Volume 1

Capítulo 54: A Garota da Predição

Lá estava Colth em meio as lembranças mais submersas de Lashir. Dessa vez, em uma pequena, porém luxuosa sala de estar. O carpete vermelho ao chão, combinando com um par de poltronas tingidas pelo brilho do sol que vinha das grandes janelas com detalhes dourados, o deixava pensar que aquele era um local usado por imperadores ou até deuses. Não errou.

A única porta da sala milimetricamente organizada em um arranjo espelhado se abriu revelando a entrada de duas figuras. Um homem imponente com o rosto pouco envelhecido e barba por fazer em seu traje vermelho adornado por enfeites dourados e uma mulher que, ao ser reconhecida por Colth, arrancou um olhar de ódio dele.

O homem entrou e sentou-se em uma das poltronas, seus olhos debaixo dos seus cabelos ruivos demonstravam preocupação, eram os mesmos olhos que um dia já foram imponentes e corajosos e, que hoje só existiam no seu retrato pintado em um belo quadro pendurado no fundo da sala. A mulher que o acompanhava fechou a porta e se sentou na poltrona frente ao homem, não hesitou em indagá-lo:

— Mestre Rubrum, por favor, me diga o que foi decidido? O senhor conseguiu que os outros deuses o apoiassem no abastecimento de água para o nosso mundo?

A resposta veio em um suspiro desiludido, Rubrum baixou a cabeça tomado por pensamentos. Olhando para os seus próprios pés sobre o carpete, disse:

— Você é mesmo uma pessoa incrível, Lashir.

— Pare com isso. E então, eles vão nos ajudar, ou não? — perguntou a guardiã em tom de preocupação sobre o seu mundo e seu mestre.

Colth permanecia atento aos dizeres daqueles dois, se surpreendeu com comportamento afável de Lashir que parecia mais jovem e menos sombria, mas não deixou, nem por um segundo, de odiá-la.

Rubrum levantou a cabeça para então responder à pergunta de sua subordinada:

— Você fez tanto por esse mundo, Lashir. Nem mesmo eu fui capaz de me doar tanto por um império que eu mesmo ergui. Eu quero que saiba que sou eternamente grato pelo que fez pelo meu povo e pelo meu mundo.

— Do que você está falando? Você me designou para isso, por isso me esforcei ao máximo todos dias, sempre, sem exceção.

— Eu sei, por isso estou agradecendo. Nunca tive um guardião como você e, provavelmente, jamais terei.

— Mestre Rubrum, do que você está falando? Eu não entendo como isso se liga a reunião entre os oito deuses.

O homem olhou no fundo dos olhos escarlate da guardiã para dar a resposta mais sincera desde que se tornou o deus daquelas terras:

 — Eu não solicitei uma reunião entre os deuses para pedir por suprimentos ou água, até porque, seria apenas uma solução provisória que não garantiria o nosso futuro.

— Mas então...

— Solicitei a reunião para cancelarmos o acordo com Lux.

Lashir se levantou espantada:

— O quê? Por quê?

— Eu cansei de ser apenas um falso deus que não consegue garantir a segurança do meu povo.

— O que você está dizendo? Esse acordo é exatamente o que garante a segurança do povo do nosso mundo.

— Mesmo assim, é como se o verdadeiro deus, não só desse mundo, mas de todos os outros também, fosse Lux. Afinal, ela é quem nos controla e nos coloca em situações como a de falta de recursos e água que estamos passando. Além disso, esse acordo necessita do sacrifício do guardião.

— Por favor, me diga que o rompimento do acordo foi negado pelos outros deuses.

Rubrum olhou para a sua subordinada com um sorriso que não possuía um pingo de felicidade, mesmo assim, ele tinha consciência que havia feito a escolha certa, e mesmo que a escolha tenha sido egoísta, não se arrependia ou se envergonhava dela.

— Foi aceito — Lashir sussurrou o óbvio, preocupou-se como nunca antes. — O acordo vai ser quebrado... O que você fez?

— Eu fiz o que acho certo.

— Eu não entendo, por que fez isso? Nossa situação é fácil de ser resolvida. É só...

