Volume 1

Capítulo 5: Lenda em Construção

Colth e Garta, ambos seguiram para a tal biblioteca. Uma porta dupla no final daquele corredor que, ao ser aberta, os levou para a gigantesca sala com prateleiras amontoadas umas sobre outras repletas de livros e calhamaços de papéis.

O salão de escrituras ficava apertado com o imenso acervo de encadernados de todos os tipos. As enormes pilhas de papel se erguiam do chão, atravessavam o piso do mezanino acima da cabeça deles, e alcançavam o teto formoso.

Nem a escada em caracol que levava até o piso superior da biblioteca, no canto da sala, escapava da papelada em desordem. As janelas no alto de uma das paredes traziam a luz do exterior e, uma lareira em brasas ao fundo, ficava responsável em aquecer os visitantes. Além disso, um belo espelho emoldurado ao lado das chamas controladas, complementava o refino do ambiente aconchegante.

No centro da biblioteca ainda sobrava espaço para uma mesa de estudos que era rodeado por meia dúzia de cadeiras luxuosas e tomada por mais livros dispostos desorganizadamente em sua superfície. Em uma das cadeiras se encontrava Celina, entretida com um livro grosso de capa dura empoeirado, quando percebeu os dois vindos de fora, os recebeu sem expressar reação, voltou os seus olhos às páginas amareladas pelo tempo.

— Que tédio. Aqui só tem papel, papel e, adivinha? Mais papel... — Aldren reclamava enquanto caminhava para a mesa no centro. Vindo do meio das prateleiras abarrotadas, ele mantinha um olhar aborrecido até se deparar com os que acabavam de adentrar ao local. — Colth!

O rapaz correu para perto de todos os outros sem esconder a sua felicidade.

— É bom ver vocês — disse Colth assim que todos se encontraram na mesa central. — Aliás, Aldren, a sua perna não está doendo?

— A é, minha perna. Eu já tinha até me esquecido. — O rapaz baixinho olhou para o seu tornozelo em perfeito estado por um instante, em seguida, retornou com um sorriso desajeitado. — Não está mais doendo, acho que não era tão grave assim, no final das contas.

“Impressionante.” Pensou Colth sem expressar.

— Que bom. Ainda bem — respondeu verdadeiramente aliviado ao ver o rapaz fisicamente saudável e mentalmente recuperado. — E você Celina, aquele homem não te machucou, não é?

— Não, eu estou em perfeito estado — respondeu neutra ao fechar o livro. — Garta, você está pronta para explicar tudo isso, agora? Foi o que combinamos, não?

— Isso seria bom, realmente. — Colth fez questão de mostrar que estava de acordo com o pedido da garota.

— É claro — revirou os olhos — Por onde eu começo? — Garta estava prestes a iniciar sua explicação, todos os outros na sala esperavam atentamente. — Já ouviram a lenda da “Resplendor e Escuridão”? É claro que já. Bom, a história é sobre uma Deusa e um Deus, irmãos rivais que disputavam um mundo inteiro além dos seus próprios. Ambos achavam que tinham o direito aquelas terras e não queriam abrir mão de tamanho poder, por isso guerrearam batalhas sangrentas por séculos sem nunca conseguir um desfecho para esse impasse.

— Eu não entendi. Por que está nos falando sobre essa lenda? O que isso tem a ver? —perguntou Aldren impaciente.

— Calma, eu já chego lá. Bom, o final da lenda diz que os irmãos ficaram cegos pelo poder e que ambos foram condenados por si próprios a lutarem numa guerra sem fim por seus mundos. — Garta olhou no fundo dos olhos de cada um que a escutava. — Vocês nunca pararam para pensar o quão essa história é incompleta?

— É só uma lenda para fazer crianças pensarem sobre suas atitudes antes de brigarem com seus irmãos. Não precisa ser algo que faça muito sentido. — Quem parecia impaciente dessa vez era Colth.

— Pode até ser. Afinal, as lendas são usadas de acordo com a necessidade de quem as conta, não é? — Garta respondeu e recebeu uma concessão por parte dos outros. — Mas então, o que foi perdido na lenda com o passar do tempo e que ninguém mais nos conta, é sobre uma terceira força. Um personagem capaz de pender a balança para um dos lados dessa disputa e acabar de vez com essa guerra entre mundos.

— Está nos dizendo que esse personagem foi omitido? — perguntou Celina, ela estava realmente interessada na história e até roubou olhares titubeantes por parte de Aldren que não esperava que a garota fosse dar relevância para algo tão incoerente.

— Sim. Essa terceira força não era relevante para a história naquela época. Afinal, ela aconteceu há mais de um século, antes mesmo dos muros da capital serem erguidos...

— Espera aí. Por que você está falando como se isso realmente tivesse acontecido? É só uma lenda boba, isso é só ficção. — Aldren fazia o contraponto à crença evidente de Garta em suas próprias palavras.

