Volume 1

Capítulo 4: Um Outro Mundo

Colth sentiu uma sensação estranha. Era como mergulhar em águas profundas e gélidas, por um segundo, pensou que estava se afogando. A sensação foi tão ruim que, imediatamente quando se deu conta, abriu os olhos em desespero. Não estava afundado como imaginou, mas algo tão estranho quanto, lhe chamou atenção.

Assim que voltou a focar no que estava ao redor além de si mesmo, arregalou os olhos. Estava de pé, solitário em meio a uma nítida velha cela de prisão. Chão e paredes de pedras, sem janelas, com apenas uma lâmpada no teto que iluminava o local precário. Uma porta de grades de aço, em um dos cantos da parede, era a única coisa que se destacava e parecia dar acesso ao exterior dali.

— O quê? Onde... — A confusão tomou conta dele.

Caminhou cambaleante até a grade que lhe chamou a atenção. Ao tocar nela com os dedos trêmulos, percebeu um grande cadeado fazendo a sua tranca. Observou mais uma vez a cela, procurando uma outra alternativa de sair dali, mas foi em vão.

— Ei! Alguém! — gritou. Suas palavras ecoaram em um tom minimamente desesperado. Nesse momento, percebeu o vapor que saia de sua boca, foi aí que notou o frio intenso. — Mas o que é isso? — se perguntou sem ter qualquer indício de resposta.

“Estamos no começo do verão, como pode estar fazendo tanto frio?” Era inevitável pensar aquilo. Há pouco, passava calor naquele maldito quarto da enfermaria abafado e, no momento seguinte, estava tremendo de frio em uma cela gélida.

— O que está acontecendo? Onde eu estou? — perguntava-se novamente enquanto forçava os olhos para enxergar o lado de fora da cela.

O que podia notar, era um corredor escuro que trazia consigo o vento congelante do exterior até ali.

— Isso, meu ilustre convidado, é a sua derrota. — Uma voz ressoava no corredor.

A imposição da fala parecia uma tentativa de amedrontamento, mas o tom suave era quase infantil. Quem quer que fosse o dono daquelas palavras, se aproximava lentamente com passos tranquilos.

— ... — Colth não respondeu, hesitou ao notar a luz de uma lanterna iluminando o breu do corredor e se movendo para perto.

— Infelizmente, esse foi o seu fim. Espero que você tenha vivido uma vida longa. — A voz masculina e juvenil se aproximava o bastante para ter o rosto revelado e, assim como a face incrédula de Colth, também ficou visível à luz. — Nossa, você é novo. Então, espero que a sua vida curta tenha sido boa.

— Do que você está falando? — Colth se recusou a levar a sério aquelas palavras. O motivo era simples, quem as proferia parecia um adolescente mimado despojado, não combinava em nada com aquelas palavras em tom culto e o ambiente medonho.

O jovem ficou de frente para prisioneiro, do outro lado das grades de aço, parecia minimamente familiar. Com um sorriso no rosto, continuou:

— Bem vindo a fortaleza Última — exprimiu forçando sua voz para parecer imponente. Ergueu uma das mãos demonstrando a grandiosidade do lugar, mesmo que não desse para ver nada além das paredes de pedras os cercando. — Esse é o espaço de julgamento dos impuros que cruzaram o caminho da guardiã de Finn.

— Fortaleza Última? Guardiã do fim? Do que você está falando? —perguntou Colth sinceramente, o seu tom parecia subestimar o garoto a sua frente.

— Não é “guardiã do fim”, é “guardiã de Finn”. Finn. Entendeu?

— Que seja — respondeu dando de ombros. — Escuta garoto, quantos anos você tem?

— Eu? Eu não sei exatamente. — Pareceu se surpreender com a pergunta.

— Não sabe a sua própria idade? — retrucou duvidando da resposta. Imaginava que o garoto, que parecia possuir uns 14 anos de idade, pudesse mentir sobre a idade de modo a fingir ser mais velho, mas dizer que não sabia? Isso já era demais.

— É claro que eu sei... — o jovem fechou o rosto. — Eu só não sei, exatamente.

— Tanto faz. Onde estão seus pais? Ou melhor, a pessoa que cuida desse lugar? Eu preciso falar com eles. Cometeram um engano ao...

— Sou eu quem cuida desse lugar. — respondeu o garoto o interrompendo. Ficou com o olhar perdido focado na luz de sua lanterna em meio aos seus pensamentos. — Eu deveria saber a minha idade? Quer dizer, deveria saber exatamente?