— É só te entregar para Lux? — perguntou ríspido, Rubrum se levantou, o homem alto não se impôs frente à Lashir, mas continuou firme nos seus dizeres: — E esperar pela chuva, pela luz, e pelo nascer de um novo guardião?

— Sim, exatamente. O que você estava pensando? Isso tudo já estava planejado, esqueceu? Meu sacrifício pela graça de Lux sobre todos os mundos, é a minha vez.

Rubrum virou o rosto para não o deixar ser visto:

— Eu jamais deixaria que você fosse sacrificada, Lashir.

— O quê? — ela se surpreendeu.

— Desculpa. Eu não posso fazer isso, não com você.

— Desculpa? Desculpa? Porra, eu não acredito. Você está colocando um mundo inteiro... não, oito mundos inteiros em uma guerra improvável, e é isso que você tem a dizer?

O homem não voltou a mostrar o rosto, apenas caminhou em direção a porta e parou antes de sair da sala, sua resposta foi convicta:

— Se isso vai impedir que minha guardiã seja uma simples oferenda, então sim. Eu posso apenas pedir desculpas, manterei a minha escolha. Vou lutar pela liberdade do meu mundo e do meu povo, e vou lutar pela vida da minha guardiã, da minha filha.

Saiu da sala e fechou a porta deixando para trás a solidão acompanhada da guardiã.

— Não é justo... Não é justo — Sussurrou Lashir já com os olhos molhados enquanto se ajoelhava sobre o carpete vermelho sabendo que a guerra era questão de tempo.

A mulher simplesmente teve sua presença apagada de um instante para outro. Seu corpo virou areia levada pelo vento dos sonhos.

Sem se assustar, afinal aquilo era apenas uma lembrança, Colth permaneceu calado em meio aquela sala sem maiores reações, pensava o quanto aqueles deuses eram fracos e frágeis, quase como humanos.

A porta se abriu novamente, lá estava Lashir novamente, dessa vez mais velha:

— Andando por aí, bisbilhotando segredos de uma mulher — disse ela em um tom convencido. Entrou na sala e fez Colth apertar as sobrancelhas com o ódio estancado, aquela era a verdadeira Lashir, a contemporânea. — O quão cruel você é?

— Não sou eu o cruel aqui, guardiã de vermelho — ele respondeu.

— Poxa, eu tenho até uma alcunha? — apática, caminhou pela sala observando o belo quadro de seu pai na parede ao fundo da sala. — Acho que é algo que só grandes figuras conseguem, não é mesmo?

— Como se destruir uma nação inteira fosse algo para se orgulhar.

— Seja por admiração ou furor, se estão me contemplando é porque eu sou uma grande figura. Se não gostou, reclame com a deusa de seu mundo, foi ela quem ajudou a começar tudo isso.

— O que Tera tem a ver com isso?

— Ué, guardião, você não saiu por aí se espreitando pelas minhas memórias?

 — Suas memórias não me mostram nada além de uma confusão entre mundos e fragmentos de lembranças desconexas. Sua cabeça deve estar bem ferrada.

— Audacioso, gostei — rebateu Lashir com um toque de sarcasmo. Caminhando pela sala enquanto Colth permanecia ao centro, ela continuou: — Após a reunião entre os oito deuses, ficou decidido que o dadivar e as oferendas dos guardiões cessariam, o acordo que mantinha a paz entre os mundos seria desfeito. Sabe o que isso significa?

— ...

— Não, é claro que não. — afirmando, manteve-se superior. — Significa que iniciaram uma guerra contra Lux, a primeira deusa, aquela que deu origem a luz e a esperança.

— Não foi exatamente isso que Rubrum, o deus que você jurou servir, queria?

— Ele cometeu um erro.

— Ele não quis sacrificar o seu guardião, não quis sacrificar você — rebateu Colth.

— Estúpido, essa era a minha função quanto guardiã. Eu fui concebida para isso, e teria cumprido com a minha obrigação com honra e dignidade, mas Rubrum foi manipulado, foi convencido a entrar em confronto com a primeira deusa.

