Volume 1

Capítulo 63: O Despertar da Consciência

Ele caminhou para dentro daquela sala escura trazendo consigo a liberdade e a luz. Inseriu a chave de origem desconhecida na fechadura e a girou, o barulho de metal ecoando pelas paredes de pedra era o anúncio de que a cela estava destrancada.

Colth escancarou a porta de barras e esperou pelo olhar da garota que se encontrava ao fundo do quarto enclausurada. O rapaz percebeu o hesitar da prisioneira que, ao ouvir o chamado da liberdade, tremeu os ombros e levou as mãos ao rosto ainda de costas.

— Celina, eu finalmente consegui te libertar — disse o rapaz contente para provocar alguma resposta dela.

A garota de costas levantou a cabeça como se observasse o céu além das pedras do teto. Passou os dedos delicadamente sobre os olhos e finalmente se virou para responder:

— Sim, você conseguiu. — Ela sorriu.

Um sorriso nunca antes avistado por Colth. Recebeu aquele sorrir que fez suas pernas estremecerem, não pôde ter outra reação que não a surpresa.

“O que é isso? Que sorriso é esse?” Pensou ele, nunca havia visto aquele brilho nos lábios de Celina, não era como os seus sorrisos falsos simulados, mas também não parecia um sorriso de felicidade verdadeira. Além disso, era acompanhado por um par de olhos que aparentavam acabar de derramar lágrimas, o que deixava Colth ainda mais confuso.

— É. Eu consegui — Colth se obrigou a falar algo para não parecer um simples objeto inanimado —, achei essa chave no... na verdade, eu não lembro onde eu encontrei essa coisa.

— Você não lembra? — disse a garota respirando fundo. Sussurrou em seguida: — Que bom.

— Celina, você está bem? Por que eu sinto que perdi algo?

— Você não perdeu nada — ela respondeu voltando a sua seriedade cotidiana. — Vamos sair daqui?

— Tem certeza de que está bem? Parece que estava chorando e...

— Chorando? Acha mesmo que eu choraria? — foi um pouco mais ácida.

— É... não. — Colth percebeu o desconforto em um tom que não esperava para ela. Assumiu como algo leviano e tirou o assunto da frente. Esticou a mão para o interior da cela com a expressão mais gentil: — Então, vamos sair daqui.

Celina se empenhou para manter o seu rosto inexpressivo. Balançou a cabeça positivamente e agarrou a mão de Colth estático na entrada do quarto.

O rapaz não esperou por mais, puxou a guardiã de Tera para perto de seu corpo e sorriu com dever cumprido.

Celina arregalou os olhos surpresa por aquele, quase abraço, vindo de Colth. Sua orelha repousou sobre o peito dele e, ouvindo os batimentos cardíacos do rapaz ressoar em sua cabeça, ela aconchegou-se.

— Como eu imaginei — disse Colth.

— Hã? — Ela surpreendida — Imaginou?

— Não é nada. Só uma coisa que eu percebi. — Colth se desfez do pensamento obscuro. — Desculpa te deixar esperando.

Ela continuou confusa e surpresa ao mesmo tempo. Se decidiu e então expressou:

— Eu preciso falar uma coisa.

— Tudo bem, mas antes. Eu quero que me escute, Celina. — Observou seus olhos. — Nós vamos achar o Aldren, tá bom?

— O Aldren?

— Isso. Agora eu entendo o porquê de ele ser tão importante para você. Afinal, foi o Aldren que te tirou desse porão, não?

— Foi, mas como você...

— Não se preocupe. — Interrompeu. — Eu prometo que vou te ajudar a encontrar ele.

Celina calou-se, não por conta das palavras de Colth, mas pelos pensamentos conflitantes que ecoavam em sua cabeça. Pensativa ela se manteve.

Colth se virou e foi na frente guiando-a para fora do porão. Subiram as escadas e atravessaram a cozinha calados. Ele com um sorriso no rosto e a garota mais incompreensível do que nunca. Adentraram ao corredor principal da mansão no mesmo estado. O rapaz se virou inquieto:

— O que é que você queria me falar mesmo?

