Volume 1
Capítulo 67: Síndrome de Deus
— Rubrum está realmente disposto a se envolver nessa briga? — indagou o homem esbelto, parado diante da deusa Tera no terraço que se estendia sobre o sereno rio da tranquila residência nos arredores da floresta.
— Ele já se envolveu — respondeu a mulher de cabelos castanhos sedosos, deixando-os dançar ao vento. Em um leve vestido verde esmeralda, ela contemplava a bela paisagem arbórea e a cachoeira ao fundo, apoiada no parapeito de madeira rústica de sua própria casa.
Tera sabia o que a aguardava, sabia que a serenidade trazida pelos pássaros coloridos no céu azul e águas tranquilas do rio cristalino estavam com os dias contados.
— Ele é louco! — Aproximou-se o homem adentrando à sacada. — Recusar entregar sua guardiã é o mesmo que pedir o fim de seu mundo.
— Você tem razão — respondeu Tera, mantendo-se pacífica enquanto sentia a suave brisa acariciar seu rosto.
— Rubrum sempre age antes de pensar. — O homem se apoiou no parapeito ao lado da deusa. — Onde ele estava com a cabeça? Aquele... ah! — Rosnou em frustração, direcionando seu olhar para a floresta do outro lado do rio.
O som constante da cachoeira ao fundo contrastava com a calmaria do restante. O homem sentiu-se desconfortável com o silêncio quase irreal e desviou seus olhos para a deusa, tentando imaginar o que se passava em sua mente. Não precisou refletir por muito tempo, pois Tera logo percebeu seu olhar e, com toda sua delicadeza, respondeu:
— Eu não o culpo.
— Hã?
— Sabe, o próximo ciclo é meu. Eu é quem teria de entregar o meu guardião. — Mostrou seus olhos mel ao homem sensibilizado por sua beleza — Eu não culpo Rubrum por se recusar a sacrificar a sua guardiã.
— Onde você quer chegar? — perguntou desgostoso — Sabe que eu não teria qualquer...
— Não — interrompeu Tera. Mirou os fundos dos olhos do homem — Mas talvez eu mesma me recusasse a te entregar como sacrifício para Lux, Dante.
— Não, não me diga que...
— Me desculpa — a mulher desviou o olhar —, mas eu não consegui me opor a essa revolta.
— O quê?!
— Eu vou apoiar Rubrum. Então, por favor, Dante. Me deixe usá-lo como...
— Ah! — Grunhiu o homem, Interrompendo. Puniu-se cerrando os punhos sobre o parapeito de madeira, fazendo as tábuas rangerem. — Como você pôde ser tão tola? Como pôde fazer isso com você mesma? Com o seu mundo? Como pôde...
— Chega, por favor — suplicou a mulher em tom ameno olhando para os seus próprios pés. — Isso já está decidido agora.
— Mas você é muito...
— Me abrace — sussurrou soturna.
— O quê?... — Dante pausou a sua bronca e respirou fundo observando a dor de sua deusa cabisbaixa.
Mais uma vez o som da cachoeira ao fundo se destacava.
— Me abrace, por favor.
O homem desviou o rosto ainda com desgosto sobre a situação:
— Isso é uma determinação da minha deusa? — perguntou ele mais brando.
Tera balançou a cabeça negativamente sem tirar os olhos do chão:
— Não. É um pedido da sua esposa — soprou segurando sua tristeza.
Dante suspirou desapegando de sua ira. A envolveu em seus braços e ela repousou a sua testa em seu peito antes de secar os seus olhos molhados.
O homem afagou o cabelo da sua amada e sussurrou a sua lealdade:
— Pode me usar do jeito que você quiser. Eu vou ser muito mais do que seu guardião.
— Obrigada.
O abraço duradouro os conectava a serenidade do local, mas um som distante cortante ao vento vindo do céu se aproximou até competir com o barulho da cachoeira.
— Eu trago notícias — disse o dragão em voo, se aproximando da sacada. — Eu trago... Ah, eu estou interrompendo algo? — a criatura perguntou ao perceber o momento íntimo de sua deusa.
— Não, Koza. Você é sempre bem vindo para invadir o espaço de nossa casa pela varanda quando quiser — respondeu sarcástico Dante desfazendo o abraço sobre a sua esposa.
— Eu senti um tom rancoroso? — rebateu o dragão ao pousar em meio ao rio frente à sacada.
— Parem vocês dois — interrompeu Tera com um sorriso leve se recompondo. Se apoiou no parapeito novamente e continuou o assunto: — E então, Koza, conseguiu se comunicar com Rubrum?
