Volume 1
Capítulo 66: Ocaso
Hueh esticou a mão, coberta por sua magia de Anima, em direção à Koza. O familiar, incapacitado de desviar, devido as cópias que o seguravam lhe causando dor, só pôde rezar para sua deusa mestra.
Quando Hueh estava prestes a tocar a criatura e provocar sua última dor, ouviu-se um disparo ecoar por toda a câmara subterrânea.
Um feixe de luz rasgou o ambiente gélido, passou estreitamente frente ao focinho de Koza e acertou a parede do outro lado. Seus olhos se arregalaram de surpresa, mas a compreensão verdadeira só veio quando percebeu que aquele rastro luminoso encontrou o braço do seu oponente no caminho, o próprio braço resplandecente do deus de Anima.
— Ah!!! — Hueh gritou com a dor. Tentou olhar para a sua mão direita, mas simplesmente a viu despencar de seu corpo e cair ao chão como apenas um pedaço de carne.
— Você errou — confrontou Goro em meio ao grupo no canto da câmara.
— Está brincando? — respondeu Garta feroz com o revolver de Sathsai em mãos. — É a primeira vez que eu uso essa porcaria de arma desregulada, em uma grande distância dessas, e com apenas o meu olho ruim. Eu acertei. Acertei por muito!
— Porcaria? Não fala assim da minha arma! — retrucou Goro.
— Porcaria, sim. Essa coisa nem parece obedecer a mira.
— Atira de novo! — gritou Colth apreensivo interrompendo a discussão.
— Não dá! Essa coisa tem um tempo enorme de recarga do cristal — respondeu Garta mostrando o revólver.
— Ahh!!! — Hueh continuava a odiar a dor mais ao centro da câmara. Talvez tivesse ficado tanto tempo no seu mundo intangível de sonhos, que havia esquecido de como era sofrer um dano fisicamente, de como era a verdadeira dor. Extrapolou a sua ira: — O que você fez!? Sua...
Koza não demorou para perceber que aquelas cópias que o agarravam como parasitas, haviam perdido força. Na verdade, ao verificar, compreendeu que as marionetes também haviam perdido o seu braço direito, assim como o original. A dor diminuía em conjunto, tinha ali a sua oportunidade.
Jogou as costas escamosas ao chão e deu um giro completo para ficar novamente de pé. A cópia agarrada ao seu dorso foi esmagada pelo enorme peso do dragão e se soltou. Koza abocanhou a marionete imediatamente e, sem dar tempo para reação, dividiu seu corpo vazio em dois. Aquele que estava ao seu calcanhar foi pisoteado sem maiores esforços da criatura.
De uma só vez, ele pôs fim as cópias. Seus corpos se tornaram apenas uma areia cinza fina que não apresentavam mais riscos. Pôde se concentrar ao verdadeiro oponente daquela batalha.
— Eu vou acabar com vocês!!! Cada um de vocês! — Gritou irado Hueh, em corrida na direção do grupo do canto da câmara.
— Atira — disse Goro apreensivo para a garota de cabelos negros ao seu lado. — Atira nele!
Garta mirou o revólver enquanto Hueh apontava a palma de sua mão esquerda na sua direção. O alvo estava mais perto, o tempo de recarga estava recém completo, a guardiã de Finn acertaria um disparo bem no meio da testa do deus de Anima.
Seu dedo pressionou o gatilho, mas, ao mesmo tempo, alguém lhe empurrou. A luz riscou o ar e o disparo acertou o teto.
— Porra! Que merda é essa? — perguntou Garta rancorosa. Estranhou ao notar quem havia lhe empurrado.
— Me desculpa... Eu...
Ao seu lado, Colth foi quem empurrou a mulher atrapalhando-a. Ele tentava resistir, mas era óbvio que estava sendo controlado pela magia de Anima.
— Você ainda é o meu guardião!!! Hahaha — gritou Hueh insano enquanto continuava avançando sua corrida.