— Certo — Celina interviu com curiosidade. — Deixando isso de lado...

— Deixando isso de lado? — Aldren interrompeu ao se surpreender com as palavras dela. — Você realmente aceitou essa historinha, tão fácil assim? — perguntou em reprovação.

A resposta para a dúvida dele veio com a imediata indiferença que Celina, e os outros, demonstraram com a sua indagação afrontosa.

— Por que você está tão na defensiva, Aldren? — Colth estranhou as reações subsequentes do colega.

— Eu não estou... Deixa pra lá. — Desviou o olhar inconformado.

— O que são esses mundos? — perguntou Celina diretamente.

— Há vários mundos além do nosso. Dois deles, Lux e Finn, que eram subordinados dos tais dois deuses da lenda, entraram em guerra, como é descrito na história. Ambos os deuses pretendiam o mundo de Tera, o nosso mundo. — Garta narrou de forma séria enquanto observava os rostos de Celina e Colth se tornarem a representação do confuso.

— Que coisa mais absurda. — Aldren enunciava o seu descontentamento em seu tom de voz ranzinza sussurrado sem direção, continuava irritadiço.

— O motivo de vocês estarem aqui, é que a Celina é possivelmente uma guardiã do mundo de Tera. — Garta finalmente chegava na questão principal.

— Tá, você já havia dito isso, e daí? O que isso significa? — Aldren não cessava.

— Um guardião tem a responsabilidade de proteger o seu mundo, foi para isso que ele foi escolhido, e é para isso que ele deve dedicar a sua vida. Se não fosse pelo guardião de Tera, o seu mundo já teria sido dizimado.

— O quê? Já chega. — Aldren realmente estava aflito de uma maneira que nunca antes fora visto. — Celina, vamos embora daqui...

Agarrou a mão de sua amiga e se virou para caminhar em direção a porta dupla, estava decidido e parecia que não iria relutar por qualquer argumento.

— Calma, espera... — Celina tentou, mas a determinação do rapaz falou mais alto, foi puxada a força pelo estressado e obrigada a se levantar da cadeira.

— Não. Já chega disso... — respondeu ele de forma áspera.

— Foram noites inteiras em claro, pesadelos intermináveis, vozes que permaneciam na sua cabeça mesmo enquanto dormia. — Garta arremessava os dizeres dominantes.

— Como... — Aldren sussurrou ao ouvir as palavras da mulher, parou imediatamente o seu caminhar um pouco antes de alcançar a porta. — Celina, não escuta ela...

— Como você sabe disso?

Tarde demais, a garota se apegou àquelas palavras e, se soltando das mãos do amigo, se virou para enxergar a expressão prevalente de Garta.

— Como sabe dos meus sonhos? — reforçou a sua pergunta.

— Eu sei, Celina, pois assim como você, eu também sou uma guardiã.

A biblioteca silenciou-se. Todos, inclusive Aldren que estava mais adverso a ideia, tratou de prestar atenção.

Garta apoiou-se na mesa em resignação. Suspirou se preparando para uma explicação que encheria os ouvidos de Colth, Celina e Aldren.

— Um guardião tem a tarefa de proteger o seu deus e o mundo regido por ele. Eu, assim como você, Celina, fomos escolhidas para essa tarefa.

— Proteger? Do que exatamente?

— De outros deuses, não é óbvio?

No momento em que Garta terminou de dizer suas palavras convictas, o grande espelho no canto do salão começou a emanar uma luz azulada de toda sua superfície refletida.

— Garta? Garta, você está aí? — perguntou uma voz longínqua vinda da luz ofuscada do espelho.

— Sim, Gerente. Assim como a suposta guardiã de quem você falou — respondeu Garta se posicionando frente ao espelho.

— Ótimo. Traga ela quando vier.

— Sim, senhor. — assentiu Garta como uma ordem vinda de um superior. — E o outro?

— Que outro? — Assim que a voz do espelho trouxe a pergunta, todos da biblioteca se calaram e se olharam estranhamente. — Bom, não importa. Traga-o também.

— Como quiser — disse Garta, encerrando a conversa. Em seguida, a luz refletida foi dissipada e o espelho voltou a ser como antes.

— O que foi isso? — Colth e Aldren se perguntavam, Celina possuía a mesma expressão de dúvida, todos eles foram ignorados.

— Você não vai conseguir deslocar todos eles. Sabe disso, não é? — perguntou Hikki adentrando pela porta dupla da biblioteca.

— E eu tenho escolha? — retrucou Garta balançando a cabeça negativamente.

— Esse velho vai acabar te matando... — reclamou o garoto. — Por que não deixa o baixinho e o tonto aqui? Apenas por hoje.

— Baixinho? Você é menor do que eu, seu moleque! — Aldren foi ignorado mais uma vez.