— Sim, está tudo conforme o planejado. O portal entre os mundos será aberto pela deusa Finn e a escolta feita pelo deus Mutha e seu guardião. Os cidadãos do mundo de Rubrum estarão seguros.
Dante se intrometeu tentando entender toda aquela conversa:
— Para que tudo isso? O que estão planejando?
— Vamos atrair Lux para a cidade capital de Rubrum. Vamos atacar de lá, uma ofensiva com a colaboração de Rubrum, Mutha e eu.
— Pode me colocar nessa também, mestra — conferiu Koza avançando seu focinho sobre o parapeito da varanda.
— Sim, eu agradeço por todo o seu apoio — expressou Tera, acariciando o queixo escamoso do seu familiar com um sorriso sereno nos lábios —, dessa forma, poderemos contar com o elemento surpresa a nosso favor.
— Eu também vou — rapidamente Dante se mostrou presente. — Mas e a deusa Finn?
— Vamos precisar evacuar a cidade Rubra. Finn se ofereceu para receber os cidadãos. Além disso, ela vai manter o portal aberto caso necessário.
— A deusa Finn não vai lutar? É bem a cara dela — reclamou o homem.
— Não seja tão duro com ela. Finn já estará correndo o maior risco entre todos nós mantendo o portal aberto.
— Que seja. E quando pretendem colocar o plano em ação?
— Daqui a três dias — respondeu Tera respirando fundo antes de levar os seus olhos aos céus.
— Se esse é o seu desejo, eu estarei ao seu lado — Dante conclui apoiando-a e, com sua enorme mão sobre o ombro direito dela: — Eu vou arrumar os equipamentos então.
— Faça isso — resumiu Tera. Mostrou seu sorriso falseando uma postura tranquila: — obrigada.
— Com sua licença — despediu-se o homem sem mais.
Dante deixou a varanda e saiu do quarto em seguida, mergulhado em pensamentos e até em emoções adversas, mas firmemente decidido e certo de sua escolha.
— Ele está morrendo de medo — comentou Koza, já a sós com a deusa.
— Eu entendo. Eu também estou — replicou Tera em tom mais melancólico. Observava as corredeiras do rio e deixava de esconder o seu temor.
— Não precisa, minha mestra — afirmou Koza com determinação, contrariando-a com boas intenções. — Você é poderosa, e estarei ao seu lado. Juntos somos invencíveis, uma dupla imbatível... Além disso, tem o Dante, ele deve servir para algo além de me responder de forma desrespeitosa. — O dragão fez uma pausa, arrancando um sorriso sincero de sua deusa. — Mas essa não é a questão. Você vencerá e colocará um fim nesse ciclo absurdo da deusa Lux, eu tenho certeza. Você me criou, permitiu que eu viesse a este mundo maravilhoso, e é por você que lutarei até o fim. Jamais permitirei que Lux a vença, pode ter certeza disso.
Tera balançou a cabeça em concordância, tocada pelas palavras. Levou suas mãos ao queixo da criatura e acariciou-o delicadamente.
— Obrigada — sussurrou pacificamente. — Obrigada, Koza. Quero que me prometa uma coisa...
— Eu prometo — respondeu imediatamente.
— Escute antes.
— Sim, desculpe.
— Quero que prometa que vai proteger este mundo. Vai manter nosso mundo a salvo, mesmo que isso signifique o meu fim.
— Mas...
— Entre mim e o futuro deste mundo, quero que escolha este mundo, sem hesitar.
O dragão afiou os olhos em dúvida, mas diante da beleza de sua mestra e da determinação em seu olhar, cedeu:
— Tudo bem, está bem.
— Obrigada, Koza. Você é mesmo um familiar perfeito.
— É claro que sou. Foi você quem me invocou.
— Hahaha. Seu bobinho — riu acariciando o dragão.
***
Na câmara subterrânea sob o palácio em ruínas, os olhares se cruzavam com intensidade entre mãe e filha. A deusa Lux empunhava sua lança sagrada bi-dentada, brilhando a energia divina que emanava dela. Do outro lado, Tera erguia sua espada longa levemente curva, resplandecendo uma aura de determinação.
— Não vou deixar que vença.
— Seus irmãos disseram o mesmo. Rubrum levou todos vocês à morte. — provocou Lux. — Como podem ser tão ingratos?
— Não tem nada a ver com gratidão.
— Proteger esses mundos podres é o mesmo que ser aliado da injustiça. Não importa, isso acaba aqui! — exclamou a mãe.
Os movimentos se desenrolaram em um duelo frenético. Lux avançou com graciosidade, brandindo sua lança com maestria, enquanto Tera se movia com agilidade, desviando dos ataques e retalhando os golpes precisos. A cada investida da deusa mãe, o dragão esmeralda Koza se movia em círculos ao redor de Tera, pronto para apoiá-la quando necessário e a protegendo dos ataques mais mortais.