O deus de Anima saltou os escombros com um chute aéreo em direção à Garta, a guardiã esquivou-se facilmente, mesmo assim, a perna de Hueh encontrou outro alvo.
Goro foi acertado pela sola do sapato do deus e caiu de costas ao chão, chocando-se violentamente. O rapaz tentou escapar, mas após ser tocado por Hueh, sua força pareceu se esvair. O deus aproveitou a brecha e se colocou sobre o corpo do rapaz de forma a impedir a sua fuga. Socou o rosto dele sem piedade e em seguida o estrangulou com apenas a mão que lhe sobrava.
A dor percorreu o corpo do jovem que não conseguia nem sequer gritar com a sua garganta bloqueada.
Garta tentou acudi-lo, mas teve seus ombros seguros pelo outro colega em suas costas. Colth entrelaçou seus braços ao dela e impediu qualquer movimento planejado.
— Desculpa... — disse o rapaz agindo a contra gosto.
— Colth, seu idiota! — esbravejou a mulher rendida pelo próprio amigo.
Observando tudo aquilo, Celina não ficou parada, recolheu algumas pedras do tamanho de seu próprio punho junto aos destroços e atirou-as em direção ao deus de Anima.
A primeira pedra atingiu o corpo do deus, mas foi a segunda que trouxe alívio à Goro. O fragmento do destroço voou e acertou em cheio a testa de Hueh, forçando-o a interromper sua ofensiva.
Goro respirou aliviado e tossiu sua dor enquanto o deus inimigo lamentava o corte em seu supercílio. O homem esbravejou seu ódio sanguíneo em direção à Celina:
— Sua peste!
Se levantou e correu na direção da garota com os olhos em chamas.
— Me solta, Colth! — Garta esperneou.
A guardiã de Finn percebeu imediatamente a hesitação do colega quando a pedra atingiu a cabeça de Hueh. Sem pensar duas vezes, puxou com força o braço direito para libertar-se do amigo. Com o braço livre, o movimentou rapidamente e acertou o nariz de Colth com o cotovelo sem qualquer cerimônia. Se afastou dele deixando para trás apenas o rapaz com suas dores.
Garta estava livre novamente, pensou em apontar o revólver para as costas do deus de Anima, mas Celina estava na linha de tiro, logo adiante. Não quis correr o risco de machucar mais um amigo e preferiu guardar a arma, correu para socorre-la, a luta corpo a corpo teria de servir.
— Você me rejeitou — disse Hueh frente à Celina. — Vou mostrar o que perdeu.
O deus esticou a mão desviando-se das pedradas atiradas advinda de seu alvo. Quando se aproximou de Celina e, estava prestes a alcança-la, ouviu passos às suas costas.
Garta carregou toda a sua força no punho direito e avançou ferozmente na nuca de Hueh. Não seria tão fácil, o deus percebeu o golpe e desviou simples. Ficou frente a frente com a guardiã de Finn e apertou os dentes com o ódio que já o corroeu.
A mulher, com um chute rasteiro, tentou surpreender o oponente. Não deu certo. Hueh saltou e, como se levitasse em seu robe, contra-atacou com um chute em direção ao rosto dela.
Garta juntou os braços frente ao rosto e recebeu o golpe como pôde. Seus pulsos arderam e seus pés foram arrastados para trás com a força absurda proveniente do golpe do deus. A dor a obrigou a soltar o revólver e a arma caiu ao chão de pedra distante.
A guardiã não desistiu, rapidamente se colocou novamente na luta e tentou um golpe cruzado com o punho direito, foi perfeitamente lido por Hueh. Ele segurou o soco da mulher com sua mão e se concentrou em sua magia.
— Então você é a tal da última guardiã de Finn? — Hueh parou reconhecendo aquele rosto. — A guardiã escolhida pela própria mãe.
— Do que você está falando? — Garta deu ouvidos e imediatamente sentiu-se confusa.