— ... — Colth permaneceu calado. Se surpreendeu mais uma vez, na verdade, toda aquela conversa era uma sucessão de surpresas.

— Eu nunca pensei nisso. — O garoto continuava com o assunto enquanto permanecia com o olhar pensativo, em seguida, se voltou para Colth do outro lado da grade. — Quantos anos você tem?

Pensou em não responder, aquilo não o levaria a lugar algum, mas ao notar o rosto curioso e inocente do garoto, não conseguiu evitar:

— Eu tenho 20. Agora me escuta, eu preciso sair daqui...

— 20? Haha. — o jovem riu forçadamente. Parou de prestar atenção em Colth após obter a resposta. — Então, eu com certeza sou mais velho do que você. Deve me respeitar.

— O quê? Claro que não.

— É claro que sim.

— Aff. Por que eu estou discutindo com uma criança? — Colth afastou a tentação de perder tempo com algo tão banal. — Escuta, eu preciso sair daqui. Pessoas correm perigo. Eu corro perigo.

— Você? Por que você correria perigo? Não há perigo algum aqui. Você já foi derrotado. — disse o garoto em desdém.

— Do que você está falando, garoto?!

— Você não percebeu? Coitadinho. — Novamente, o tom absolutamente casual e descontraído em desprezo era minimamente estranho para a situação. — Vou tentar te ajudar a lembrar, então. Uma mulher.

— Uma mulher?

— Isso. Uma mulher. É tão difícil para você seguir o meu raciocínio assim? — mostrou uma expressão bravia no rosto mal iluminado. — Ela tem cabelos longos, é bem mandona, tá sempre com uma cara fechada, usa óculos...

— Você está falando da Garta? — Colth prenunciou a resposta para o que parecia uma charada.

— Como você sabe o nome dela? — O garoto do lado de fora da cela inclinou a cabeça em dúvida, mas logo se desfez dela. — Tanto faz. O importante é que ela te enviou para cá. Então eu, o todo poderoso líder da vila Última, vou julga-lo.

— ... — Colth tinha um grande ponto de interrogação nas expressões de seu rosto.

— Você parece bem tonto, em? — o garoto dizia ao colocar a mão sob o queixo de forma pensativa. — O que você fez? É algum seguidor da Deusa Lux?

— O que isso tem a ver? Quer dizer, eu já fui algumas vezes na igreja, mas eu não diria que sou um seguidor.

— Não foi isso que eu perguntei — estranhou a resposta. — O que eu quero saber é o que você fez para a Garta te mandar para cá?

— O que eu fiz? Eu não fiz nada... eu acho.

— Como, não fez nada? Algum motivo tem para você estar aqui.

— Nós apenas somos parceiros nos exames da seleção.

— Parceiros?

— Sim. Caímos no mesmo grupo e então...

Antes que Colth pudesse terminar a sua explicação dos acontecimentos, um flash de luz, vindo de suas costas, o interrompeu. A rápida e breve iluminação azulada veio do centro da cela e chamou a atenção de ambos que discutiam.

— O que foi isso? — Se virou com os olhos semicerrados e a visão embaçada pela luz repentina.

— Falando na criatura... — disse o garoto blasé.

— Por que você é tão pesado? — A mulher ao centro da cela carregava em seus braços um homem desacordado.

— Como você entrou?... — disse Colth boquiaberto ao notar de quem se tratava.

Garta soltou o corpo do homem inconsciente ao chão sem qualquer cuidado ou delicadeza, em seguida, ao perceber o rosto surpreso de Colth a encarando, se descontentou.

— Eu já havia me esquecido de você — disse ela ao rapaz incrédulo enquanto tentava se manter de pé com uma notória dificuldade.

— Co-como? Esse lugar é fechado. De onde você veio? Como...

Colth não conseguiu terminar as suas perguntas. A mulher, por sua vez, tentou dar atenção a elas, mas não resistiu a extrema fadiga pesando em seus ombros. Seus olhos se fecharam e seu corpo desmoronou.

— Garta! — o garoto gritou preocupado. Rapidamente buscou as chaves da cela em um dos seus bolsos e abriu a porta para correr até o corpo da mulher ao chão e se agachar ao lado dela.

— Eu tô bem... Só preciso descansar um pouco. — disse ela débil. Respirou fadigada até que perdeu a consciência.

— Droga... — o garoto manifestava a sua preocupação. Tentou imediatamente erguer o corpo da mulher.

— Espera. — Colth foi ao socorro assim que notou a dificuldade do menor com o peso. — Deixa eu te ajudar...