A lança bi-dentada desferia golpes poderosos cortando o ar, mas a espada de Tera era rápida e precisa deslizando e repelindo com destreza os ataques que geravam faíscas luminosas por onde passavam. Koza lançava chamas em direção a Lux, distraindo-a e permitindo que Tera recuperasse o fôlego e avançasse com investidas fulminantes.
— Desista — disse Lux com sua calma divina.
— Eu não posso desistir. Este é o meu mundo, o lugar onde encontrei o amor, a amizade e tudo o que eu sou. Apesar das imperfeições e injustiças, há beleza e esperança aqui — respondeu Tera com determinação. — Não consegue enxergar isso?
— Você não entende. Eu desejo um recomeço, um novo mundo livre de ódio e ressentimentos. Um lugar onde reine apenas a justiça — argumentou Lux.
— Está errada! A justiça não existe sem compaixão, sem empatia. Se eliminarmos todas essas emoções, nada mais importará. Não vou apoiar seu plano, Lux — afirmou Tera com convicção.
— Insignificante. Isso o que vocês chamam de amor, uma simples doença que atingiu o seu irmão Rubrum e agora você. Vejo também que está com a arma divina de sua irmã. A espada de Finn, não é? — perguntou em tom provocativo: — O que aconteceu? Ela também foi pega por essa doença?
— Tsc.
— Emoção, é uma fraqueza. Principalmente, de deuses como nós. Foi por isso que quebraram o tratado, foi isso que os levou para o fim — Lux encarou certa. — Só há uma solução para acabar com essa doença, limpar tudo, até o último fragmento dessa peste. Começando por você! — Avançou em ofensiva.
— O que sentimos não é uma doença! — exclamou Tera se protegendo do ataque.
A batalha continuou a se desenrolar em uma dança mortal. A energia divina chocava-se entre as deusas, criando ondas de poder e resplandecência. Cada golpe trocado entre elas era um testemunho de força e habilidade.
Tera já se encontrava ofegante e se esforçava para manter a qualidade de seus golpes que diminuíam em velocidade à medida que a batalha avançava. Enquanto isso, Lux mantinha a sua sutileza e refino em seus ataques, eles pareciam ter a mesma intensidade e virtude do início da luta e, isso por si só, já era a prova concreta de que a deusa mãe possuía um poder sem precedentes. Mas foi um soco no focinho de Koza, arremessando o dragão contra a parede no canto da câmara, que deixou esse poder ainda mais evidente.
— Koza! — preocupou-se Tera sem poder fazer mais enquanto frente a poderosa inimiga.
— Isso acaba aqui.
A deusa investiu um poderoso golpe vertical, buscando perfurar a guarda de Tera. A filha se esquivou habilmente, mesmo exausta, rolando no chão e desferindo um golpe ascendente com sua espada. Lux conseguiu bloquear o ataque com sua lança, demonstrando a sua plenitude e, imediatamente, contra atacou.
Foi em um momento de descuido, uma brecha deixada por Tera após a exaustão, Lux aproveitou a abertura na defesa da oponente e avançou com velocidade apontando sua arma mortal, não foi parada dessa vez. Sua lança encontrou seu alvo, perfurando a barriga da filha.
Tera soltou um curto grito de dor, surpresa e já em agonia. A energia divina da lança pulsava dentro de si, enviando ondas de dor por todo o seu ser.
Depois de tantos encontros entre a lâmina curva de Tera e a lança divina de Lux, foi um único golpe que deu fim a batalha, um golpe certeiro.
— Foi exatamente assim que seu último guardião morreu, lembra? — sussurrou Lux.
— Argh.
— Foi pela minha arma divina. Por essa mesma lâmina. Dante, era o nome dele, não?
— Sua...
— De fato, emoção e amor, só servem como fraqueza — concluiu Lux.
Ela retirou sua lança do corpo de Tera, deixando-a cair de joelhos ao chão frio. A batalha havia chegado ao seu desfecho.
Koza, ao presenciar a cena, soltou um rugido de fúria e desespero:
— Não!!!
O dragão esmeralda correu em direção a Lux, lançando chamas furiosas em sua direção. A deusa desviou simples dos ataques, sorrindo triunfante diante do sofrimento de Tera.
A câmara ecoava um silêncio sombrio, interrompido apenas pelos soluços abafados de Koza que foi ao socorro de sua deusa imediatamente.
Com um movimento lento e pesaroso, Koza estendeu sua única enorme asa ao redor de sua amada mestra e deusa, criando uma espécie de abraço protetor.
— Mestra...