— Do que eu... Espera — O deus de Anima entendeu —, Edgar não te contou? Hahaha. Isso é hilário.
— ... — Garta duvidou de tudo.
— Nós matamos a sua mãe. — disse Hueh voltando a sorrir. — Eu e o Edgar, eliminamos a deusa de Finn. Ela chorou, esperneou, implorou, suplicou. Tudo culpa sua!
— Minha? — perguntou Garta sincera sem se impactar. Não foi atingida pela real intenção do deus, pela magia de Anima.
— É... sua — Hueh surpreendido. Tentou mais uma vez: — Sua culpa! A morte da sua mãe, foi sua culpa!!! Se ela não precisasse te proteger, poderia ter lutado e então...
— Cala a boca! — Garta respondeu, não só com palavras, mas também com o seu punho esquerdo fechado no rosto do deus da mente. — Eu não tenho culpa alguma!
Hueh sentiu o impacto na maçã do rosto, uma ardência imediata o invadiu. Com determinação, segurou firmemente o pulso direito da oponente, resistindo à dor sem deixa-la escapar. Um filete de sangue escapou de seus lábios, talvez acompanhado por um dente solto, antes de ele se dirigir à guardiã novamente:
— Eu não entendo. Por que você não foi atingida pela minha magia?
— Essa sua conversinha fiada é a sua magia?
— ... — Hueh se surpreendeu ao encontro da provocação da garota.
— Não deixarei que fale asneiras sobre minha mãe, seja lá quem você for — complementou Garta consciente.
— Tsc. Tanto faz.
Garta sentiu algo se aproximar às suas costas, tinha certeza de se tratar de um golpe, mas não tinha condições de desviar e, ao tentar se proteger com o braço direito, Hueh a segurou mais forte impedindo sua ação.
O inimigo que veio por trás acertou um soco com a parte de fora do punho no rosto da guardiã sem lhe dar escapatória.
Garta cuspiu o sangue e a dor, em seguida, buscou a visão desse segundo oponente e teve uma leve surpresa ao reconhecer o rosto de Goro nele.
— Você também? — perguntou ela.
— Não sou eu... — grunhiu o rapaz tentando resistir a magia de Anima.
— Hum — ela o encarou insatisfeita angulando as sobrancelhas. — Não vou esquecer disso.
— É sério que você me fez bater na pessoa mais amedrontadora do império? — perguntou Goro sarcástico ao deus. Segurou seus próximos movimentos e apontou com os olhos para além de Garta: — Na sua esquerda.
Garta ouviu bem, não precisou nem olhar para o que vinha lhe acertar, colocou o seu braço esquerdo à frente e impediu o golpe certeiro. Era um chute alto, vindo novamente de trás, dessa vez interceptado pela guardiã.
Quando levou os seus olhos para o terceiro oponente, notou se tratar de Colth. Mesmo com o nariz jorrando sangue, ele se mantinha sobre o controle do deus de Anima.
— Desculpa — disse Colth em resistência derrotada.
— É sério isso? — resmungou Garta.
À sua frente estava Hueh, enquanto Colth e Goro se posicionavam de ambos os lados. A guardiã mordeu os lábios, consciente de que aquilo não seria fácil.
Garta encontrava-se cercada, seus olhos percorreram os três oponentes tentando prever o que viria.
O deus tentou avançar primeiro, mas com agilidade e determinação, Garta se movimentou rapidamente, desviou da tentativa de Hueh agarrá-la, girando habilmente para escapar de seu alcance. No mesmo movimento desferiu um poderoso soco no rosto de Goro, fazendo-o recuar cambaleando.
Enquanto isso, Colth avançou com um chute abrupto, Garta não teve alternativas, se atirou ao chão abaixando-se no último momento e deixando o golpe passar no vazio. Aproveitando a abertura, ela deu uma rápida sequência de golpes precisos, um soco na barriga de Colth e um empurrão estratégico em Goro ainda cambaleante. Não teve tempo nem de respirar, quando se voltou ao deus, viu mais uma vez a sua mão cintilante se aproximar.
