os povos de um mundo em ruínas, fosse fazer.

— Hum. — Hikki sorriu e colocou o a sua xícara sobre o pires na mesa e, em seguida, se levantou. — Eu preciso resolver algo. Colth, fique à vontade para terminar e aproveitar o seu chá.

— Hã? — calou-se em seguida.

O garoto se virou e caminhou para se ausentar da sacada. Mesmo que disfarçasse, com todas as suas forças, qualquer sentimento, era possível notar os seus olhos incomodados.

Colth permaneceu sentado, não entendeu se havia insultado o seu parceiro de chá ou se outra coisa tinha se passado. De qualquer maneira, se arrependeu do que havia dito sem nem saber o porquê.

— Não deveria julgar a mestre Garta, ou o mestre Hikki, desse modo — disse gentilmente a bela empregada enquanto recolhia as sobras deixada na mesa. — Seja lá o que está pensando, tenho certeza de que está equivocado, meu senhor.

Colth não demonstrou reação, seus pensamentos tomaram conta de si enquanto a mulher deixava o lugar com os mais refinados e respeitáveis modos que  poderia imaginar.

Ficou solitário ao som do vento com o seu último gole de chá.

                                                        ***

Horas passaram e, depois de dormir com o rosto pressionando as páginas de um antigo livro na biblioteca, Colth acordou com o bater da porta dupla maciça.

O seu levantar repentino, o cabelo desarrumado, e a saliva que escorria no canto de sua boca, evidenciavam a sua surpresa com a entrada de Aldren.

— Desculpe. Eu não sabia que você estava aqui — disse o rapaz adentrando à biblioteca acolhedora.

— Não. Tudo bem, eu só estava aqui lendo... O que eu estava lendo mesmo? — Colth limpou o rosto e fechou o livro para ler em voz alta o seu título: — “Cinco passos para conquistar uma mulher mais velha.”

Aldren cerrou os olhos em um julgamento áspero e silenciosamente mortal enquanto se aproximava da mesa central do salão.

— Não faz essa cara para mim. Por algum motivo, esse é um dos únicos livros aqui que não está em uma língua totalmente diferente da nossa. Esse pessoal de Finn possui um sistema de escrita muito estranha.

— Não. Não é isso — Aldren se sentou descontraído. — A Liz me disse que ninguém consegue entender essa língua aqui também.

— Liz? A empregada?

— Isso. Parece que é uma língua morta ou algo assim.

Antes mesmo que Colth pudesse pensar sobre isso, a porta da biblioteca se abriu novamente. Dessa vez, Garta e Hikki eram quem caminhavam até o centro da biblioteca.

— Onde está a Celina? — Aldren foi direto.

— Você não cansa de ser insuportável, não? — retrucou Garta com desdém. — Ela está bem. Vou traze-la logo e... tem você ainda, Colth — terminou em tom desanimado.

O alvo da apatia calou-se e mostrou um sorriso amarelo ultrajado.

— Está na hora de você ir para a casa — concluiu ela. Fez questão de mostrar com seus olhos que não se importava, mesmo que sua atitude mostrasse o inverso.

— Tá. Claro — concordou Colth sem pensar duas vezes. Olhou para os outros dois em tom de despedida. — Foi um prazer conhecer vocês.

— Até mais — encurtou Hikki.

— Aí, Colth. — Aldren se aproximou do rapaz e estendeu a mão. — Desculpa pelo o que aconteceu lá na seleção, eu...

— Esquece isso. Sinceramente, foi um peso que saiu das minhas costas — respondeu com o aperto de mãos. — Boa sorte para você e para a Celina.

— Sim. Obrigado — concluiu Aldren. Sorriu radiante como de costume.

— Está pronto, Colth? — perguntou Garta ao se aproximar dele.

— Acho que sim.

A mulher colocou uma das mãos sobre os ombros do rapaz e, em instantes, uma forte luz tomou conta do lugar.

Blast! O som característico incomodava. Novamente aquela sensação estranha.

A sensação de mergulhar em águas profundas. Foi rápida e desconfortável como antes, mas dessa vez, ao abrir os olhos, Colth se viu em meio a duas paredes de tijolos inacabadas. O Sol ardia nas pedras do calçamento e a brisa quente trazia o som de uma locomotiva pouco distante.