— Ele não me pareceu nada manipulado.

— Você não entende nada. Rubrum sabia de minhas atribuições e do meu próprio desejo de manter a paz entre os mundos e a prosperidade de meu povo, ele jamais impediria isso. Algum outro deus foi o responsável por tamanha influência sobre o meu deus, o que o fez julgar inadequadamente a situação.

Colth não se convenceu sobre as palavras da mulher que mantinha seus passos pela sala ao seu arredor, mas deixou isso de lado.

— E é por isso que quer tanto eliminar a deusa de Tera? Uma vingança?

— Não, é claro que não. — Lashir parou frente a janela por onde a luz quente alcançava a sala avermelhada. — Lux está furiosa após o cessar de suas oferendas. Ela é a mais poderosa e vai destruir os oito mundos irmãos, um por um. “Recomeçar”, foi o que ela proclamou, mas eu pretendo impedi-la, só não tenho a força necessária ainda.

— Impedi-la? — perguntou Colth como se tivesse sido insultado. — Você destruiu cidades e matou pessoas do meu mundo.

— Foi só porque estavam no meu caminho para alcançar a deusa de Tera.

— Eu continuo sem entender. Você não deveria estar recrutando aliados ao invés de fazer inimigos para combater Lux? Entrar em um mundo que não é seu, e matar pessoas a torto e direito desse mundo, não é bem o esperado para alguém que precisa de aliados para isso.

— Ah, eu esqueci que você não entende nada. — Lashir se virou para o rapaz no centro da sala. A luz calorosa que atravessava a janela às suas costas, cobria a guardiã como um manto dourado demarcando as curvas de seu corpo e o levantar de sua cabeça mostrando-se superior. — A “força” que eu mencionei, e que eu preciso, não são aliados. É o poder e a magia que eles possuem.

— ... — Colth estranhou sem palavras.

— Eu fui abençoada com a dádiva de Rubrum. A ferramenta perfeita para o que estou fazendo, o recurso apropriado para a minha jornada de mudar todos os mundos. É como se eu estivesse destinada a isso, como se fosse uma predição.

— Predição? — sussurrou Colth impactado por uma lembrança que achou estar enterrada em meio a destroços.

— Minha dádiva permite adquirir as dádivas de outros guardiões, apenas consumindo o seu sangue. E graças a dádiva da guardiã de Mutha, meu corpo ganhou resistência para comportar várias dádivas de uma só vez, mas o mais importante, comportar o poder dos deuses.

— Por isso está atrás da deusa de Tera? Está atrás de seu poder. Mas não consegue fazer isso sozinha, não é?

— É claro que não. Se eu pudesse, já teria o feito. Preciso da guardiã de Tera para isso. Você poderia me ajudar com isso, guardião de Anima.

— Entregar Celina? — Mais uma vez Colth ficou pensativo. — Primeiro, o que aconteceu com a guardiã de Mutha? Aquela de quem você falou.

— Bom, a benção de um deus é finita. Ela pode até ser dividida entre indivíduos, mas a qualidade e a força da magia resultante acompanham essa divisão. — Lashir se fez ouvir com o rosto sério. — O único modo de um mortal comportar o poder de um deus é com uma magia muito poderosa de resistência, sem divisões.

— A magia que a guardiã de Mutha possuía, certo? E “sem divisões”, você quer dizer que é a única a possuir essa magia agora?

— Sim. A guardiã de Mutha não poderia viver. Foi um sacrifício necessário para que o meu corpo suportasse tamanho poder de um deus. Mas é tudo para que os nossos mundos sobrevivam.

— Essa desculpa só serve para você mesmo, Lashir. — Colth elevou a voz. — Acha que eu vou entregar a Celina para você? Depois de ouvir isso?

— ... — a mulher semicerrou os olhos com raiva.

— Eu vi como você age. Você é do tipo impiedosa que não se importa com mais ninguém além de si mesma. Me atacaria sem hesitar aqui, mas achou que seria mais fácil me fazer acreditar em seus ideais, não é?

— Você está se opondo a pessoa errada. O inimigo é a deusa Lux.

