Volume 1

Capítulo 55: Guardiã de Mutha

A garotinha corria desesperada pelo bosque, saltava sobre as raízes entrelaçadas ao chão florido enquanto deixava escapar lágrimas ao vento:

— Não. É mentira, só pode ser — tentou se convencer com palavras perdidas entre as árvores.

Perdeu a passada no desnível do terreno acidentado, tropeçou em pedras presas aos arbustos, com a velocidade e o desequilíbrio não pôde conter a queda iminente. Chocou-se com o solo revestido de folhas secas e ralou as palmas das mãos e os cotovelos.

Ficou deitada, sem forças para levantar.

Continuou o seu choro, suas lágrimas não eram motivadas pela dor dos arranhões da queda ou do corte profundo em sua perna aberto pela pedra tropeçada, mas sim pelo o que acabara de observar minutos antes.

— Isso não está acontecendo, não pode estar acontecendo — Fechou os olhos com força suplicando pelo calor de alguém que jamais retornaria a sentir. — Mamãe.

Depois de ver a morte ceifar a vida da figura que mais lhe importava, e de tantas outras que admirava, Agnes tentava conter a tristeza ardente em seu peito enquanto lutava ao máximo para manter-se viva.

— Garota, você não pode se esconder de mim! — Gritou uma voz poderosa feminina ao longe entre a vegetação.

A menina recolheu sua tristeza e suas dores, manteve-se deitada entre as raízes ao pé de uma grande árvore e colocou ambas as mãos sobre sua própria boca para tentar conter a respiração ofegante e seu mínimo ruído.

— Você não pode se esconder... — cantarolou a mulher imponente em seu vestido vermelho se aproximando em um caminhar leve. — Você quer que o mesmo que aconteceu com a sua família aconteça com você?

Agnes camuflada deitada entre as folhas mortas se esforçou para não chamar atenção, prendeu a respiração e ficou imóvel como nunca antes. Tarefa difícil quando não se consegue evitar de ver a imagem da própria mãe sendo soterrada por escombros pairando em seus pensamentos.

Se ao menos não tivesse corrido para longe de seu tio quando o viu perder o controle de suas próprias atitudes, talvez pudesse estar segura, mas agora isso não adiantava de nada, não importava mais, a sua perseguidora parecia estar determinada a acha-la.

A garota se perguntava o que havia feito para merecer aquilo, mas não chegava à resposta alguma e muito menos conseguia esclarecer o motivo daquela mulher estar atrás dela. Inclusive, parou de ouvir os chamados dela por um momento e se agarrou ao fio de esperança.

“Ela desistiu?” Se perguntou Agnes em seus pensamentos aflitos.

O silêncio havia tomado conta do bosque, nem os pássaros ou insetos eram escutados pelos ouvidos atentos da garota. Correr desesperada por minutos fugindo daquela pessoa sórdida talvez tivesse gerado resultado, talvez finalmente tivesse despistado a estranha mulher.

Agnes se moveu devagar, sem qualquer ruído, tirou as mãos do rosto e finalmente respirou fundo com a delicadeza permitida pela situação. O perigo realmente parecia ter passado e ela podia raciocinar novamente suas perdas.

Notou aquelas poucas flores do bosque com a sua cor preferida se destacando, rosa, assim como seu simpático macacão sujo de terra.

Lembrou-se de boas risadas que deu com sua mãe naquele mesmo bosque quando ela colocou uma das flores de cinco pétalas sobre o seu cabelo e a chamou de princesa. E era uma daquelas flores novamente, diante dos seus olhos lacrimejados, que lhe traziam as boas memórias de quando caminhava e brincava por aqueles arredores, mas nada daquilo voltaria, eram apenas memórias agora, e ela havia de reconhecer isso.

Se entristeceu e, assim que tentou seu próximo passo, o ar sobre o seu ombro direito pesou com o calor de um sussurro:

— Não pode se esconder — disse a mulher movendo os seus belos lábios á centímetros dos ouvidos de Agnes. — Eu te avisei.