— Parece uma boa ideia, irmãozinho. — Garta cedeu aos desejos do garoto e logo se virou para pronunciar sua decisão aos outros da biblioteca. — Celina, você vai vir comigo, preciso que conheça alguém. Colth e Aldren, terão que esperar aqui.

— Eu vou junto. — Aldren deu um passo à frente.

— Não. Não vai. — respondeu ela firme.

— Quem você pensa que é?

— Eu sou a guardiã de Finn. — Garta encarou o rapaz de frente, fez questão de olhar de cima para baixo, mesmo que suas alturas fossem semelhantes, a grandeza dela era vista através dos olhos.

— Não me importo. Você não vai... — Aldren levou o seu dedo indicador até o nariz da mulher com expectativa de intimida-la. O efeito foi reverso ao desejado.

Garta segurou o pulso do rapaz e o girou sem misericórdia com um movimento rápido para baixo. Ele ajoelhou imediatamente sobre o carpete do salão evitando que seu braço fosse torcido a troco de nada.

— Ai, ai, ai!

— Não se oponha a quem você não pode vencer. — proferiu ela com autoridade.

— Tá bom... Tá bom. Me solta, sua maluca. — cedeu. Não havia outra escolha, a guardiã o fez ficar de joelhos com apenas uma mão, sem precisar se mover. Garta soltou o pulso do rapaz com ímpeto. — Merda! Você poderia ter quebrado meu braço, sua selvagem.

— Teria sido merecido.

— Aldren... — Celina se agachou ao lado do amigo. — Você está bem?

— Tô sim — o rapaz desviou o olhar derrotado. — Vai logo, se é tanto o que você quer.

— Venha, Celina. O Gerente não tem o dia todo — Garta apressou a garota relutante. — Te conto mais sobre, assim que conhece-lo.

— Tá... — Celina se levantou desapegada enquanto Aldren continuava a esconder o seu rosto em fracasso.

— Hikki, fique de olho neles — disse a guardiã em tom de despedida. — Volto em algumas horas.

— É claro. Sempre foi meu sonho ser babá, mesmo — o irmão retrucou carregado de sarcasmo e desagrado.

Celina ficou de frente para Garta, ela já havia passado por aquilo, e já sabia qual era o próximo passo.

— Esperem. E eu? — Colth finalmente se destacava. — Eu tenho que voltar para minha cidade e...

— Quer mesmo discutir isso, agora? Seu braço parece estar em um ótimo estado — respondeu Garta em coação. Novamente o nariz erguido e o olhar superior dominavam todo o salão.

— Esquece... — Colth segurou os próprios braços e engoliu seco ameaçado.

Garta deixou de lado o rapaz e se voltou para Celina, em seguida, colocou a palma de sua mão sobre o ombro da garota e se concentrou. Sua mão começou a emanar um brilho característico. Colth se convenceu de que aquela luz, era a mesma vista anteriormente na enfermaria, ficou boquiaberto.

O brilho se expandiu repentinamente por toda a biblioteca, o flash de luz acertou os olhos dos rapazes e fez com que desviassem seus rostos da claridade. Quando voltaram suas visões para o centro do salão, Garta e Celina já não estavam mais lá.

— O que aconteceu? — perguntou Colth. Parecia ser o único confuso.

— Elas voltaram para Tera. — respondeu Aldren apático enquanto se levantava.

— Garta usou o deslocamento — complementou Hikki. — Sua habilidade de guardiã.

— Então, era disso que vocês estavam falando — as coisas começavam a se encaixar na cabeça de Colth. — A Celina pode fazer isso também?

— É o que elas foram descobrir. — respondeu Hikki.

— Bobagem — grunhiu Aldren. — Isso tudo é bobagem.

— Tenho certeza de que a minha irmã já explicou para você. Não seja idiota a ponto de...

— Não me importo. — interrompeu balançando a cabeça negativamente. Em seguida, caminhou na direção da porta dupla com destino ao exterior da biblioteca. — Tudo isso é bobagem.

— Não saia das dependências da fortaleza — ordenou o garoto indiferente.

— Não enche!

Aldren fechou a porta dupla com força sem olhar para trás. Seus passos pesados e agitados demonstravam a sua irritação com tudo aquilo.

— O que deu nele? — perguntou Colth.

— Ele só não aceitou a realidade ainda — Hikki demonstrava despreocupação ao máximo. — Eu tô morrendo de fome. Quer comer alguma coisa?

— Hã? — Colth hesitou.

— Bom... Você quem sabe.

— Tá... Claro.

O rapaz se desfez de qualquer pensamento aflito para aceitar o convite. Parecia deslocado de toda aquela situação, mas negar o convite era negar possíveis explicações. Além disso, não era como se estivesse ocupado com qualquer compromisso.



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