Volume 1

Capítulo 9: Cicatrizes de Rasuey

— Por que você está presa aí? — perguntou o garoto franzino ao descer as escadas de modo sorrateiro. Estava curioso pelo o que se escondia no porão da sua nova moradia e, como qualquer criança aos treze anos com o instinto aventureiro, se empenhou em descobrir. Só não esperava encontrar uma garota de idade similar a sua atrás de uma grade do que parecia uma cela de luxo.

— Hã? — A garota baixou o livro que possuía em mãos e, após piscar os olhos algumas vezes para desembaçar a vista, surpreendeu-se sem reação. — Eu? Eu não sei...

— O que você está lendo? — perguntou o menino com um sorriso brilhante no rosto ao se aproximar das barras de ferro que os separavam.

— Um livro.

— Eu sei que é um livro. Mas sobre o que é?

— Ah. É sobre biologia. Fisiologia das criaturas sombrias, para ser mais exato. — A garota respondia sem mudar o seu olhar minimamente surpreso.

— Fisiologia? O que é isso? — O garoto sorridente se sentou ao chão, assim como a pessoa do outro lado da grade.

— É a parte da biologia que estuda como os corpos dos seres vivos funcionam.

— Eu não sei se eu entendi. Me dá um exemplo — exigiu o menino com mais um sorriso simpático.

— Hã? — A garota demorou a reagir, a cortesia lhe cativou. — Bom, aqui diz que os Capelobus possuem olhos bem pequenos em proporção ao seu corpo, e isso resulta em uma visão bem ruim, por isso não costumam aparecer a noite.

— Tipo um morcego, então?

— Isso. Só que os morcegos possuem uma ótima audição que ajudam na sua locomoção e localização. Já os Capelobus, se perdem completamente quando não podem usar a visão.

— Uau. Isso é incrível. Então isso é Fisiologia? — O garoto ficou notoriamente impressionado, não só com a informação, mas também com a inteligência daquela menina. — Não costumam ensinar isso na minha escola. Em que escola você estuda?

— Eu não vou para escola.

— Sério? Que bom pra você. Mas é um pouco estranho. — Ele inclinou a cabeça pensativo. — Não importa. Que tal a gente ir ver os sapos que tem no riacho perto da floresta? As vezes aparecem morcegos por lá, também.

A garota calou-se e desviou o seu olhar inexpressivo para longe. O silêncio, sempre companheiro dela, se fez presente. Voltou seus olhos imediatamente para o outro lado da grade.

— Eu não posso. Como pode ver, eu estou presa aqui.

— Presa é? Eu vou te tirar daí. — O garoto se levantou determinado.

— Não! Por favor, não faça isso — implorou ela, agarrando as grades.

— Ué? Por que não? Você gosta de ficar presa aqui?

— Não é isso... Se eu sair, pessoas vão correr perigo — disse a garota com o tom neutro de antes, se virou e voltou ao seu livro. — Esse é meu destino.

— Então, você vai ficar nesse porão para sempre? — perguntou ele, certo de que convenceria a menina.

— Sim...

— Sim!? — se surpreendeu com a resposta oposta a esperada. Em seguida, se desfez de seus pensamentos e desistiu. — Bom, se você quer mesmo isso, então não tem o que eu possa fazer.

Voltou a se sentar no chão, de frente para a menina que disfarçava a sua presença com os olhos nas figuras de animais das páginas do seu livro.

Ele ficou em silêncio apenas observando todo o resto daquele quarto, ou melhor, daquela cela no porão.

— Você vai ficar aí? — A garota baixou o seu livro novamente.

— Vou. Algum problema?

— Não... Nenhum.

O silêncio se instaurou de novo, mas dessa vez, não era algo solitário. Não era ruim.

Passou-se uma hora desde então, apenas o barulho da respiração e das viradas de páginas dos livros que ambos liam, eram de fato ecoados.

— Por que você ainda está aqui? — Finalmente a garota ficou incomodada a ponto de fazer a pergunta e quebrar a atmosfera da que desfrutou.

— Eu estou lendo.

— Não. Não está — manteve-se neutra. — Você está segurando o livro que eu te emprestei de cabeça para baixo.

— Ah? Sério? — O menino desvirou o livro de imediato. — É que as figuras são melhores de ver assim.

— Eu não entendo. Você nem gosta de ler. Por que não está aproveitando o dia lá fora?

— Eu achei que você poderia querer companhia. — disse o garoto. Ele sorriu ao ver a menina escondendo os seus olhos atrás do livro mais uma vez. — Além disso, são duas da manhã, não tem muito o que fazer de madrugada nessa mansão. Você realmente não faz ideia do que se passa fora desse porão, não é?