— Não encosta nela! — rosnou como um cachorro.

Colth hesitou enquanto o garoto segurava o corpo de Garta desajeitadamente tentando puxa-la desacordada para fora da cela.

— Tá brincando? Vai mesmo arrastar ela assim?

— Não. — esforçou-se — eu vou...

— Deixa disso... — Colth ignorou as ordens anteriores e puxou a mulher para os seus braços.

— O que está fazendo? — competiu o garoto sem chances. — Eu mandei você...

— Fica quietinho — se impôs — Eu cuido disso. Só me mostre o caminho.

O garoto estranhou a atitude. O rapaz parecia mesmo disposto a ajuda-lo. Calou-se pensativo.

— Vamos? — apressou Colth.

— Tá. — Abriu mão de qualquer dúvida. — Vem, me segue.

Assim que passaram pela porta de barras de aço, o garoto se pronunciou mais uma vez:

— Você conhece esse outro? — disse apontando com os olhos para o homem desacordado no chão frio da cela.

— Foi ele quem nos atacou a pouco — respondeu Colth ainda com a mulher em seus braços esperando a direção certa.

O jovem voltou a trancar a cela com apenas o encapuzado em seu interior.

— Vem. Traga ela para cima.

O garoto abria caminho na escuridão do corredor com a sua lanterna em mãos enquanto era seguido de perto por Colth.

O rapaz manteve-se calado mesmo possuindo uma dúzia de dúvidas em sua cabeça. Não pode deixar de observar, por alguns breves momentos, o rosto desacordado de Garta pensando no quão destemida e forte ela havia sido no momento do combate. Mesmo que agora o seu descansar delicado e sereno não demonstrasse nada disso, ela sem dúvidas era uma encrenca em pessoa.

— O que você está fazendo? — perguntou o garoto ao parar diante de uma passagem no final do corredor e olhar repentinamente para o rapaz que o seguia.

— Hã? Nada. — Colth disfarçou o seu olhar deslumbrado sobre a mulher em seus braços. — Eu só estava...

— É mesmo um tonto —sussurrou o garoto. — Vem. É por aqui.

O jovem começou a subir um lance de degraus de pedra que se estendiam pela escuridão do corredor claustrofóbico. Colth acolheu as ordens e, assim que terminou de subir a escadaria, se deparou com um ambiente totalmente diferente do último.

Um corredor espaçoso, bem iluminado, luxuoso do piso ao teto. Um tapete vermelho, que percorria toda a extensão do corredor comprido amortecendo os passos de ambos, os levavam até uma das diversas portas de madeira talhadas a mão.

O corredor de grandes janelas e lustres foi deixado para trás quando o garoto adentrou por uma das portas e foi seguido pelo carregador.

— Coloque-a na cama.

Colth assentiu as ordens. Delicadamente repousou o corpo de Garta sobre o macio colchão coberto por lençóis de seda e algodão que compunham a cama de casal no centro daquele espaçoso quarto, tão luxuoso quanto o corredor. O rapaz se afastou alguns passos e viu o garoto tomar o seu lugar com preocupação, o jovem aconchegava a mulher e a cobria com os lençóis.

— Ela vai ficar bem? — perguntou Colth.

— Vai sim. Ela só precisa descansar um pouco. — respondeu o garoto enquanto tomava o rumo para fora do quarto.

— Que lugar é esse? — Colth seguia os passos do mais jovem. — Eu nunca imaginei estar em um lugar tão grandioso. Eu só consigo imaginar um lugar assim em toda Albores... Espera. Nós não estamos no palácio do imperador, não é?

— O quê? Claro que não.

— Claro, claro. Eu realmente não conheço muito além da minha cidade, mas me surpreende ter um lugar tão luxuoso assim na Capital.

— Capital? Haha. — O garoto riu sem esconder a sua surpresa enquanto fechava a porta dupla do quarto. Ambos se viram de frente um para o outro em meio ao corredor caprichado. — Não estamos na Capital. Estamos muito longe de lá.

— ...

— Se não acredita, veja você mesmo. — apontou para a janela atrás das belas cortinas que escondiam o corredor da luz do Sol.

Foi o que Colth fez, puxou o tecido pendurado para o lado e revelou a vista do exterior do lugar.

— Uau — sussurrou fascinado.

Do outro lado da janela a paisagem impressionante enchia os olhos do observador. Montanhas e mais montanhas cobertas de florestas avermelhadas por toda a sua extensão. Era possível ver algumas estruturas em meio a vegetação que pareciam ter sido abandonadas há muito tempo. Um belo rio corria entre as construções e a vegetação dourada, banhada pela luz do amanhecer e complementada pelos pássaros que voavam ao céu azul, o horizonte era como uma pintura ganhando vida através de um sonho.