— Ah, não é nada não. — respondeu ela ainda pensativa desviando o olhar.

— Está tudo bem, Celina? Você não parece estar... — Não conseguiu terminar a frase, foi surpreendido.

Alguém o agarrara pelas costas de forma a imobiliza-lo. Colth se debateu, mas não conseguiu se soltar. Seu braço foi dobrado ao seu próprio ombro pela pessoa desconhecida de modo a não permitir reação.

— Colth...

Preocupou-se Celina, mas foi prontamente barrada pelas palavras do estranho que dominava o seu parceiro:

— Não, não. Fica paradinha aí — disse o homem bem vestido com uma seringa cheia de um líquido bem conhecido por Celina na mão. — É bom nenhum de vocês dois se mexerem, ou então... — mostrou a agulha à milímetros do pescoço de Colth ameaçando-o.

Celina obedeceu arregalando os olhos ao reconhecer o dono da voz e o seu rosto perverso.

— Olha só, quem diria que a guardiã de Tera já estaria livre — pronunciou um terceiro homem adentrando ao corredor com tom provocador — Talvez, eu o tenha subestimado, Colth.

— Então isso é coisa sua, Hueh? — perguntou o rapaz dominado pelo desconhecido às suas costas.

— Coisa minha? Não, não. Eu não tenho nada a ver com isso — retrucou cínico Hueh. Em seguida, apontou para a garota no centro do corredor. — Tudo obra dela. Eu sou apenas um convidado aqui.

O deus se posicionou de modo a apenas se tornar um observador da situação.

Celina manteve-se estática, parecia desligada de seus próprios pensamentos, não conseguia acreditar no que estava diante dos seus olhos.

— Volte para o seu quarto imediatamente, Celina — ordenou o homem com a seringa no pescoço de Colth.

— O q...

— Eu falei que se saísse de lá, as pessoas se machucariam, não falei? Agora, seja boazinha e volte para sua cela, minha filha.

— Sim, senhor Buregar — a garota baixou levemente a cabeça e fez o movimentou para retornar um passo.

— Não, Celina! — berrou Colth interrompendo-a — Isso é apenas uma memória! Não é real!

— Parece bem real para mim — comentou Hueh com um sorriso no rosto.

— Não, Celina. — retrucou Colth — Não deixe as suas memórias ruins te guiarem!

A guardiã voltou a ficar imóvel.

— Se não voltar agora, eu acabo com ele! — ameaçou Buregar.

Celina era bombardeada por dizeres além das vozes audíveis. Seus pensamentos transbordavam em complexidade.

— Quer salvar o seu amigo, mas não quer abrir mão da sua liberdade? — perguntou Hueh em seu robe encardido avançando um passo em direção a garota — Só precisa me aceitar, minha bela guardiã de Tera.

Celina perdeu de vista o seu objetivo com os olhos observando o vazio:

— Eu só preciso te aceitar...

— Não! — Colth tentava fazer a garota manter a sua atenção nele, longe das palavras recheadas de fascinação do deus de Anima. — Celina, você precisa sair daqui! Precisa fugir!

A garota se lembrou daquelas mesmas palavras uma vez dita por alguém que ela jamais esqueceria. O chão estremeceu.

— É só me aceitar... — Hueh deu mais um passo na direção dela com seu dom de palavras seduzentes.

— Celina, não! — Colth tentou se soltar, mas lembrou-se da sua situação ao ter sua pele rasgada pela agulha, teve de se comportar.

— Eu só preciso aceitar... — sussurrou a garota.

O chão tremeu, mais forte e constante. Seja lá qual era a origem, parecia se aproximar veloz.

— Isso, é só me aceitar — Hueh esticou a mão em direção à guardiã, tão perto que ela poderia toca-lo.

— Não! Celina, fuja daqui! — gritou uma última vez Colth.