 — ... — Ela se afundou ainda mais nos textos.

— Não quer falar? Tudo bem, então. — O garoto se levantou e se espreguiçou enquanto bocejava. — Eu volto amanhã.

— ...

— Pode me dizer o seu nome, pelo menos? — Ele passou o livro por entre as barras de metal e o deixou sobre a mesa de dentro da cela.

— ... — Ela o ignorou mais uma vez.

O garoto respirou fundo desistente. Deu meia volta e, assim que começou a subir a estreita escada de pedra no final do porão, pensou em se despedir, mas antes que o fizesse:

— Celina. — A voz da garota ecoou vacilante. — Meu nome, é Celina.

O garoto sorriu. Aquele era mais radiante do que qualquer outro sorriso que já dera. Ele deu um passo para trás e voltou a enxergar a garota que lhe observava com olhos titubeantes.

— O meu é Aldren. Prazer em conhece-la, Celina. — Assim que disse o nome da garota, ela disfarçou e voltou a sua atenção ao livro. Aldren riu discretamente. — Até amanhã. Boa noite.

No dia seguinte, Aldren voltou da escola correndo, apressado e ansioso para ver aquela garota de novo. O menino passou em frente à estação de trem de passageiros de Rasuey e subiu a rua rigorosamente inclinada para chegar na mansão da família Buregar. A família mais poderosa da cidade que, mesmo após a guerra, ainda mantinha toda a sua riqueza e o seu prestigio intacto.

Assim que entrou pela enorme porta dupla da mega construção, foi repreendido por uma das camareiras:

— Não corra dentro da residência, Aldren.

— Sim, tia.

O garoto então passou a andar, mas logo em seguida, apressou seus passos novamente.

Atravessou o belíssimo corredor florido e enfeitado para chegar até a cozinha. Percebeu que não havia ninguém ali, mesmo que o fogão estivesse ainda quente e o cheiro do almoço estivesse no ar. Sorriu e colocou a sua pasta com os materiais escolares sobre uma das várias bancadas, seguiu para o depósito de alimentos sorrateiramente.

Quando pensou que mais nada podia lhe impedir, foi surpreendido por três pessoas discutindo no interior do depósito. Se escondeu rapidamente e ficou atento ao diálogo.

— Quantas vezes eu já disse para deixar essa porta trancada? — Um homem bem vestido se impunha sobre as criadas uniformizadas.

— Desculpe, meu senhor. A Lilian, ela é...

“Mamãe?” Pensou Aldren segurando a respiração para não o revelar.

— Não quero saber se é a primeira semana dela, ou se ela é burra. Tranquem a merda dessa porta assim que eu sair, é simples. — A rigidez do homem mantinha as duas mulheres cabisbaixas esperando pelo pior. — Onde está a chave reserva?

— Escondida de baixo da pia. Em uma fresta na parede. Garanto-lhe que ela não foi usada.

— Hum. — O homem respirou fundo para voltar a um tom mais ameno. — Ótimo. Vocês só devem usar para levar comida lá para baixo quando necessário, caso eu não tenha tempo de vir.

— Sim, senhor.

— Agora, quanto a você, Lilian. Esse seu deslize não passará desapercebido. — O homem deu meia volta e se preparou para deixar o local com um olhar ardiloso. — Siga para o meu quarto, sozinha. Discutiremos a sua punição.

— S-sim, senhor — respondeu a mulher mais nova.

Ao ver o homem se aproximando, Aldren se esgueirou e se escondeu atrás dos barris de carvalho cheios de suprimentos próximos a parede da cozinha. Esperou por mais alguns segundos até que o homem deixasse o local, as mulheres vieram logo em seguida.

— Eu sinto muito, Lilian — disse a mais velha consolando a outra que segurava o choro. — Se acalma. Você não pode mostrar qualquer fraqueza ou resistência. Agora, é melhor você ir logo, não vai querer deixar o mestre Buregar esperando...

As duas saíram da cozinha. Aldren pensou em cancelar os seus planos, mas a sua mãe, mesmo que segurando o choro, parecia não correr perigo. Inocentemente se conteve, esperou o completo vazio na cozinha e então foi direto para a pia. Não precisou procurar muito, coletou a chave enferrujada em uma fresta na parede, abaixo da bancada, e seguiu para o depósito.

Destrancou a porta e adentrou no mesmo cômodo do dia anterior. Ao descer as escadas, sorriu animado ao ver a garota no mesmo lugar de antes.

