Volume 1
Capítulo 56: Alento
Colth fechou seus olhos para não ter de pensar mais uma vez sobre o que estava prestes a fazer. Se atirou para dentro da fenda em fuga da raivosa Lashir.
Caiu poucos metros e aterrissou na areia fofa, viu o deserto vermelho novamente sem sentir familiaridade, estava em outra memória. Agnes veio logo em sequência, caiu do céu e pousou ao lado de seu tio na areia macia, rapidamente olhou para cima e sacudiu a palma da mão esquerda em direção a fissura no ar sobre suas cabeças.
Como se estivesse passando a mão sobre uma lousa imaginaria, a garotinha apagou a fenda entre as lembranças tal como se apagasse um desenho em giz criado por ela mesma.
— Isso vai nos dar algum tempo — concluiu Agnes com um suspiro rápido de alívio.
— Esse tempo todo, você era uma guardiã — Colth não perdeu tempo em descansar, levantou-se com a pergunta feita e tentou o esclarecimento. Ao lado de uma grande rocha em meio ao deserto rubro, se viu frente a alguém que jamais pensou em rever.
— É, pois é — a garota pareceu sem saber como se portar.
— O quê? Só isso?
— Bom, a magia de Mutha é muito boa para materializar coisas. —Agnes continuou parecer desconfortável, fez o mesmo movimento anterior com a mão esquerda sobre a mão direita como se apagasse a espada translúcida da existência, em seguida já não carregava mais nada em mãos. — Os objetos materializados têm uma duração de alguns minutos, mas podem ser apagadas antes se...
Foi surpreendida pelo abraço sem aviso de Colth.
— Eu não acredito... — o rapaz revelou seus pensamentos enquanto de joelhos sobre a areia vermelha e de braços envoltos à pequena garota. Seu sorriso de orelha a orelha manifestava sua felicidade. — Eu senti tanta a sua falta. — Manteve o abraço emotivo por alguns segundos antes de retornar o seu vislumbre sobre os olhos de cor âmbar dela — Mas como? Você não mudou nada.
— Hehehe — ela riu sua felicidade juvenil — Você também não, bobinho.
— Eu ainda não entendo...
— Eu sou a guardiã Mutha, assim como você é o guardião de Anima.
— Mas como? Lashir falou que havia matado a guardiã de Mutha.
— E matou — respondeu a menina de imediato, percebeu a reação dolorosa de Colth, ele perdeu o sorriso imediatamente e ela tentou consertar: — Desculpa. Eu sinto muito, mas não precisa se preocupar, eu estou ótima, tá legal? — sorriu Agnes com as mãos na cintura e o peito estufado demonstrando toda a sua estabilidade.
O rapaz se levantou sem dizer uma palavra, ficou cabisbaixo como se nada mais importasse:
— Então, eu falhei mesmo — sussurrou voltando ao luto. Em seguida, foi repentinamente surpreendido pela risada doce da garotinha.
— Haha — Ela sorriu recebendo os olhos tristonhos, mas curiosos do tio. — É uma situação bem estranha, né? A pessoa que morreu, dizendo “eu sinto muito”, eu nunca tinha imaginado isso. Hahaha — complementou forçando a risada. Percebeu que o rapaz ainda se desanimara. — Ei, o que foi?
— Me desculpa, eu deixei você morrer. Você e sua mãe, eu não fiz nada para proteger vocês. — Deu passos para trás e se escorou na enorme pedra, desceu as costas pela superfície áspera e sentou-se sobre a areia. — Eu queria que você tivesse vivido mais, queria que tivesse crescido e que alcançasse seu sonho.
— Mas eu cresci... — disse Agnes. Recebeu um olhar estranhado do outro. — Tá, eu continuo parecendo uma criança, mas não é só a aparência que importa, não é?
— Do que você está falando?
— Eu estou aqui, não estou? — parou de pé frente ao rapaz desiludido. — Aprendi muito sobre os diferentes mundos e aprendi a controlar a magia de Mutha. É verdade que o mundo que vejo pertence a consciência da Lashir, mas ainda sim é um mundo em que eu me esforcei bastante para crescer.
— Você viveu todo esse tempo aqui, nesse mundo?
— Sim. Na verdade, até mais tempo do que parece, já que aqui os minutos parecem horas.
— Mais?! — Melancólico.
— Ah, mas não se preocupe — disse ela percebendo a preocupação do tio, agiu rápido para tentar desfazer —, foi bem legal. Aqui é bem espaçoso e tem vários lugares diferentes para conhecer. Por exemplo, o castelo na estrela onde fica o trono de Lux, é o meu preferido, dá para ver todas as estrelas e os mundos de lá. É um lugar tão lindo que é difícil de descrever.