— Não se preocupe comigo — disse Tera em seus últimos suspiros deixando o sangue escorrer pelos cantos de sua boca e se misturar a poça aos seus joelhos no chão vermelho. — Você lembra da promessa?
— Não me faça...
— Você me prometeu.
— ... — A criatura segurou suas lágrimas. — Sim.
— Aquelas crianças... elas são o futuro desse mundo, de que eu falei. Sabe o que tem de fazer.
O dragão tinha os olhos plenos em lágrimas:
— Me desculpa, eu falhei. Eu não consegui...
— Não se desculpe ainda. Cumpra a sua promessa, por favor. Não deixe esse mundo ruir.
— Eu...
Tera afagou o queixo de seu familiar uma última vez. Sorriu para ele comprovando a sua confiança ao seu maior aliado.
— Koza, obrigada por ser o meu melhor amigo.
— ... — O dragão não conseguiu responder com a tristeza entalando sua garganta.
— Eu estou pronta, você precisa ir agora.
— Sim... — respondeu em lamento desfazendo o abraço.
Koza procurou pelo grupo no canto da sala e viu os quatro que faziam parte de seu objetivo. Saltou ganhando voo no curto espaço entre o chão e o teto do subterrâneo, alcançou o grupo em instantes e os abraçou com sua asa.
— O que... — Colth não teve tempo de argumentar, foi agarrado pela criatura assim como Goro e Celina.
A última que faltava era Garta, a guardiã estava sobre o deus de Anima. Koza deu meia volta em seu voo rasante e a recolheu, assim como os outros. Colocou os quatro sob a guarda de sua asa enquanto mantinha o voo proporcionado pela sua magia.
Koza pairou no ar, olhando com tristeza para o corpo inerte de Tera, sua amada mestra ao centro da câmara. A deusa, em seu último suspiro, se concentrou. Seu corpo emanou um brilho forte como uma estrela no dia mais escuro.
— Adeus, mestra — despediu-se o dragão esmeralda e avançou voo contra o teto da câmara. Arrebentou as pedras da construção com alguma dificuldade, mas logo encontrou a luz do sol e o ar fresco do exterior.
— O que está fazendo? — perguntou Lux ao ver a resplandecência emanada por Tera.
O brilho aumentou, e os dois deuses que sobravam no subsolo temeram pelo que viria.
— Sua ingrata. Vai mesmo se sacrificar assim? — sussurrou Lux com os olhos insultados para Tera.
A deusa recolheu sua lança e correu em direção a porta obstruída.
— Espera, mãe! Me ajuda! — suplicou Hueh com as forças que o restavam.
O deus estava incapacitado de andar após os ferimentos provocados por Garta, e o aumento da luz prenunciando o caos, foi o bastante para desespera-lo.
Lux não deu ouvidos, ao se aproximar da porta obstruída usou sua lança para rasgar as pedras e os destroços e abrir caminho para sua saída dali.
— Espera! Mãe! Mãe! — berrou Hueh por sua vida.
O deus de Anima ouviu um barulho peculiar vindo do corpo ajoelhado de sua irmã ao centro da câmara, voltou-se para observar e teve os seus olhos tomados por uma luz radiante e poderosa. Se arrependeu de tudo:
— Droga...
Ao céu, Koza aumentava a sua velocidade para se afastar mais rápido do palácio.
— Espera, Koza. O que você está fazendo? — perguntou Colth seguro pela asa da criatura.
— Estou só cumprindo ordens — respondeu com os olhos cheios de lágrimas e a determinação necessária.
— Ordens? — pronunciou-se Garta.
— Se ela fosse derrotada, tentaria um último ataque. Um ataque que faria esse mundo sofrer, mas que permitiria manter sua existência, caso dê certo.
— Do que você está falando? — indagou Goro.
— Ela vai se sacrificar... — sussurrou Celina. — Não é isso, Koza?
— Sim, Tera vai se sacrificar para finalizar, de uma vez por todas, as pretensões de Lux.
— O que ela vai fazer? — Colth preocupado.
— Vai utilizar toda sua magia na espada que carrega para gerar a maior das explosões. Magia de Tera e Finn juntas.
— Uma explosão... — sussurrou Celina.
O brilho atravessou o palácio, competiu com o próprio Sol, e então um estrondo foi ouvido. O barulho percorreu todas as cidades do império anunciando o que estava por vir.
Uma explosão violenta irrompeu do palácio, varrendo parte da capital e alcançando os céus.
— Eu não vou te decepcionar, mestra — sussurrou Koza. Tentou aumentar ainda mais a velocidade, mas foi inevitável ser alcançado pela assolação.
A onda de devastação os alcançou no ar, e todos perderam a consciência no mesmo instante envoltos do caos.
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