Volume 1
Capítulo 60: O Labirinto da Incerteza
Colth sentiu a água fria corrente até a altura de sua cintura, tentou enxergar além da escuridão noturna e só conseguiu perceber as estrelas no céu solitário entre as copas das árvores.
— Onde eu estou? — se perguntou olhando para todas as direções e percebendo que se encontrava em meio a um pequeno rio com a natureza lhe rodeando.
Sapos coaxavam, a garota chorava baixinho, e grilos cantavam em um ambiente ermo e sereno que o deixava estranhamente desconfortável.
Parou de procurar qualquer coisa quando avistou uma grande construção entre as árvores da margem do riacho. Se esforçou para caminhar para fora da água e seguir em direção ao que parecia uma residência iluminada pelas lanternas internas.
Seu incômodo aumentou ao se aproximar da construção, pelos fundos, notou que não era uma simples casa, a residência era imensa:
— Uma mansão? — Colth se perguntou estranhando aquilo.
A grama macia, molhada pelo sereno da noite fria, refletia o luar solitário sobre as montanhas não tão distantes.
A porta dos fundos do casarão estava escancarada. A luz que vinha de dentro era convidativa ao mesmo tempo que, com o aproximar de Colth, o desconforto era crescente.
O rapaz não pensou duas vezes antes de adentrar ao lugar, sabia que aquilo não passava de uma realidade fictícia, talvez um sonho, uma lembrança ou algo parecido, não tinha importância, a única certeza era de que nada o impediria de encontrar Celina. Quando finalmente colocou os pés para dentro da casa, notou aquele ruído que passara desapercebido até o momento.
O lamento em suspiros desesperançosos leves e femininos atingiam os ouvidos de Colth sem origem aparente. O rapaz só notou o barulho delicado devido ao silêncio de todo o resto. Um silêncio que incomodava os ouvidos, mas que era acompanhado por essa canção chorosa. Além disso, a cada passo que ele desprendia se aprofundando no interior da mansão, aumentava a intensidade do ruído.
Parecia estar chegando cada vez mais perto da origem do lamento, tomou isso como a sua bússola para se guiar pelos corredores do casarão que eram impecáveis e luxuosos. Grandes quadros com pinturas belíssimas, mobília em madeira nobre, e adornos em ouro nas paredes evidenciavam que alguém importante vivia ali, mas isso também não importava. Colth apenas se concentrava no som que lhe trazia o desconforto e a familiaridade ao mesmo tempo.
Quando o rapaz atravessou uma das portas do corredor principal e deixou o seu rastro da água do rio que escorria das suas calças recém encharcadas, se deu conta de que estava em uma grande cozinha. O ruído era absoluto e a direção era certa, os fundos do cômodo onde haviam barris e caixas em despensa parecia lhe chamar. Ainda mais aos fundos, em meio aos suprimentos, uma porta chamava atenção.
Quando se deu conta, Colth já havia atravessado a porta. Encontrou um local a meia luz que lhe provocava a sensação de desconforto junto aos ruídos de lamento incessantes. Aos seus pés, uma escada estreita de pedra o levaria mais fundo em direção àqueles sentimentos.
Desceu os degraus ecoando o barulho de seus passos por toda a câmara de pedra fria. Quando deixou a curta escada para trás, percebeu que aquele lugar se tratava de um porão empoeirado e cheio de teia aranhas envelhecidas, algo normal que não teria lhe provocado a menor estranheza, mas o seu rosto se mostrou surpreso. O causador da sua expressão admirada se resumia as grades que dividiam o cômodo em dois e efetivamente o transformava em uma cela.
— Mas o que... — sussurrou ele parando frente as grades trancadas por uma velha fechadura.
Do outro lado das barras de metal, um quarto repleto de livros era observado em conjunto a uma pequena cama. Era ocupada por apenas uma pessoa, uma garota reclusa ao canto lamentadora que, mesmo de costas para as grades, foi imediatamente reconhecida por Colth:
— Celina?! — perguntou espantado.
Ela estava prestes a se virar, prestes a mostrar o seu rosto para o chamado, mas antes disso, antes que o rapaz visse os olhos dela, tudo escureceu.