— Onde? — o rapaz perguntou boquiaberto olhando ao redor. Garta continuava à sua frente com a mesma expressão despreocupada, ambos no centro de um beco cinzento nada movimentado.

— Aqui é a região Norte da Capital. Mundo de Tera, obviamente. Daqui até a estação Norte de passageiros, são cinco minutos a pé. — Garta explicava enquanto caminhava até a rua estreita no final do beco, Colth à acompanhava ainda desorientado. — Você só precisa usar a sua passagem de volta para pegar o próximo trem até Toesane e, pronto, estará na sua casa e poderá esquecer de tudo isso.

— Falando assim, fico até pensando que estou te devendo um favor.

— Isso não é um favor — respondeu ela ao parar em meio a calçada no dobramento da rua apertada. — Eu estou me livrando de você.

— Eu deveria ter imaginado — não se importou com o tom grosseiro — Escuta, e a Celina?

— Não me diga que está preocupado.

— Eu ainda sou um dos parceiros dela na seleção. É natural eu estar preocupado.

— Não. Não é. A seleção já acabou. Você só é bem tonto mesmo e...

— Aqui! — Repentinamente, um homem dobrou a esquina e segurou Colth pelas costas. — Agora!

O rapaz não pôde fazer nada, já estava dominado pelo homem alto e magrelo. Garta também se surpreendeu, ela levantou a palma da mão em direção aos dois à sua frente em um movimento instintivo, mas antes que pudesse reagir, dois outros homens surgiram da esquina atrás dela. Um agarrou o seu braço e o outro procurou pelo seu pescoço.

— Vai! Coloca o colar! — gritou um deles.

Vindo das costas da guardiã, um objeto de metal abraçou o seu pescoço e se fechou em um piscar de olhos. Garta não se amedrontou, colocou a palma da mão sobre o peito do homem que a segurava e se concentrou.

Nada aconteceu. Ela arregalou os olhos imediatamente chocada.

— Idiota — disse o homem com um sorriso ardiloso no rosto. Em seguida, deu um tapa com as costas da mão no rosto dela.

Dominaram a mulher enquanto ela tentava entender o porquê de não conseguir usar a sua habilidade de deslocamento.

— Me solta! — gritou Colth se debatendo com o terceiro homem as suas costas.

Foi o que o magrelo alto fez. Sem qualquer delicadeza, jogou o corpo de Colth ao chão. O rapaz caiu desajeitado e não evitou a aterrisagem com a testa sobre as pedras da calçada.

— Irrá! — gritou saltitante o homem ao caminhar em direção a Garta completamente rendida pelos outros dois. — Foi tão fácil, que nem dá para acreditar.

— Merda... — Garta rosnava após mais uma tentativa falha com o seu deslocamento.

— Hahaha! — Um dos homens, o que se destacava com um moicano sobre a cabeça, ria venenosamente. — Você não entendeu ainda? Isso é um colar de Sathsai. Isso suga qualquer coisa que um guardião tente.

— Quem são vocês? — ela tinha os seus olhos respaldados pelo ódio.

— Isso não importa. Mas posso dizer que o Bernard vai ficar feliz em te ver. Certeza que vai nos dar um pagamento extra pela rapidez na entrega — expôs o magrelo sorridente. — Vai poder nos pagar aquela rodada que nos deve, Rasmund.

— Pagar? Mas eu não devo nada — respondeu o maior com cara ingênua.

— Vão a merda! — exclamou Garta roubando a atenção — Vocês e esse tal Bernard!

Em reflexo ao xingamento inconsequente, o homem, que parecia liderar o resto, não mediu esforços, fechou o punho e socou a barriga da guardiã ousada.

— Ah! — gritou ela em dor.

— Aí! Parem com isso. — ordenou Colth enquanto se levantava com dificuldades.

— Quem é esse trouxa? — perguntou o homem do punho nervoso.

— Eu sei lá. — respondeu o mais baixo com o moicano.

— Eu sou... — Colth ficou completamente de pé e levantou o rosto para mostrar os seus olhos determinados e o seu mais recente corte na testa. — O guardião de Finn!

— O quê? — O homem mais forte que segurava Garta estranhou imediatamente — Eu pensei que fosse a garota.

— É a garota, sim. Ele está mentindo, seu idiota — respondeu o magrelo.

