Volume 1
Capítulo 61: Mentira Existencial
A multidão lá fora nas ruas escuras da noite fria do inverno berravam pela justiça com suas tochas e seu ódio insaciável. No segundo andar do interior da velha casa de madeira dos arredores da cidade de Caiwa em Rasuey, uma garota chorava frente ao leito de morte de sua própria mãe.
— Por favor, não me deixa — pediu em prantos a garotinha de cabelos curto se apoiando aos braços da mãe que já não possuía mais forças para devolver a caricia.
— Celina, minha filha, você precisa sair daqui. Precisa fugir — suplicou a mulher deitada sobre a cama se esforçando para manter seus olhos abertos e suas últimas palavras audíveis.
— Saía daí aberração! — Os gritos da multidão do lado de fora eram mais efusivos.
— Vamos entrar!!!
— Vamos queima-la!!!
Ouvindo os berros furiosos e as batidas na porta tentando derruba-la, a garota derramou mais lagrimas sobre o corpo da mãe exausta.
— Não... por quê? Não me deixa aqui... — Celina sussurrou sua tristeza sobre o que já se tornara um mero cadáver.
— Não chore, criança — disse a voz feminina em acalento do outro lado do quarto.
— Quem é você? — perguntou a garotinha secando as lágrimas em curiosidade sobre a mulher de belo vestido esverdeado que surgiu do nada.
— Sou apenas uma fugitiva, assim como você, criança.
— Aquelas pessoas também querem te machucar?
— Esse mundo está cheio de pessoas assim, infelizmente — disse a mulher de cabelos castanhos pensativa ao se aproximar da cama: — Foram eles que fizeram isso a sua mãe?
Ela observou o vermelho vivido que se destacava nas roupas brancas na região da barriga da mulher deitada sobre a cama. Os gritos irados continuavam incessantes do lado de fora.
— Sim. Eles...
— Gostaria de ter sua mãe de volta? Ela poderia escapar da morte.
— Uma segunda chance para ela?
— Eu diria retornar à primeira chance dela, mas sim, se quiser chamar desse modo.
— Está falando sério? — ela se animou — Seria como Flagdan?
— Quem seria esse?
— Um personagem de uma história que mamãe leu para mim. Ele retorna dos mortos.
— Tá, acho que pode ser algo como esse personagem. Mas você terá de fazer uma...
— Eu aceito! — respondeu Celina sem hesitar.
— Eu ainda não disse...
— Eu aceito, não importa o que seja — Ela se levantou frente a mulher. — Farei o que for me pedido.
— Você tem certeza? — alertou a outra. — Eu poderei pedir algo que você pode se arrepender de fazer.
— Não importa, só traz a minha mãe de volta — a garota agarrou as mãos da adulta.
A mulher com seus belos olhos avelã se surpreendeu com aquela resposta, mas não regrediu.
— Tudo bem, então. Temos um pacto — ela estalou os dedos. Nada pareceu ter acontecido.
Em meios aos contínuos gritos raivosos do exterior da casa, um suspiro vindo da cama foi escutado.
A garotinha arregalou os olhos e se virou para a mãe. Sorriu ao observa-la respirando:
— Mamãe! — Abraçou-a calorosamente na cama — Você está bem!
— Eu estou, minha querida.
— Obrigado moça... — Celina tentou agradecer, mas não encontrou a bela mulher do vestido esverdeado.
Pensou ter sido algo de sua cabeça, mesmo que fosse tão real. Em meio a esses pensamentos um barulho no térreo ganhou força. A porta da entrada da casa havia sido colocada a baixo.
— Vamos acabar com ela!!! — Os gritos se aproximavam subindo as escadas.
— Eles ainda estão vindo... — sussurrou a garotinha.
— Celina, fuja! — a mãe berrou em desespero se levantando da cama.
A porta do quarto foi escancarada por um único chute do outro lado e expôs a fragilidade inocente da Garota. A multidão furiosa, com tochas, machados, porretes e armas, colocou os olhos em seu alvo:
— A aberração, peguem ela!!! — gritou o líder do bando de camponeses.