— E você aprendeu a magia de Mutha sozinha? Todo esse tempo?
— Hahaha... — disfarçou ela sorrindo alegremente enquanto verificava se o que carregava no bolso frontal do macacão, o boneco de pano, estava visível. Continuou ao certificar-se que “Boo” estava completamente escondido em seu bolso: — Eu ainda fiquei com a minha roupa preferida. Esse macacão é fofinho, não é?
— Para com isso — respondeu Colth irritado.
— Como assim? — rebateu ignorando-o. Ela girou sobre o próprio eixo para mostrar a sua roupa delicada com um sorriso no rosto. — Olha só como é fofo e...
— Não mude de assunto.
— Eu adoro essa cor e...
— Agnes!... — Colth em tom de bronca.
A garota parou, fechou a cara e caminhou para perto batendo o pé, colocou suas costas na pedra árida ao lado do tio para então se pronunciar:
— Chuif! — respondeu ela com um suspiro rebelde e com as bochechas cheias de ar que, na face delicada e inocente dela, se tornava mais gracioso do que petulante — Eu descobri que eu era uma guardiã, quando Lashir me matou, tá legal? Aprendi a usar a minha magia vendo as lembranças dela. Não precisa ficar bravo, não é como se eu pudesse sair por aí mostrando as minhas habilidades para todo mundo e...
— Deve ter sido difícil... — Colth sussurrou sua pena. Aquela garota era realmente forte, tão forte que daria um orgulho absoluto à sua mãe, mas ele a conhecia, sabia que não era simplesmente o que aparentava. Não conseguiu esconder um brilho de compaixão em seus olhos.
— Não me olha com essa cara — disse ela impactada como se tivesse sido insultada. — Foi bem fácil na verdade, eu sou tipo um prodígio, sabia? Foi fácil, eu treinei bastante, mesmo sabendo que nunca realizaria meu sonho. — Continuou recebendo o mesmo olhar de Colth, manteve-se ofendida e aumentou o tom: — Foi muito fácil, eu aprendi o máximo que podia dessa magia, mesmo sem saber se eu teria motivo algum para usá-la. Foi fácil, mesmo que eu estivesse sozinha e não tivesse ninguém para me ver ou me elogiar pelo esforço...
— Agnes — interrompeu Colth, se levantou devagar e caminhou em direção à sua sobrinha.
— Não, é sério, foi muito, muito, muito — continuou a garota, ainda que não enxergasse nada além das próprias lagrimas que tomaram os seus olhos, sentiu o abraço quente familiar mais uma vez. — Muito difícil. — despencou em choro. — Ah...
— Tá tudo bem. — confortou Colth sentido seu peito estufar pela emoção. Colocou a menina entre os seus braços e a abraçou ainda mais forte. Tá tudo bem agora, garotinha.
— Foi tão difícil... — disse em meio ao choro — Snif. Tão solitário e frio. Snif, foi como viver durante dez anos, sem comer, sem dormir, sem ninguém. E quando eu te vi, achei que fosse uma alucinação. Não há nada aqui, então eu achei que nunca sentiria isso de novo. Foi tão difícil. Ahhh...
— Eu sei, eu sei. — O rapaz manteve-se forte enquanto as lágrimas dela escorriam ao sentir o calor carinhoso do tio.
Agora sim, não tinha como negar, aquela era mesmo a Agnes. A sobrinha que sempre se escondia ou corria quando estava prestes a chorar. E não eram poucas as vezes em que algo a fazia chorar. Dessa vez ela tentou, escondeu suas emoções o mais fundo que pôde, mostrou a sua força não sendo mais uma simples criança e até enfrentou de frente Lashir como uma verdadeira guardiã, com determinação e coragem, mas ainda assim não conseguiu segurar o choro.
O treinamento árduo ou o embate com Lashir, nada disso mudava o que Agnes sentiu durante aqueles anos solitários em um mundo sem calor, finalmente podia expor isso para alguém que realmente estivesse ouvindo. Foi o que fez em meio aquelas lágrimas que revelavam os seus mais profundos sentimentos e angustias enterradas.
Foram minutos em prantos, gritando desesperos acumulados, e finalmente a garota se recuperou. Enxugou os olhos e respirou fundo o ar sem odor ou temperatura para se recolocar presente ali novamente.
O silêncio do deserto se reestabeleceu, durou segundos, foi interrompido por um barulho peculiar. A barriga de Colth reclamando e suplicando por comida.
— Você sente fome? — estranhou Agnes já deixando para trás sua melancolia.
— Estou com um pouco de fome, sim. Mas não é nada, não se preocupe comigo...