— Eu posso até concordar nisso com você, mas não justifica os sacrifícios que fez e está prestes a fazer.

— Acha que eu queria isso? Se eu pudesse teria sacrificado apenas uma pessoa, eu mesma! Eu me sacrificaria, faria isso com prazer, mas...

— Mas o seu deus foi egoísta. Ele preferiu você do que o seu próprio mundo. Ele te amava de mais para simplesmente te entregar a Lux, mesmo que isso custasse uma guerra entre mundos.

— Cala a boca! Você não sabe do que está falando!

— Você culpa os outros deuses pela ferocidade de Lux, mas a verdade é que foi o próprio Rubrum que deu início a isso.

— Eu falei para calar a boca!!!

— Independente disso, você continuou com as escolhas erradas. — Colth manteve-se. — Não vou deixar que prossiga por esse caminho, não entregarei Celina.

— Tanto faz, se não vai sair do meu caminho, eu passo por cima.

Lashir apontou a palma da mão para Colth além de sua raiva e, sem qualquer aviso, atirou o que parecia uma adaga completamente vermelha, inteiramente feita de sangue sólido.

O objeto pontiagudo atravessou a sala e acertaria o rosto do seu alvo rápido e perfurante como uma bala. O rapaz não poderia fazer nada, não teve tempo de fazer nada, sua morte seria certa. Mesmo assim, permaneceu vivo quando a adaga atingiu algo invisível à centímetros do nariz dele.

Ele ficou confuso ao mesmo tempo que aliviado, não entendeu, mas Lashir já tinha a resposta na ponta da língua e ficou furiosa com ela:

— Vadiazinha! Não vai me impedir!

Lashir avançou enfurecida em ofensiva sobre Colth. Não tinha outra escolha que não o ataque físico. Com passos rápidos e com a palma da mão apontada para o oponente, ela foi impiedosa para alcançar seu objetivo. O rapaz sentiu uma presença em suas costas, mas a preocupação estava à frente, a guardiã vermelha se aproximava.

Colth viu a mão de Lashir se aproximar com o notável brilho na palma resultante de sua magia Rubrum. Era rápida e, antes que ele conseguisse pensar sobre, repentinamente, algo o empurrou pela lateral de seu corpo, foi forte e surpreendente o bastante para fazê-lo cair ao chão sobre o tapete vermelho da pequena sala.

— Mas o que... — perguntou-se tentando identificar o que o acertara.

Olhou rapidamente para o corpo estranho e identificou, era uma criança, e não era uma criança qualquer.

— Agnes? — perguntou confuso com as costas no chão e a garota sobre ele.

A menina levantou o rosto com um olhar sério sobre o mais velho e disse ofegante em tom de bronca:

— Você quer morrer, é?

— O quê? — Ele não entendeu de imediato, mas uma dor na sua bochecha o fez descartar a pergunta. Pressionou seu dedo sobre a maçã de seu próprio rosto e sentiu algo liquido, só teve certeza do que era quando observou a ponta de seus dedos vermelhos.

— Ela só arranhou o seu rosto. Te acertou de raspão — disse Agnes levando seus olhos até a mulher raivosa no canto da sala —, se tivesse acertado você com a palma da mão, você já teria virado poeira.

Colth engoliu seco. Mesmo na voz macia da garota, aquelas palavras eram duras. Ainda não tinha entendido ao todo a situação, mas se levantou rápido com a sua sobrinha ao seu lado para se contrapor a guardiã de Rubrum. Se preparou para o combate que obviamente viria, afinal, de algum modo, Lashir podia acerta-lo mesmo no mundo dos sonhos.

— Fique atrás de mim, tio — disse a garotinha corajosa em tom doce se colocando à frente do rapaz — eu o protegerei.

— Agnes? — Colth espantou-se com a atitude determinada da jovem.

— Eu sabia que era você. De novo, e de novo — relatou Lashir demonstrando sua insatisfação e se preparando para o combate do outro lado da sala —, de novo, e de novo, sua vadiazinha. Você continua me atrapalhando, guardiã de Mutha.



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