A mulher perseguida colocou a sua filha para trás de seu corpo e a protegeu bravamente:
— Celina, fuja... — A mãe não terminou as suas palavras.
Uma machadinha foi arremessada e atravessou o quarto cortando o ar. Acertou em cheio a testa da mulher que só pretendia proteger a sua cria.
Antes mesmo do corpo sem vida se espatifar no chão manchado pelo seu próprio sangue, foi acertado por mais violentos golpes das diversas mãos cruéis e armas hediondas.
A garotinha congelou no canto do quarto observando a retaliação sobre a própria mãe e o esvair da segunda chance. Ajoelhou sem esperança com os olhos inexpressivos.
— Não deixem sobrar nada!!! A aberração pode voltar, derramem a luz sobre ela!
Foram segundos que pareciam horas, apenas o vermelho se destacava naquela selvageria presenciado pela garotinha sem ação. A violência cessou quando não havia mais o que a ira consumir. Uma mulher da multidão notou a menina estática no canto do quarto:
— E a garota, o que fazemos?!
— É só mais uma aberração! Derramem a luz sobre ela!!! — gritou um dos homens lavado pelo sangue quente.
Ele se aproximou da garota e, com o machado afiado em mãos, se preparou para um corte fatal.
— Esperem! — gritou uma outra presença adentrando ao quarto. — Deixem a garota comigo. Ela ainda pode ser recuperada.
— Mas senhor Buregar, essa é outra aberração e...
— Não discuta comigo — se impôs o lorde de roupas chiques. — Levem a garota para a minha mansão. Ela pode dar uma boa serva.
Os subordinados camponeses baixaram a cabeça e as armas. Um deles agarrou os braços de Celina e a arrastou para fora do quarto:
— Vamos, aberração — provocou odioso. A garota não respondeu, manteve-se com os olhos sem cor.
A multidão saiu da casa com o sentimento de dever cumprido e a garota foi levada para a mansão do alto de Rasuey as margens do belo riacho que banhava as montanhas da cidade.
O lorde, ainda no quarto observava a carne e o sangue derramado por todo o quarto:
— Eu lhe disse que não iria longe sem mim, minha predileta.
Um segundo homem entrou no quarto zoneado e se pôs a disposição de seu chefe. Buregar não aliviou em suas palavras:
— Idiota, como pôde deixa-la fugir assim?
O criado engoliu seco e respondeu baixando a cabeça:
— Eu não deixei, meu senhor. Tenho certeza que a lâmina que atravessou a sua barriga era o bastante para matá-la.
— Você é mesmo um boçal, não viu que ela estava bem viva antes dos camponeses a pegarem?
— Ta-talvez, ela seja mesmo uma aberração — disse temendo pela própria vida.
— Uma aberração? Como a lenda? Mas só nos usamos isso para fazer os camponeses a odiarem.
— Sim, e foi brilhante. Mas e se...
— Não diga mais nada.
— Sim, senhor. Me desculpe te encher com essas baboseiras, com a sua licença — o serviçal se despedia para deixar o quarto.
Buregar coçou a barba pensativo observando o chão vermelho.
— Ah, mais uma coisa — solicitou ao criado. — Prendam a garota no porão. Eu quero entender algo.
— Sim, senhor. Como quiser.
O servo deixou o quarto definitivamente e o lorde apreciou o nascer do Sol solitário por aquela janela manchada de sangue.
— Que coisa horrível... — sussurrou Colth após observar tudo aquilo sem ser notado ou fazer parte.
O vento, vindo do nada, ganhou forma trazendo a escuridão. O guardião de Anima sabia o que estava por vir.
— Não, não, não — reclamou ele observando o sonho, ou talvez a lembrança, se esvair. Não pôde impedir.
Tudo escureceu e o sonho se apagou, mais uma vez Colth retornara ao início.