A guardiã seria acertada mais uma vez pelo deus, dessa vez com intenções mais abruptas e mortais, quando isso estava para se concretizar, Hueh foi agarrado pelas costas. Não só o próprio deus, mas Garta também se surpreendeu.
Os braços delicados de Celina estavam envoltos ao tórax do deus arrogante, impedindo a continuidade de seu golpe. Ele teve de alterar seus planos, e fez isso da forma mais simples possível.
— Me solta, sua... — esbravejou Hueh. Não pensou duas vezes, sua mão cintilante foi de encontro ao braço da garota que o prendia.
No momento em que Hueh tocou a pele da guardiã de Tera, ela berrou uma dor inimaginável:
— Ahh!!! — gritou aos céus se arrependendo do que fez, mas não largou mão de seu objetivo. — Ahh!!!
— Me solta, garota! — Hueh reforçou ainda mais a sua magia perversa tentando se desprender da guardiã.
— Ahh!!! — Celina tremia enquanto seus olhos derramavam lágrimas em uma dor que atingia todas as células de seu corpo.
A garota lutava com todas as suas forças, apesar da dor intensa que a consumia. Cada segundo ali era um desafio, mas ela se agarrava ao seu objetivo com uma determinação inabalável. Seu corpo já estava exausto e trêmulo, mesmo assim se recusava a desistir.
Mais um segundo em agonia que a dominava, seu sacrifício era notável e uma prova de sua coragem e resistência para enfrentar a dor infinita que só existia em sua mente.
Garta se surpreendeu com tamanha determinação, aquilo parecia uma seção de tortura, mas ela não se amedrontou frente a cena deplorável. Não deixaria aquela dor sentida por Celina ser em vão, entendeu o que a sua amiga pretendia com aquele ato de sacrifício no momento em que se forçou a isso.
Garta preparou o seu mais vigoroso e vingativo golpe, fechou os punhos com a raiva já transbordada.
— Me solta ago... — Hueh não conseguiu terminar a frase.
O deus, rendido ao abraço firme de Celina, foi atingido pelo soco poderoso e certeiro da guardiã de Finn, tão forte, que o homem foi jogado ao chão.
Garta não perdeu tempo e continuou sua ofensiva, subiu sobre o corpo de Hueh e manteve os socos sem descanso. Nem com os dois braços ele conseguiria parar aquela ferocidade. Direita e esquerda, um atrás do outro, o deus estaria derrotado em segundos, se é que já não estava.
Mas assim que Garta levantou seu punho para o sétimo soco seguido na fuça desconfigurada de Hueh, um grito ecoou ao centro da câmara.
— Não!!! — Um berro de desespero que rasgou a garganta de Koza apavorado.
O som angustiante reverberou, carregado de dor e impotência. As lágrimas inundaram os olhos do dragão enquanto o grito ecoava, uma expressão visceral de choque e aflição. A dor dilacerante invadiu sua alma, enchendo o ar com uma agonia palpável. O grito ressoou como um lamento sincero, uma resposta primal ao impacto brutal da morte.
Garta se surpreendeu ao colocar os olhos ao centro da câmara, enquanto Hueh, ao fazer o mesmo, abriu um sorriso em meio ao sangue escorrido de sua face.
— Não tem como evitar o recomeço — sussurrou o deus em tom vitorioso, mesmo que encoberto de feridas. Garta apenas engoliu seco.
Observavam de longe, seus olhos fixos na cena que se desdobrava diante deles. A deusa Lux segurava a sua lança sagrada coberta de sangue da oponente. A vítima tinha um buraco bem ao centro da barriga enquanto derramando o líquido vermelho vital ao chão. Em seu rosto, uma feição complacente aceitando o destino.
Imponente e poderosa, a deusa Lux acabara por desferir um golpe fatal em sua própria filha, a deusa Tera.