Colth sentiu a água fria corrente até a altura de sua cintura, tentou enxergar além da escuridão noturna e só conseguiu perceber as estrelas no céu solitário entre as copas das árvores.
— Mas que merda é essa? — se perguntou olhando para todas as direções e percebendo que se encontrava novamente em meio ao pequeno rio com a natureza lhe rodeando — Eu voltei?
Caminhou para fora das águas e tomou o caminho que achava já ter seguido.
Avistou a porta escancarada dos fundos da mansão do mesmo jeito de antes e não conseguiu segurar os seus pensamentos confusos:
— O que está acontecendo?
Adentrou pela porta e logo percebeu o sussurro choroso aumentar. A sensação de já ter vivenciado aquele desconforto não era mera coincidência. Seguiu pelos corredores luxuosos e não notou nada de diferente de antes, passou pela cozinha deixando o seu rastro molhado proveniente das roupas molhadas e desceu as escadas estreitas de pedra para novamente se colocar no porão frio.
Lá estava a mesma visão de antes. A garota no canto solitário da cela e os livros bagunçados pelas estantes do quarto aprisionador.
— Celina, você está bem? — Colth chamou a atenção dela sem perder tempo.
A garota ouviu e parou o seu lamentar por um segundo, em seguida se viraria para mostrar o seu rosto, mas antes disso, tudo escureceu.
Colth sentiu a água fria corrente até a altura de sua cintura, tentou enxergar além da escuridão noturna e:
— Ahh!!! Que merda é essa?! — gritou para as estrelas em meio ao riacho.
Não perdeu tempo, deixou as águas para trás e se aproximou da mansão. Adentrou, atravessou os corredores e a cozinha em um caminhar apressado, sabia exatamente para onde deveria ir.
Desceu a escada de pedra e parou frente as grades do porão. Do outro lado, ele tinha certeza de que aquela garota solitária era a Celina. Tentou pensar por mais de um segundo o que dizer, mas chegou a mesma conclusão:
— Celina — chamou ele —, tem algo muito estranho acontecendo. Preciso da sua ajuda e...
A garota se virou e, antes de mostrar o seu rosto, tudo escureceu.
— Tsc — queixou-se Colth sentindo a água fria corrente na altura de sua cintura.
Ele repetiu aquilo várias vezes, talvez uma dezena de tentativas com o mesmo desfecho. Buscou por outras alternativas, vistoriar a mansão e seus arredores, por exemplo, mas não encontrou nada além de cômodos vazios submersos em luxo e ostentação.
— Celina! — desesperou-se ele adentrando ao porão apressado. — Por favor, me escuta. Eu preciso que você...
Antes que a garota viesse a mostrar o seu rosto, tudo escureceu mais uma vez.
— Ahhh!!! — gritou Colth com todas as suas forças. Após tantas tentativas frustradas ele já não tinha dúvidas: — Eu estou voltando toda vez para o começo, recomeçando e recomeçando. Droga, que negócio insuportável.
Caminhou pelos corredores da mansão novamente, dessa vez mais atento do que em qualquer outra tentativa:
— O tapete continua seco, a porta do porão continua fechado, e a noite começa do início toda vez que encontro com a Celina. Mas se eu não encontro com ela, nada acontece, não há nada o que acontecer nesse mundo, não tem ninguém nessa mansão além dela... Ahhh, agora eu tô ficando maluco e falando sozinho! — Jogou-se na poltrona frente a lareira do salão principal da mansão.
Colth fechou os olhos, mas seus pensamentos e preocupações não lhe deixavam descansar. Levantou rápido com uma ideia repentina brotando em sua cabeça:
— Já sei! Se não tem ninguém na mansão... — Olhou para a porta dupla da entrada.
Deixou a mansão com a esperança de achar alguma solução para aquele ciclo sem fim que havia se enfiado.
Ao se colocar no meio da rua frente ao casarão imponente, percebeu se tratar de uma pequena cidade aos pés de uma cordilheira de montanhas rochosas acidentadas que lhe enchiam os olhos por suas curvas agudas.