A garota arregalou os olhos e se virou assustada, mas não teve tempo de reagir além disso. Lashir agarrou seu pescoço com apenas uma das mãos e a levantou com a facilidade pertencente a uma guardiã. A mulher de vermelho sorriu realizada após finalmente capturar a sua presa pequena que tanto procurou.

O corpo leve de Agnes ficou sem chão, ela debatia seus pés sem encontrar apoio. Tentava exprimir palavras clamando por misericórdia, mas não possuía fôlego entre os dedos da cruel que pressionavam seu pescoço sem piedade.

— Por f...

— Não adianta, seu deus não virá. Nenhum deus virá — proferiu a mulher com o ódio vermelho tomando conta de seus olhos.

A garota obviamente não entendeu o motivo das palavras e muito menos o motivo de sua morte que se aproximava, voltava a se perguntar a razão de tudo aquilo, mas era tarde demais. O seu fim era inevitável nos braços da guardiã de Rubrum.

— Você me deu muitos problemas, mas finalmente eu te encontrei, guardiã de Mutha — Lashir levantou a palma da sua mão desocupada e a colocou sobre a testa da garota rendida.

Uma luz tomou conta do bosque silenciando a vida em Toesane e anunciando o início de um novo ciclo entre os mundos.

                                               ***

A garota desenrolou a grande folha de papel sobre a mesa de madeira em meio a sala daquela casa sem proprietário e revelou um desenho sem padrões reconhecíveis.

Com uma pequena pedra de carvão pontiaguda esculpida por ela própria, riscou um “X” em meio a tantos outros no mapa do papel. Observou o desenho que vinha fazendo por tanto tempo e disse com um sorriso decepcionado no rosto:

— Podemos descartar toda a região leste da cidade — falou sozinha para o ambiente em completo silêncio, em seguida, baixou a cabeça desesperançosa.

Ela podia ouvir sua própria respiração e até o batimento de seu coração incessante e teimoso. Voltou a levantar a cabeça e observou a paisagem pela janela da sala de estar empoeirada da casa. Visualizava apenas um deserto vermelho sem fim, dunas e mais dunas de areia a se perder de vista.

— O que foi que você disse? — virou seu rosto e apontou os olhos para o boneco de pano delicadamente colocado sentado sobre a estante encostada à parede — Ah seu bobo, é claro que eu não vou desistir. Não agora, que estou prestes a completar esse mapa.

Agnes sorriu para o pedaço de trapo encardido enrolado por linhas e cordas que formavam uma pequena silhueta humana, os olhos eram desenhados em tinta preta no próprio tecido e o seu cabelo era um chumaço de palha preso por um arame amarrado, o boneco permaneceu imóvel, como deveria ser.

— Acha que a cidade é uma perda de tempo? Bom, é o nosso melhor palpite, Boo. Já fomos para as memórias das montanhas — a garota solitária apontou para a região do papel com dezenas de marcações em “X” —, fomos para a costa dessa mesma memória, para aquela lembrança estranha do mundo cinza, e até para o castelo na estrela. A cidade do deserto é a nossa melhor chance agora.

Ela parou de falar para ouvir o silêncio que o boneco fazia mais uma vez. Retornou sorrindo:

— Eu também sinto que estamos perto. Vamos achar uma saída mais cedo ou mais tarde, sei que vamos, Boo.

Agnes coletou a mochila que deixara debaixo da mesa e guardou a folha de papel nela após enrolar o mapa novamente. Vestiu as alças da mala e caminhou em direção ao trapo de pano.

— Vamos lá. Nada de preguiça — disse pegando o boneco e colocando-o no bolso frontal de seu macacão rosa.

A garota caminhou para fora da casa, parou alguns passos adiante, em meio ao que se assemelhava com uma rua. Observou os dois lados da estrada e apontou o nariz para o que nominou de sentido oeste. Afinal, as direções ali não importavam, nem existiam de fato.

Caminhou rumo aos prédios do centro da cidade que se resumia a construções e ruas completamente vazias. Não havia qualquer ruído além dos passos leves dela, não havia qualquer vento que não viesse da sua própria presença e, todo o calor ou frio parecia ter sido completamente esquecido.