A garota levantou o seu olhar. Com pouca expressão, mas o suficiente para mostrar a sua determinação em meio aos tremores, ela proferiu:

— Fugir... Eu não vou fugir.

Hueh sorriu com o canto de boca.

— Mas também não vou aceitar esse destino. Eu vou fazer o meu próprio destino.

A ousadia nas palavras dela e em seu tom firme fez o deus de Anima desfazer o seu sorriso presunçoso.

Repentinamente, a parede exterior do corredor foi rompida violentamente. Os destroços voaram para todos os lados e a origem do tremor foi revelada.

O lobo branco, aquele que Colth tanto temeu, arrebentou os tijolos maciços da parede do corredor como se não fossem nada, atravessou brutalmente o cômodo surpreendendo a todos, inclusive Celina. Sua corrida veloz e selvagem encontrou apenas uma pessoa em seu caminho, o deus de Anima que não conseguiu sequer ver o que o acertara.

A criatura abocanhou o corpo de Hueh quase que por completo, suas presas se fixaram a carne do deus e apenas as pernas dele ficaram de fora do interior da mandíbula raivosa do lobo. O sangue escorria junto a saliva espessa da fera que manteve a sua corrida atravessando a outra parede do corredor e se perdendo de vista aos fundos da mansão.

O silêncio voltou a ser protagonista.

— Puta merda... — sussurrou Colth impressionado com a violência em meio a nuvem de poeira e sangue deixada pela criatura.

Celina não se abalou, olhou para o outro lado do corredor em ruínas e fixou-se nos olhos do nobre Buregar que ainda mantinha Colth sobre o seu domínio.

— Não se aproxime garota... — disse o homem ao ver os primeiros passos da guardiã em sua direção.

— Você não me controla mais — ela retrucou determinada com seus passos inevitáveis.

Buregar engoliu seco, deu um passo para trás hesitante, mas logo se ajustou e se preparou para estacar a seringa no pescoço de Colth rendido:

— Se não vai me obedecer, então...

— Uma flor — anunciou ela — O que você segura, é apenas uma flor de orquídea verde.

O homem olhou para a sua mão e, ao ver o ramo de flor entre os dedos, se surpreendeu:

— Que merda é essa?

Sua ameaça era nula.

Colth aproveitou-se da brecha para se destacar do homem. Buregar ainda estava confuso com a flor em suas mãos, quando retornou o seu olhar para a garota destemida, viu o soco dela se aproximar rápido. Sentiu o nariz deslocar e o sangue extravasar com a potência de um pequeno punho acertando-o.

Colth se surpreendeu e Celina manteve-se determinada frente ao asqueroso.

Um belo soco de direita que fez os dedos macios dela arderem, sentiu a dor compor o seu corpo, mas não foi nada próximo a dor sentida pelo burguês e seu nariz quebrado.

O homem deu passos para trás e ajoelhou colocando suas mãos sobre o rosto escorrendo o sangue quente.

— Você não é a Celina que eu conheço — reclamou o homem com os olhos assustado para a garota que ainda avançava em sua direção.

— Não — respondeu determinada. — Isso é porquê você não me conhece. Seu porco imundo, desapareça!

— Esper...

A existência de Buregar naquela realidade simplesmente evaporou junto com suas reclamações e seu pavor.

Colth respirou fundo aliviado observando a garota que um dia já foi completamente alheia aos outros, ao mundo, e até a seus próprios sentimentos e pensamentos.

Celina se virou e, ao ver o rapaz seguro, sorriu forçadamente em exagero. Um sorriso que aparentava ser completamente falso e desconfortável para ela própria.

— Rsss — Colth não segurou o riso. — Você ainda precisa melhorar isso.

— “Isso”? — ela questionou-se. — Fala do meu soco? É a primeira vez que soco alguém assim e...

— Não é isso, não. — Ele respondeu recebendo o olhar puro e ingênuo dela. Segurou mais uma vez o riso. — Sendo sincero, o seu soco tá perfeito. Eu estava falando do... esquece do que eu estava falando, continue assim, tá bom?