— Esse lugar é... Claro que é, afinal estou na mente da Celina — Respirou fundo lembrando-se da sua responsabilidade no ponto mais alto da cidade lhe proporcionando a vista de todo o lugar. — Rasuey.
Caminhou descendo a ladeira que era aquela rua estreita. Analisava as construções de pedra polida e os quarteirões irregulares que formavam a pequena, mas bela, Rasuey.
— Parece só um pouco maior que Toesane, mas é infinitamente mais aconchegante e bonita — sussurrou os seus pensamentos comparativos com a sua terra natal.
Continuou por aquela rua e não encontrou absolutamente nenhum ser vivo. Atravessou uma pequena ponte sobre um riacho de águas cristalinas ao final da descida da ladeira e se viu em meio a mais montanhas que espremiam as poucas construções umas às outras e afunilavam o vento forte vindo das cordilheiras.
— Nenhum sinal de vida. Assim como na mente da Lashir, o lugar que a Celina tem como sua casa é uma cidade fantasma. Será que a mente de todas as pessoas é tão vazia e solitária assim? Dorga! Estou falando sozinho de novo.
Colth já estava prestes a desistir de sua procura, acessou várias vielas e entrou em algumas casas para constatar o pleno sentimento de solidão acompanhado pelo nascer do Sol. Quando saiu de uma das casas vasculhada nos limites sudoeste da cidade ouviu um ruído completamente inesperado.
O rapaz ficou paralisado ao escutar aquele som. No meio da viela que era definida pelas montanhas rochosas paralelas a sua trilha e margeada por simpáticas casas do outro lado, Colth sentiu a presença de um predador às suas costas.
O rosnar de uma criatura selvagem é notável em qualquer realidade por qualquer pessoa. Colth se virou devagar para colocar os olhos na coisa que evocava um grunhir rancoroso. Engoliu seco ao ficar diante de um imenso lobo branco com os dentes afiados à mostra.
— Me diz que você é bonzinho... — sussurrou implorando.
O lobo rugiu com os olhos negros mostrando-se indomáveis. Sua saliva escorria por seus caninos enormes que atravessariam qualquer armadura de placa e suas garras riscavam a pedra gasta da rua, mas nada disso surpreendia mais do que o próprio tamanho da criatura. Colth nem precisava inclinar a cabeça para colocar seus olhos no mesmo nível ao da criatura. Uma abocanhada ou um golpe com aquelas patas poderosas já seria mais do que o suficiente para tirar a vida de uma pessoa.
O rapaz deu passos devagar para trás tentando pacificamente recuar, mas o lobo branco caminhou os mesmos passos para manter a distância, de poucos metros, a mesma. Se continuasse naquele ritmo, ele tinha certeza de que seria devorado por aquela coisa aparentemente faminta.
Colth olhou para a esquerda procurando refúgio e só viu um paredão de rochas frias naturais, para a direita, as casas amontoadas umas às outras se diziam a única saída.
O lobo avançou mais do que um passo, Colth rapidamente correu em direção a uma das construções. O animal abriu sua boca e deixou suas presas afiadas amostra enquanto acelerando seu ataque em direção ao humano indefeso que também avançava os passos ligeiros. Estava prestes a saciar a sua fome, abocanhou a sua caça com a certeza de crava-la em seus dentes.
Colth saltou sentindo o calor vindo daquela enorme boca soprar sobre o seu corpo. Pulou em direção a janela de uma das residências com a violência necessária para romper o vidro e cair para dentro da construção. A mordida do animal em direção à rua encontrou apenas o ar gélido que reverberou o seu rosnar pelas cadeias de montanhas.
O guardião sentiu o aterrissar de seu pulo em cada uma de suas costelas. A dor provocada pelo tombo de mal jeito era um pequeno preço pela própria vida poupada.
— Por que eu fui reclamar de que a cidade estava vazia? — murmurou se levantando em meio a uma singela sala de estar.
A porta da entrada foi arrebentada repentinamente e a madeira que a compunha foi arremessada contra a parede no fundo da sala. Colth suou frio entendendo o poderio daquela coisa que o perseguia enquanto a própria adentrava a residência com os olhos firme em sua presa.