— Você ainda está lendo? — perguntou Aldren se anunciando.

— Sim. — respondeu Celina.

Sentada ao chão com as pernas cruzadas, ela se mantinha entretida com o livro que possuía mais páginas do que Aldren havia lido em toda sua vida.

— Eu trouxe uma coisa para você.

— Uma coisa... para mim? — Celina baixou o livro e levantou a cabeça curiosa.

Aldren colocou a mão no bolso incitando a atenção da garota que ficou de pé e se aproximou, em seguida, ele trouxe a mão de volta para a luz do porão de forma brusca. Tentou assustar a menina do outro lado da grade com o movimento rápido.

— Tcharam! — Esticou a mão e esperou a reação.

— Isso... — Celina manteve o seu rosto inexpressivo.

— É um sapo. Você não se assustou? — perguntou ele decepcionado.

— Não é um sapo. É uma rã. E não tem o porquê de eu ficar assustada com ela.

— Então, você não tem medo? — Aldren observava os enormes olhos do pequeno anfíbio na palma da sua mão.

— Não. Essa daí é inofensiva.

— Entendi. — Deixou o desapontamento de lado. — Encontrei ela no riacho, perto da floresta. Quer ir lá ver se encontramos mais? Podemos colecionar.

— Eu já disse que não posso sair daqui. — Celina se sentou novamente e voltou a mergulhar no seu livro. — Além disso, você acabou de perder essa aí.

— O quê!!! — se surpreendeu ao ver suas mãos vazias.

O pequeno animal havia saltado para tão longe, que era impossível identificar a direção. O garoto, por sua vez, encolheu os ombros desanimado e suspirou descontente.

— Por que você voltou?

— Eu disse que voltaria. E vou continuar voltando, todos os dias.

— Isso não faz sentido. Você não tem motivos para isso.

— Motivos... Hum... — Aldren sentou-se ao chão enquanto pensava na resposta. De frente para a garota, com a grade de ferro separando-os, ele sorriu. — Podemos fazer um acordo.

— Acordo? — A atenção de Celina foi atraída de modo inédito.

— Você não pode sair daí. E eu quero saber mais sobre... — Ele desviou o olhar rapidamente antes de corar. — Sobre os seus livros. Mas eu não quero ler, são chatos.

— Você é bem preguiçoso né?... — pensou alto ela.

— Então, eu trago as coisas de lá de fora para você. E você me fala sobre elas. Que tal? — Aldren sorriu emanando simpatia. — É um bom motivo. Eu quero aprender, e você quer saber mais sobre o mundo lá fora.

— Eu nunca disse que queria aprender sobre o mundo lá...

— Não precisa mentir. Eu consigo ver isso nos seus olhos. — O garoto estava determinado.

— Consegue... ver?...

— Isso. E então? Temos um acordo?

“Como é possível alguém ver o que a outra pessoa está pensando, só pelos olhos?” Pensou Celina observando o sorriso brilhante à sua frente. Imóvel, inexpressiva, mas surpreendida.

— Vou entender o seu silêncio como um “sim”. — Aldren não esperou. Aquela era a resposta que ele queria desde o começo, não sairia dali com qualquer outra. — Então, você pode me falar mais sobre os sapos? Como que eu consigo pegar um?

— Ah. Um sapo? — ela hesitou por um segundo antes de se concentrar na pergunta. — Bom, primeiro você deve saber que...

Aquela conversa durou horas. Aquelas horas viraram semanas. E aquelas semanas passaram como uma única conversa. Uma conversa que se estabeleceu por anos.

Aldren visitava aquele porão todos os dias, escondido, independentemente de qualquer coisa. Não era algo absurdamente difícil, sabia onde ficavam as chaves e os horários dos empregados do casarão. Além disso, ele próprio morava naquela mansão, em um quartinho nos fundos de uma ramificação para os empregados, mas ainda assim, na mansão.

Celina compartilhava os seus conhecimentos, sabia que o garoto não se interessava realmente pelos seus livros, mesmo assim ele insistia em estar ali. Ela desistiu de perguntar o motivo disso com o passar do tempo, Aldren sempre evitava o assunto mesmo.

— Eu acho que faltou deixar no forno um pouco mais — o garoto julgou o sabor enquanto mastigava a última fatia da torta de frutas. — O que você acha, Celina?

— Tá igual a última, Aldren.

— Sério? Então você não gostou?

— Eu não sei — a garota respondia neutra de dentro das grades.

— De novo isso? Então acho que eu vou ter que me esforçar mais. Ainda vou fazer uma torta que vai te impressionar.

