Volume 1

Capítulo 53: Escolha Pelo Improvável

Colth mantinha-se calado frente àquela mesa rodeada por deuses em um ambiente que deixaria o falecido imperador de Albores invejar os ornamentos luxuosos por toda a grandiosidade da sala de reuniões. O rapaz já possuía a certeza de que aquilo se tratava de um sonho, afinal, em que lugar poderia se ver as estrelas brilharem tanto através de uma bela cúpula gigante de vidro, se não em um sonho? Superado isso ele se mantinha atento a conversa entre os reunidos.

— Isso é besteira — revirou os olhos uma mulher que se destacava pelo belo rosto com expressão bravia e sua armadura pesada de placa, mesmo sentada como todos os outros, era notável a sua presença em função da sua avidez petulante.

— Se é besteira ou não, decidiremos agora — criticou complacente o mais requintado deles em seu terno de tons azuis. Seus cabelos esbranquiçados não disfarçavam a sua jovialidade, o que também não afetava a sua autoridade, todos se viam como iguais, ele continuou: — A votação se iniciará agora. “Sim” para debatermos a revisão do acordo conhecido por dadivar que possuímos com a toda poderosa Lux, e “não” para mantermos o acordo sem qualquer intervenção ou discussão. Mais da metade dos votantes precisa aceitar a ideia de Rubrum para prosseguirmos. Bom, a palavra inicia-se pelo mais novo de nós — mirou seus olhos ao homem, garoto, de cabelos dourados rebeldes que parecia completamente deslocado — Véu, os seus dizeres pelo seu mundo, por favor.

Os deuses voltaram a sua atenção esperando pela decisão daquele que, mesmo possuindo uma presença indiferente com sua camisa branca simples amassada, corte de cabelo audaz e algumas tatuagens arrojadas pelo pescoço e braços, era tido como um dos mais amigáveis e pacífico entre todos eles.

— Um garoto com tatuagem? — perguntou-se Colth tendo sua atenção tomada por aquele tipo de pessoa incomum.

O garoto Véu respirou fundo, um pouco entediado, e então iniciou o seu esperado voto:

— Sobre o acordo de nós com Lux ser eterno, eu concordo com as palavras de Rubrum, deve ser revisto. Tudo é efêmero, até nós, chamados de imortais, não somos de fato imortais. — Seus dizeres não pareciam em nada com o de uma criança, mesmo possuindo uma voz juvenil, ele não gaguejava e era pleno e objetivo surpreendendo Colth. Continuou: — Mas tem uma coisa que é, até onde sabemos, eterna, e isso não pode ser ignorado. Todos aqui também sabem que o meu mundo é onde se encontra o maior respeito a vida, isso porque os nossos mundos refletem as nossas escolhas e até nossas essências quanto deuses. Eu prezo muito pela vida, inclusive as vidas de nossos guardiões, pois eles também possuem essa essência...

— Que ultraje, guardiões só nos servem como escudo, não possuem qualquer baboseira do que você falou — resmungou a mulher sentada à duas posições a direita do garoto, ela mostrava o seu descontentamento com o caminho que a declaração levava.

— Por favor, Calis. A palavra está com Véu — disse em tom de bronca o homem do terno azul.

Enquanto alguns sussurravam, Rubrum se mostrava em seu estado mais esperançoso desde o começo daquele encontro, as palavras do garoto faziam parte do que ele pensava e requeria, vida aos guardiões. Véu continuou:

— Como eu dizia, respeito a vida dos guardiões, igualmente a qualquer outra vida em meu mundo, incluindo a minha própria. Por isso que tenho noção e segurança de dizer que a vida de um único guardião é um preço justo para assegurar a vida e a harmonia dos milhares que vivem em meu mundo...

— Espera, Véu... — tentou Rubrum surpreso.

— E é por isso que meu voto é não — concluiu o deus ordeiro sem dar atenção a suplica.

Os ombros de Rubrum derreteram junto com a sua esperança. Por um momento ele realmente achava que podia contar com o voto do deus jovem, mas foi completamente contrariado pela realidade. Véu jamais entraria em um debate que pudesse levar a um descontentamento de Lux, uma animosidade entre os mundos ou até uma guerra.

— Obrigado pelo seu voto, Véu. A próxima à direita, de acordo com a ordem da mesa, é Tera, por favor — disse o homem que comandava o pleito, abriu espaço para a fala da mulher de cabelos castanhos que se destacava pelo seu vestido esverdeado acompanhado por pedras esmeraldas nos acessórios que carregava e elevavam ainda mais a sua beleza naturalmente presente em seus olhos de mel e seu rosto perfeitamente gracioso.

— Bom, para ser sincera, eu acredito que a requisição de Rubrum veio em uma boa hora. Como deuses, não podemos nos esconder atrás de uma simples promessa.