Após alguns minutos seguindo a estrada, em meio a sua caminhada um tremor foi sentido na terra, não chegou a provocar sequer um desequilíbrio por parte de Agnes, mas foi o suficiente para ela notar e ficar atenta.

— Isso de novo? — O tremor parou. — Não se preocupe, Boo. Eles não podem nos ver.

Quando se deu conta a cidade ganhou vida. As ruas eram tomadas por carros elegantes e as calçadas eram preenchidas por pedestres bem vestidos. Buzina e conversas risonhas eram ouvidas por todos os lados.

— Eu falei para não se preocupar — repetiu para o boneco no bolso do macacão —, essas são apenas memórias, não podem nos ver ou interagir com a gente.

Ela parou para ouvir o silêncio que o boneco de pano fazia, então respondeu logo em seguida:

— Tem razão, “ela” pode aparecer. Bom, não esqueça que a proteção de Mutha não permite que ela me acerte a distância. É só se esconder que tudo vai ficar bem.

Após sua fala que ninguém ouvira, Agnes correu para a calçada e em seguida para uma rua de serviço ao lado de um grandioso prédio espelhado. Se agachou atrás de um veículo estacionado para se esconder do que viria da rua.

O ar pareceu ficar denso, o vento voltou a soprar e o calor do deserto retornou a causar irritação, Agnes ficou atenta com os olhos por entre as janelas do automóvel que a servira de abrigo.

Na rua, uma presença se destacava pela cor intensa do vestido, aquela que era mais temida pela garota. A figura pronunciou aos gritos sua posição:

— Eu sei que está por aqui! Desista de uma vez por todas, pirralha nojenta! — gritou Lashir sem direção, não sabia de fato onde estava o seu alvo. — Sua existência nessa realidade é apenas um reflexo do que você um dia já foi. Desista e me forneça o resto do seu poder de uma vez por todas. Já está morta mesmo, não fará diferença nenhuma para você.

— Eu sei sua bruxa — sussurrou Agnes —, não faço isso por mim.

— E então, quantas vezes mais, você me fará perder o controle das magias?! Acha que está me atrapalhando? Hã?! — enfurecida, Lashir continuou caminhando pela rua, para longe, exclamando os seus dizeres: — Só está me provocando ainda mais, quando eu lhe encontrar vou torturar a sua alma, tanto que vai desejar nunca ter corrido de mim, vadiazinha.

A mulher saiu de vista, o calor voltou a inexistir e o silêncio a prevalecer enquanto as ruas se esvaziaram por completo novamente. A cidade em meio ao deserto voltou a ser apenas um cenário sem vida.

Agnes suspirou aliviada e saiu de seu esconderijo com a certeza de que estava tudo bem.

— Viu, não precisa ter medo — falou com o trapo de pano do seu bolso frontal. Quando olhou para o final da rua de serviço em que estava, se surpreendeu. Perguntou estranhando: — O que é aquilo?

Era como uma imensa pedra avermelhada brilhante, um cristal do tamanho de uma pessoa adulta que emitia uma luz contínua nunca antes visto por Agnes, mesmo após tantos anos vivendo naquela realidade.

Ela se aproximou para observar mais detalhes. A pedra estava no centro do que parecia uma praça, frente a um belo prédio espelhado em um campo aberto com belas esculturas esculpidas em pedras nobres.

— Boo — chamou pela boneca enquanto boquiaberta observando o cristal brilhante —, acho que nós achamos.

                                               ***

— Até quando você vai ficar me perturbando, pirralha de Mutha? — perguntou Lashir raivosa frente aos seus oponentes.

— Eu já disse que meu nome é Agnes — respondeu a garotinha frente ao seu tio que ainda tentava assimilar a situação. Com uma raiva que beirava a infantilidade, ela continuou: — Não é nada legal você me chamar assim.

A mulher de vermelho esticou o braço em direção aos alvos do centro da sala, pujantemente suntuosa avançou para cima deles com o ímpeto de um golpe mortal. Esbravejou:

— Eu vou acabar com você!