— Por qual motivo me fez essa torta?

— É o seu aniversário ué? Só estamos comemorando. Não é todo dia que você fará dezoito.

— Você disse a mesma coisa semana passada — respondeu ela com os olhos indiferentes.

— Eu não tenho culpa se não sabemos exatamente o dia em que você nasceu.

— Ainda não entendo como você consegue usar a cozinha sem ninguém perceber.

— Eu já disse. Ninguém fica na cozinha durante a noite. Além disso, eu vou acabar indo embora em alguns dias, mesmo. Não vão poder fazer muita coisa comigo.

— Você vai embora? — perguntou Celina devolvendo o pires com as migalhas da torta por entre as grades, ela não pareceu nada impactada.

— Completarei dezoito logo também. Devo ser escolhido para trabalhar na mina de carvão — respondeu desanimado.

— Por que você não vai trabalhar em outro lugar? E aquele seu sonho, de se tornar o chefe de cozinha de um restaurante?

— As coisas mudam — respondeu sorrindo. Pareceu não convencer a garota, por mais que ela não tivesse movido um músculo facial, Aldren conseguia sentir só de observar os olhos dela. — Se eu abrisse essa cela, você fugiria? Iria para outro lugar?

— Você sabe que eu não posso sair...

— Não perguntei o que você pode ou não fazer. — Aldren fez questão de mostrar a seriedade em seu tom. — E então?

— Eu não sei...

— Você já deve ter dezoito anos agora, não?

— Eu não...

— Não sabe. — O rapaz beirava a grosseria. — Não importa. Você vai mesmo ficar nesse porão para sempre?

— Por que isso, de repente? Eu não entendo.

— Eu não quero ir para as minas. — Aldren baixou a cabeça desanimado.

— Mas você disse que...

— Eu sei o que eu disse! — retrucou irritadiço com os olhos marejados. Gesticulou com as mãos que seguravam os pires de modo a arremessar migalhas de torta por todo o lugar. — Esquece o que eu disse.

O rapaz virou as costas e caminhou para fora do porão. Seus passos pesados nos degraus faziam Celina pensar sobre algo que não compreendia.

No dia seguinte, o líder da família Buregar foi ao porão. Como de costume em toda manhã, levou as refeições da garota recém preparada em uma bandeja de prata.

— Celina, aqui está. — Deixou a bandeja sobre a mesa no interior da cela. — Seu braço, por favor.

A garota encolheu a manga das suas vestes brancas para revelar o fino braço com inúmeras cicatrizes de agulhas na sua pele macia.

O homem, com auxílio de uma seringa e um frasco, marcou mais um daqueles pontos nela. Retirou uma pequena quantidade de sangue da garota e guardou o frasco com o liquido quente em uma pequena caixinha antes de colocar tudo no bolso do seu paletó caro.

— Muito bem, volto amanhã. — O homem se despediu frio ao sair da cela. Em seguida, a trancou com a segunda chave do seu molho.

— Espera... — soprou Celina hesitante.

— Hum? O que foi? — perguntou o homem estranhando a situação do lado de fora da cela. Nunca antes houve algo assim.

— Como estão as suas pesquisas?

— Estou quase conseguindo. Em breve... Isso, em breve. — respondeu titubeando e escapando da conversa.

A inocente assentiu e ele se preparou novamente para ir.

— Mais uma coisa. — Celina tomava coragem. — Assim que acabar com a pesquisa, eu poderei mesmo sair daqui?

— Por que está me perguntando isso?

A garota desviou o olhar fugindo da indagação. Ela mesmo não sabia como responder aquilo.

O homem voltou a estranhar a situação. Ficou pensativo imaginando o porquê de a garota estar tão determinada, como nunca antes. Suspeitou e, então, começou a observar o cômodo tácito de forma mais cautelosa.

Quando os seus olhos chegaram ao chão, algo chamou a sua atenção. Próximo do seu sapato de coro fino polido, algumas migalhas, sobras de uma torta, tão pequenas que passariam despercebidas se não tivessem sido procuradas minuciosamente. Ele agachou e coletou os restos delicadamente com apenas dois dedos em pinça.

A garota arregalou os olhos. Não sabia o que estava por vir.

— Já entendi. — Afiou os olhos.

Buregar se levantou já tendo em mente os seus próximos passos.

— Espera. — Celina sentiu o ambiente mudando de aspecto. — Não é o que você está pensando...

Foi duramente ignorada. O homem já deixava o porão, inquieto, com o ódio lhe corroendo por dentro enquanto a garota lamentava com a solidão lhe abraçando.



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