***
Colth sentiu a água fria corrente até a altura de sua cintura, tentou enxergar além da escuridão noturna e só conseguiu perceber as estrelas no céu solitário entre as copas das árvores.
— Ahh!!! De novo isso!!! — esbravejou ele em meio ao rio de águas frias.
A beira da insanidade. Continuou a gritar para as estrelas descontando sua raiva com socos sobre a superfície das águas — Maldito, Hueh! É você que está fazendo isso, não é?! Venha!!! Me enfrente! Me enfrente, covarde!
Caminhou para fora do corpo d’água aos gritos irados e deixou seu corpo cair às margens do rio em exaustão. Deitou-se fadigado observando o céu sobre as folhas das árvores ao vento.
— Por favor, me enfrente — suplicou em sussurros sem ao menos saber para quem.
Já havia perdido a conta de quantas vezes retornara ao início daquela noite. Mesmo quando presenciou os fragmentos de memória de Celina, Colth acabou por retornar àquele momento contra a sua vontade.
Tentou encontrar a guardiã de Tera no porão da mansão diversas vezes mais, mas o resultado era sempre o mesmo, o retorno imediato para o início da noite. Tentou mais algumas vezes a cidade, mas também não achou nada além das ruas completamente vazias e o lobo branco rondando o local. Colth já se encontrava exausto, esgotado. Não sabia mais o que fazer.
Fechou os olhos clamando pelo adormecer, empenhou-se por minutos, talvez horas, mas assim como das outras vezes que já havia tentado, não conseguiu dormir. Não era possível ficar desacordado naquela realidade.
— Foi por isso que você passou, Agnes? Não conseguir dormir? Isso é cruel demais.
Pensou desesperançoso e prosseguiu solitário:
— Ah, o que eu não daria por outro abraço quentinho da Garta mais uma vez... — disse ao vento e em seguida calou-se pensativo. Retornou a falar se levantando com uma iniciativa repentina: — O que eu estou fazendo? Eu tenho a magia de Anima, é só eu desejar sair daqui e vou despertar na verdadeira realidade, no meu mundo.
Gesticulou para todos os lados como se as árvores do bosque ao seu redor estivessem prestando atenção às suas falas.
— Hahaha — gargalhou eufórico. — Por que eu não pensei nisso antes? O que eu estou fazendo aqui ainda? Vou poder reencontrar a Garta e finalmente dizer o que eu penso, é isso aí. Vou reencontrar o Goro e agradece-lo, mesmo que ele seja um convencido babaca. E reencontrar a Celina e... — parou repentinamente ao perceber o óbvio. Sua animação desapareceu e deu lugar ao pesar. — Eu não posso. Se fizer isso, Celina será... — engoliu seco. — Eu não posso.
Voltou a despencar o seu corpo ao ser acertado pelo desalento. Sentou-se ao chão às margens do rio que começava a ser iluminado pelo Sol do belo amanhecer.
— Droga — puniu-se solitário —, eu queria poder pelo menos conversar com você, Celina. Agora eu entendo... Queria poder agradecer por tudo que fez por mim, você até salvou a minha vida no ataque da região Norte, não é? Apesar de até agora não saber que tipo de truque você usou naquele dia e...
Colth finalmente pensou sobre outra perspectiva. Lembrou-se dos momentos de sua morte após levar um tiro do Gerente. Não havia como esquecer, ele realmente havia morrido, tinha certeza disso, mesmo que a própria Celina negasse com suas mentiras mal executadas.
— Filha da mãe... — sussurrou zangado com um sorriso satisfeito no rosto.
Seus sentimentos conflitantes eram devidos a finalmente chegar a uma provável resposta para aquela realidade cíclica. Encorajou-se, tomou a iniciativa para tentar mais uma vez.
— Então é Isso... Como eu fui idiota. — levantou-se sacudindo a poeira de suas roupas. — Certo, então. Se acha mais esperta do que eu, não é, Celina? — Sorriu frente a mansão com a determinação recuperada.