— Eu mandei soltar ela! — insistiu. Colth esticou a palma da mão na direção dos três homens que a cercavam.

— Ah! Que merda! — gritou um deles covardemente.

— É um blefe, não acredite...

O aviso do líder veio tarde demais. O mais apavorado acabará por afrouxar a sua guarda. Garta usou a oportunidade para puxar o seu braço ligeiramente e se livrar, em seguida, socou o meio das pernas do covarde em um movimento redesenhado.

— Ah! — gritou enquanto caia derrotado em posição fetal.

O outro teve um destino parecido, a mulher chutou a lateral de seu joelho e, assim que ele recolheu o corpo para baixo em reflexo à dor e ao estalo de seus ossos, ela socou, de baixo para cima, o seu queixo quadrado. O mais forte caiu violentamente sobre o que já estava no chão. Ambos apagaram.

O terceiro homem viu a cena com as pernas trêmulas, o magrelo colocou o rabo entre as pernas e correu como se não houvesse amanhã para outra direção.

Garta esticou seu braço e apontou a palma da mão para ele, mas novamente, nada aconteceu. Pensou em correr atrás do medroso, mas seu estômago ainda doía devido ao soco perverso que recebera.

— Está tudo bem? — perguntou Colth ao perceber a expressão penosa no rosto da mulher.

— Não se preocupe comigo — respondeu rispidamente ajeitando os seus óculos. — Droga. Eu não esperava que eles estivessem tão perto assim.

— O quê?

— Isso quer dizer que... — pensou alto ela — Esquece, não tem nada a ver com você. — Voltou a frieza quando se achou recuperada da dor. — É melhor você ir, vai acabar perdendo o seu trem.

Esse era o máximo de um tom de despedida que a guardiã conseguiria demonstrar. Já se preparava para dar às costas a Colth pensando no seu próximo destino.

— Ah, sobre isso... — disse ele em tom desajeitado para interromper os planos da mulher. — Aquele cara magrelo... o que fugiu, sabe?

— O que tem ele? — perguntou ela enquanto tentava retirar o colar sem sucesso.

— Quando ele me agarrou, antes de você socar o...

— Para de enrolar, fala logo! — o apressou mirando os olhos de forma brutal.

— Ele levou minha carteira e minha passagem — cuspiu as palavras para fora.

— O quê!? — abismou ela enquanto franzia a testa em um “v” marcante.

— Mas isso não é problema, não é? Você consegue usar a sua habilidade para me levar até Toesane com essa sua luz aí, e...

— Você não entendeu, não é?! — Garta deu rápidos passos até estar encarando o rapaz de perto sem reação. Continuou sussurrando em tom inflamado: — Eu só consigo realizar deslocamentos para lugares que eu já estive e conheça.

Colth desviou o olhar não compreendendo.

— Então...

— Então, que eu nunca estive nessa merda de Toesane! Como eu saberia para onde te mandar? Você é muito tonto! Idiota! Eu deveria...

Colth baixou a cabeça ao perceber o quão inocente havia sido. “Como que eu não percebi aquele magrelo pegando a minha carteira?” Pensou enquanto absorvia as duras palavras da guardiã. Seu medo agora passava ser a possibilidade de Garta simplesmente abandona-lo ali mesmo. Sem dinheiro, sem passagem e, talvez, perseguido por ladrões ralés da Capital, seria o seu fim iminente.

— Huh. — O murmúrio de dor do homem ainda desacordado na calçada interrompia os pensamentos de ambos.

A mulher olhou para o céu azul enquanto passava as mãos sobre o colar preso ao seu pescoço. Balançou a cabeça em desacordo e reclamação.

— Ah! — desabafou ela — Resolvemos isso depois. Vamos sair daqui.

Garta continuou ríspida enquanto se apressava. Temendo a chegada de mais homens daqueles, voltou a caminhar em ritmo acelerado.

As palavras dela foram ditas em tom grosseiro e pouco amigáveis, mas aos ouvidos de Colth, soaram como um “não se preocupe, vou ajuda-lo a sair dessa.”

— Tá, claro.

O rapaz seguiu os passos da mulher com uma expressão de alivio estampado em seu rosto. Ela, por sua vez, já parecia ter um objetivo traçado em mente.



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