— Não, isso é ruim, bem ruim — pensou alto ela.
— Hã?
— Sua consciência está nesse mundo, mas o seu corpo continua sentido as mesmas necessidades do seu mundo. Ou seja, seu tempo aqui é limitado.
— Limitado?
— Isso. Eu não tenho mais corpo, então sobreviveria aqui pela eternidade, ou até a Lashir apagar de uma vez. Mas você... você possui um corpo, e sua consciência ainda está amarrado a ele. Temos que te mandar de volta, você tem que sair desse mundo e retornar ao seu. Retornar ao seu corpo, tio Colth.
— Como você sabe de tudo isso?
— As memórias da bruxa são uma boa fonte de conhecimento.
— Bruxa? Está falando da Lashir? Tá, entendi. Certo — concordou ele. — Retornar ao meu corpo. Mas como eu faço isso?
— Como? — Agnes julgou — Eu não sei, isso é magia de Anima. A bruxa não tem memórias do guardião de Anima. Esse é você. Você é quem deveria saber lidar com esse tipo de coisa.
— Droga...
— “Droga”? — espantou-se ela vendo a reação temerária do rapaz. — Você realmente não sabe?
— Não.
— Aff — a garota chacoalhou a cabeça decepcionada. — Espera. — Se animou repentinamente ao lembrar de algo. — Acho que eu tenho uma ideia, mas é um pouco arriscada.
— Eu me arrisquei tanto nos últimos dias, por pessoas que eu nem mesmo conhecia e que agora me acompanham, que acho não fazer mais diferença se arriscar.
— Você se arriscou? — perguntou ela impressionada.
— Por que a surpresa?
— Ah, nada não. É que geralmente você era mais...
— Mais...?
— Esquece. Bom, você não era o único a estar acompanhado. Eu tenho um amigo que carrego sempre comigo.
— Amigo? — Colth estranhou. — Achei que estivesse solitária nesse mundo.
— Não. Olha — respondeu a garota coletando o boneco do fundo do bolso do macacão e entregando ao seu tio. — Esse é o Boo.
— Isso é...
— O meu amigo protetor. Sempre esteve comigo nesse mundo. Ele não é de falar muito, mas é uma ótima companhia. — A garota mostrou um sorriso autentico. — O que achou?
— Bom, eu não sei muito o que falar — rebateu Colth com um olhar analítico sobre a peça de trapo encardida.
— Você está segurando ele de cabeça para baixo, que grosseiro — disse fechando a cara e enchendo as bochechas de ar.
— Ah, desculpa — arrumou a orientação do boneco em mãos.
Colth chegou a julgar que fosse um tipo de brincadeira, mas Agnes falava sério, para ela não era um simples brinquedo. O rapaz chegou a imaginar que a sua sobrinha havia perdido uma parte da sanidade, não era para menos, passar tanto tempo sozinha sem qualquer um para acompanha-la devia ter afetado parte de sua saúde mental e emocional. Colth segurou o julgamento mais severo e entrou na fantasia:
— Seu amigo é bem... simpático.
— Não é?! — Ela voltou a se alegrar entusiasmada. — Que bom que gostou dele, pois ele também gostou de você. Já sei, vou deixa-lo com você por enquanto.
— Hã? O quê?
— Está decidido. Então, vamos. — A garota se virou na direção de um objetivo além do deserto e iniciou sua caminhada.
— Espera. O que eu faço com isso... quer dizer, com ele. — Apontou para o boneco apressando os passos para acompanhar Agnes.
— Coloque-o no bolso, ele não se importa. Só fique com ele.
— Eu não vou ficar com...
A garota parou a caminhada imediatamente e em tom sério se virou para o tio:
— Me promete que vai ficar com ele. Isso é a coisa mais importante nesse mundo para mim — Olhou nos fundos dos olhos de Colth. — Me promete isso e eu prometo que vou fazer de tudo para te tirar daqui.
O rapaz engoliu seco com a repentina seriedade.
— ... — Ele respeitou o pedido inusitado e sem sentido da imaginação da garota, colocou o trapo no bolso da jaqueta e respondeu um pouco contrariado: — Certo, eu prometo.
Agnes sorriu satisfeita, pareceu ficar mais tranquila com aquela promessa sem sentido e com traçar de seus objetivos em mente.
— E para onde vamos? — perguntou Colth.
— Eu explico no caminho, vamos.
A garota voltou a caminhar na direção com destino certo enquanto o rapaz suspirou fundo antes de segui-la. Ambos caminhavam lado a lado pelo deserto de areias vermelhas que parecia interminável, mas a quilômetros dali, ao além de algumas dunas, construções de uma grande cidade podiam ser avistadas distantes no horizonte carmesim.