Colth não hesitou ao ver os olhos do lobo, correu na outra direção sabendo que sua vida dependia disso, se deparou com uma estreita escada de madeira e, quase que por instinto, subiu os degraus pulando a maioria deles.
Quando no alto da escada, viu a criatura desajeitada bater nas paredes e derrubar os móveis para alcançar a escada ainda no térreo. Colth novamente não perdeu tempo, no corredor do segundo piso se deparou com um armário grande de madeira velha e de imediato empurrou-o com toda a sua força em direção a escadaria.
A madeira do armário rangeu sobre o piso do corredor até estar diante da escada onde o animal subia com todo o furor e selvageria. O rapaz esforçou-se ao máximo para um último empurrão na peça de mobília.
O armário pesado rolou escada a baixo e levou consigo o lobo branco para de volta ao térreo se chocando violentamente com a criatura.
Colth não esperou pelo resultado, avançou pelo corredor acelerando os passos, atravessou a única porta ali. Um quarto simples com uma escrivaninha acompanhada de uma cadeira sob a luz da manhã trazida por uma janela ao fundo do cômodo.
O guardião trancou a passagem e colocou os móveis frente a porta para se certificar de que nada mais entrasse ao quarto. Respirou retomando o fôlego após a ação.
— Eu havia esquecido do que Koza disse. O subconsciente de uma pessoa é capaz de criar uma sentinela que protege a mente de seu dono. Mas sério? Um lobo branco gigante?! Não podia ser algo mais simples, Celina? Se isso me devorar aqui, meu cérebro vira pudim na verdadeira realidade.
A porta do quarto estremeceu em conjunto com um forte rugido do outro lado.
— Merda... — Colth pressionou os móveis contra a porta tentando evitar a sua abertura.
A criatura no corredor forçava a entrada tentando uma passagem com ímpeto. Arranhou a madeira com suas garras e rosnou selvagem sem conseguir passar, a sua caça ainda resistia.
— Essa coisa não desiste?! — reclamou Colth suportando.
Sabia que não aguentaria por muito mais tempo e, pensando em uma alternativa de fuga, só conseguiu cogitar a janela. Mirou ela do outro lado do quarto e percebeu que havia outra construção pouco além da passagem. Era outra casa, as janelas se alinhavam perfeitamente e a distância parecia ser alcançável com apenas um salto.
Se encheu de esperança, mesmo assim, era saltar para o desconhecido, não sabia qual seria a altura de sua queda se o seu pulo não conseguisse chegar a outra janela.
A criatura forçou ainda mais a porta, Colth se decidiu. Ficar ali era mais arriscado do qualquer outro risco de quebrar uma perna por causa de uma queda.
Respirou fundo e largou a porta em corrida para a janela aberta do quarto. Saltou com os braços frente ao rosto e sentiu o frio da manhã acertar o seu corpo. Atravessou com velocidade o vão entre as construções sem notar o chão pedregoso metros abaixo.
Arrebentou a outra janela que se encontrava fechada e adentrou ao prédio da forma menos convencional possível. Preparou-se para a dor do pouso protegendo o rosto, mas ele não aconteceu, não colidiu com nada, ao invés disso, Colth estava de pé ao centro do simples quarto com uma única cama acompanhando-o.
Estranhou de imediato e, antes que pudesse entender melhor a situação, ouviu o bater da janela se fechando às suas costas.
Se virou com o pequeno susto devido o barulho e encontrou uma pequena garota se dando ao trabalho de trancar a janela. A garotinha se virou e atravessou o corpo do Colth sem notar a sua presença.
— Isso de novo... — reclamou ele percebendo que não poderia interagir com aquele ambiente, com aquela memória.
Ele observou a garota que caminhou até a cama no fundo do quarto e foi recebida por uma segunda pessoa que repousava no leito em mal estado:
— Minha filha, você precisa sair daqui — disse a mulher fraca em repouso. — Precisa fugir, Celina.
— Celina... — sussurrou Colth entregando a sua atenção.