— Continuar assim?

— É, vamos sair daqui antes que aquele deus arrogante volte.

— Espera, você disse para eu continuar assim. Assim como?

— Eu falei para irmos logo, tá bom? — Disfarçou. Terminou sua fala desajeitada abruptamente e começou a caminhar em direção ao exterior da mansão.

— Não. Você disse “continuar assim”. — Celina seguiu os passos do rapaz intrigada pelos seus dizeres. — Me diz, do que você estava falando.

— Não é nada. — Manteve seus passos ao deixar a mansão.

— Olha, eu não vou poder continuar, se eu não saber com o que eu tenho que continuar.

O rapaz se virou minimamente irritado pela repetição do assunto, mas se desfez desse sentimento ao encontrar os olhos sinceros da garota iluminados pela luz do amanhecer entre as folhas serenas das árvores.

— O quê? O que foi? — desconfiou ela. Voltou a pergunta com curiosidade: — Não vai me dizer?

— Só continue sendo quem você é, Celina — respondeu ele desviando os olhos para a mata do bosque.

Sentiu o seu coração parar de bater, ou talvez estivesse tão acelerado que mal sentia ele. Parecia envolto em uma névoa de calor, mesmo que o vento frio da manhã atingisse ambos em conjunto às folhas verdejantes sem rumo.

— É claro que eu vou continuar sendo eu, não tem como eu virar outra pessoa, isso nem faz sentido — ela respondeu irritada. — Se não quer me falar, não precisa tentar me enrolar.

— Mas eu... Ah, esquece.

Após o aborrecimento passar, Colth se virou para continuar, deu um leve sorriso grato escondido e mantivera os olhos cheios daquele sentimento inexplicável. Celina avançou suas palavras para além daquele assunto, ainda emburrada:

— Aliás, de onde é que você tirou aquele lobo gigante?

— Eu não tenho nada a ver com aquela coisa. — Voltaram a caminhar pelo bosque ao fundo da mansão — Aquele animal não é nada menos do que a personificação de sua consciência. Foi você quem o trouxe até aqui.

— Minha consciência? — ela ficou pensativa.

— É melhor não pensar muito nisso, mente e consciência são coisas nada lógica.

— Entendi, acho que tem razão. E o Hueh? Acha mesmo que ele pode voltar.

— Talvez não mais na sua mente, mas com certeza ele não vai desistir tão fácil — respondeu Colth ombro a ombro com a garota. — Se você quiser falar sobre aquele homem estranho da seringa...

— Não. — Direta. — Eu prefiro não falar sobre isso. Nesse momento, eu só quero sair daqui.

— Foi o que imaginei. — O rapaz chacoalhou a cabeça removendo qualquer resquício de seus pensamentos anteriores e encerrando o assunto, em seguida, parou frente ao rio corrente que conhecia tão bem.

— E então, em qual direção fica a saída? — perguntou Celina ao lado dele.

— Nós já chegamos. — Colth estendeu a mão na direção das águas. — Que tal um mergulho? — perguntou com um sorriso bem humorado.

— Isso é alguma piada?

— Essa é a entrada, e saída daqui. Não me culpe, essa realidade é basicamente a sua mente, esqueceu? — Colth coçou a cabeça em dúvida e em seguida a trouxe à tona: — Isso me deixa curioso, o que esse rio tem de tão especial para você?

A garota se surpreendeu ao ouvir a pergunta distinta. Não pensou duas vezes e simplesmente ignorou a indagação escondendo o rosto:

— Tá bom. — Celina avançou um passo afundando as suas sapatilhas na água morna corrente.

— Está mesmo com pressa, em? Me espera aí... — O rapaz apressou-se.

Ambos marcharam lado a lado com a dificuldade de movimentação de suas pernas advinda das novas águas que finalmente corriam por ali, caminharam até o centro do corpo do rio, caminharam para além daquela realidade.



Comentários