— Cuidado, Agnes! — alertou Colth se preocupando com a garota que tomou a sua frente corajosa.

A guardiã de Mutha não recuou um passo, aguçou os olhos e passou a mão frente ao seu próprio corpo com a palma apontada para Lashir que vinha em avanço constante.

A mulher chegou ao alvo rápido, mas quando estava prestes a acertar a palma de sua mão no rosto da garotinha, algo a interrompeu, sua mão chocou-se com o ar maciço e a impediu de completar o seu movimento, era como se uma parede invisível tivesse sido erguida frente a ela. Colth já havia presenciado algo daquele tipo, a própria Lashir tinha se beneficiado daquilo quando Goro tentou acerta-la com um disparo de Sathsai.

— O que é isso? — perguntou Colth observando Lashir centímetros à frente pressionando um obstáculo invisível com as palmas das mãos brilhantes tentando manter o avanço sem êxito.

— Escudo de Mutha. Magia de defesa — respondeu Agnes sorrindo orgulhosa.

— Ma-magia? — gaguejou o rapaz. — Você sabe usar magia?

— Eu demorei para aprender, mas agora acho que estou indo muito bem — ela mantinha a palma de sua mão esquerda à mostra e se concentrava no uso de sua magia, percebeu o rosto confuso de Colth e tentou aliviar a situação com um novo sorriso alegre e infantil: — Não se preocupe, é um escudo forte. Eu sei que é uma magia um pouco estranha, mas é só pensar nela como um vidro, um vidro bem resistente.

— Como?

— Tipo um aquário, sabe? Uma caixa de vidro. Igual àquele que a família do Goro tinha para aqueles peixes coloridos fofinhos.

— Não isso. Como você sabe usar magia, Agnes?

— Ué, eu sou a guardiã de Mutha.

— ...

Enquanto Colth tentava entender o sentido daquelas simples palavras, Lashir se fez ouvir:

— Ahhh! — gritou com o esforço desprendido sobre a magia de defesa, usou sua determinação e a magia de Rubrum para se empenhar a ponto de o “escudo de vidro” ficar visível.

Suas mãos brilhando em vermelho carmesim definiam rachaduras no ar sólido que surpreenderam Agnes:

— Droga, precisamos sair daqui. Ela vai conseguir quebrar o escudo. — Enquanto ainda falava, moveu sua mão direita como se desenhasse algo no ar.

Um brilho em seu movimento e, repentinamente, a garotinha estava segurando algo em sua mão direita enquanto a esquerda se concentrava no escudo. O que ela portava era algo semitransparente, bem como uma lâmina de vidro, era algo que chamava a atenção.

Colth notou o contorno do objeto, ficava óbvio do que se tratava, uma espada que emanava uma cintilação peculiar sobre sua superfície translúcida, do tamanho da própria garota que a carregava, o sabre era retilíneo com a ponta retangular afiada, o cabo, assim como a pequena guarda, eram de um material mais escuro, mas não como o habitual metal encontrado nesse tipo de arma, não refletiam a luz externa e eram belos e brilhantes como os cristais de Sathsai.

A garotinha balançou a espada com uma só mão, não parecia sentir o peso da arma, mesmo assim conseguia exprimir o poder dela com um só corte. Rasgou o chão, dividiu o carpete vermelho em dois, mas não só isso. Da fissura, uma luz surgiu, e o que era um simples corte se tornou uma fenda maior do que uma passagem, se abriu estendendo-se além do chão.

— ... — Colth calou-se com os olhos confusos, ainda não conseguia entender tudo aquilo.

— Haaa! — gritou raivosa Lashir ocasionando maiores danos ao escudo de Mutha.

— Pula! — gritou Agnes.

— Pular?

— Pula para dentro da fenda, tio. Vai logo.

Diante de Lashir arrebentando o escudo magico com a ferocidade de um Capelobus em busca de seu duelo, e a fenda no chão recém aberta que Agnes forjou no chão, Colth preferiu a fuga. Fechou os olhos e pulou para dentro do buraco apressado pelos gritos raivosos de Lashir.



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