— Aqui é Finn, ou costumava ser. Antes da Deusa de Lux derramar sua ira sobre esse mundo. O que sobrou foi basicamente esse lugar e mais uma pequena vila aos arredores daqui. Chamamos de Fortaleza Última.

— Isso é incrível. — Os olhos de Colth ainda brilhavam frente ao horizonte deslumbrante.

— Hum. — O garoto soltou um suspiro inspirado por um sorriso. — Devia ver esse lugar na primavera, as flores deixam tudo mais colorido. No verão também fica incrível, isso tudo fica verde e os animais aparecem aos montes, o problema são os insetos.

— Você disse, verão? — Colth demonstrou seu estranhamento. — Estamos no verão.

— Não nesse mundo.

— Mundo? O que isso quer dizer?

— Por que me trouxeram para o quarto? — A voz cansada de Garta vinha do cômodo recém fechado pelo garoto. Ela se apoiava no batente da porta e tentava demonstrar forças que evidentemente não tinha naquele momento. — Eu falei que só precisava de um tempo.

— Garta? Você deveria descansar mais. Se continuar assim, vai acabar se matando.

— Eu agradeço a preocupação irmãozinho, mas eu já estou bem melhor. — Caminhou lentamente atravessando o corredor.

— Tem certeza? — se preocupou o garoto.

— Sim. Eu só abusei um pouco dos deslocamentos.

Ela se aproximou dos dois e se apoiou no parapeito da janela frente ao vidro.

— Quantos você fez?

— Três deslocamentos. Um foi com aquele emissário que nos atacou. Além desse deslocado aqui. — apontou para Colth ao seu lado.

— Quatro pessoas? Isso é um recorde, não? — perguntou o garoto impressionado.

— É sim.

— Alguém pode me explicar o que está acontecendo? — Colth se pronunciou, farto de apenas ouvir coisas sem o menor sentido, foi ignorado.

— Pode me dizer o porquê de ter deslocado esse cara pra cá? — o garoto perguntou sem qualquer timidez apontando para o rapaz confuso.

— Esse é o Colth, ele é inofensivo. O meu verdadeiro alvo era o emissário que nos atacou, mas ele se moveu bem na hora. Enfim, acertei essa daí. Ele até deu sorte, se tivesse errado estaria morto.

— Morto? — sussurrou Colth.

— Então, esse aí não é inimigo? — o garoto buscava o esclarecimento.

— Não, Hikki. Ele não é nenhuma ameaça, eu já disse.

— É claro que eu não sou inimigo! — exclamou Colth irritadiço. — Eu estive esse tempo todo ao seu lado sem te fazer mal. Não faria sentido eu ser inimigo. Além disso, eu até carreguei a Garta, é sério que isso não me faz uma pessoa confiável?

— Espera aí. — Garta interrompeu as palavras do rapaz. Se voltou ao garoto. — Você deixou ele me carregar? Hikki?

— O que eu podia fazer? Deixar você na cela com dois malucos desconhecidos?

— E você decidiu que estava tudo bem um desses malucos me carregar por aí?

— Ei. Eu estou aqui, sabiam? Não sou nenhum maluco. — Colth continuou ignorado.

— Aff. Esquece. Eu preferiria não saber disso — Garta desistiu da discussão.

Os três frente a janela se juntaram ao silêncio por breves segundos, a luz do Sol acertando seus rostos aqueciam o ambiente mais ordeiro.

— E o que você pretende fazer com o maluco? O lá de baixo — perguntou Hikki após o respiro conjunto.

— Eu quero interroga-lo. — Garta voltou a sua seriedade natural. — Perguntar sobre como ele ficou sabendo da Celina, a guardiã.

— Celina, ela... — Colth interrompeu a conversa.

— Ela está bem, não se preocupe. O emissário que a atacou não era uma grande ameaça. — Garta tratou de acalmar o rapaz e em seguida voltou-se ao garoto. — Mas eu quero entender como ele se infiltrou na sede do ministério da Defesa.

— Hum. Isso é importante. — concordou Hikki. — E a guardiã?

— Na biblioteca, junto com um tampinha barulhento.

— O Aldren e a Celina estão aqui? — Colth mostrou entusiasmo.

— Sim. Pensando bem, é bom ir vê-los. — Garta se antecipou ao que viria por parte do rapaz. — Depois cuidamos do emissário.



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