— Uau... — Colth boquiaberto e enfeitiçado pelo mover dos lábios macios da mulher, mal prestou atenção nos dizeres dela, não conseguiu segurar a sua expressão encantado pela beleza, voz, tom, e tudo que compunha aquela deusa que estava certa de suas palavras e de seu voto.

Rubrum voltou a esperança se surpreendendo com o posicionamento de Tera. Ele realmente achou que a mulher que sempre prezou pela segurança dos habitantes de seu mundo jamais iria se contrapor dessa forma, mas estava acontecendo, ela continuou:

— Tenho certeza de que Lux vai nos ouvir e entrar em um novo acordo mais favorável para todos nós. Além disso, nunca estivemos tão preparados como agora. Eu sei que devemos temer Lux, mas acredito que discutir os termos é ainda mais prioridade agora. Por isso, meu voto é sim.

Rubrum sorriu disfarçadamente enquanto todos os outros se surpreendiam com o voto da deusa de Tera, ele só perdeu a sua expressão de contentamento quando se deu conta da próxima votante:

— Droga — sussurrou o deus de cabelos ruivos.

— Obrigado pelo seu voto, Tera. A próxima é Calis, por favor — organizou o homem do terno azul e abriu espaço para a mulher de armadura e cabelos longos esverdeados com expressão indócil.

A mulher varreu a mesa com seus olhos e entortou a boca antes de responder sucinto e sonoro:

— Não.

Um silêncio misto entre estranheza e desconforto ganhou a sala.

— Hahaha — riu a mulher grande e musculosa do lado direito da carrancuda. Bem humorada ela continuou: — Só um “não”? Você é mesmo a mais séria daqui, não é mesmo, Calis?

— Cale a boca, Nox. Eu não vou dizer mais nada além disso. Essa votação é uma completa perda de tempo. Vocês não pararam para pensar sobre o que acontecerá se quebrarmos o acordo com Lux?

— Qual é, Calis? Está com medo da mamãe? — continuou bem-humorada a mulher de braços fortes e sorriso gentil.

— Não brinque com uma coisa dessas. Aquela monstruosidade não pode ser chamada de mãe.

— Para com isso, irmãzinha.

— Não! Me escutem. Rubrum está cego pelo afeto ridículo por uma ferramenta e a bobinha da Tera acha que estamos preparados, ela acha que conversar com Lux e tirarmos um acordo melhor é fácil como em um conto infantil.

— Sua... — Rubrum segurou seus insultos.

— Eu não disse isso — Tera interrompeu acintosamente discordante — temos que tentar o melhor para...

— Cale a boca! Eu estou falando! É o meu voto agora! Cala-a-sua- boca!!! — Gritou Calis raivosa em direção a deusa ao seu lado esquerdo. — Você vive no mundo perfeito, não é mesmo Tera? No seu mundo não há guerra, fome ou morte. Quer saber? Meu mundo também não tinha até a última vez que resolvemos contestar Lux. Você lembra o que aconteceu?

— Você está errada. Daquela vez foi diferente. Você tentou matar a nossa mãe e...

— Eu disse para não chamar aquela coisa de mãe!!! — esbravejou e respirou fundo raivosamente antes de continuar: — E não, Tera. Não foi diferente. Se não está lembrada, você disse que Lux me escutaria da última vez, e sabe o que aconteceu?

— Não me venha com essa. A culpa não foi só minha. E você sabe que o meu mundo também perdeu parte da luz.

— Perdeu parte da luz? É sério? Você não perdeu nada, apenas ganhou o que seu povo chama de noite. Vocês possuem até um festival exclusivo para lua, merda! E me fala que perdeu? Você não sabe o que é perder. Não sabe o que é ter um mundo sem luz, um mundo sem dia, frio e solitário, um mundo morto.

— Isso é mais um motivo para você querer um novo acordo com Lux. Recuperar a luz do seu mundo, você não tem nada a perder.

— Não me diga o que eu tenho ou não a perder. Não serei tomado por essa merda de esperança de vocês. Meu voto é não, ponto final.

O silencio se estabeleceu mais uma vez, e mais uma vez foi a mulher bem-humorada da direita que fez questão de quebra-lo:

— Que climão, em?

— Bom, se o voto de Calis já foi proferido, por favor, Nox — disse o orador passando a palavra para a mulher acanhada pela situação.

— Eu realmente vou ter de votar é?

 — Vamos Nox, não se faça de desentendida agora.

— Eu não estou me fazendo de desentendida. Só é um pouco difícil de discordar dos meus irmãos. Poxa, eu só queria que pudéssemos manter a paz como era no início — disse Nox voltando ao simpático sorriso.

— Pare de bancar a sonhadora — reclamou Calis virando o rosto. — Você sabe que não há possibilidade de mantermos aquela harmonia.

— Diz isso, mas você mesmo votou em “não”. Se está tão descontente com a situação, por que mantê-la?

— Entre duas escolhas ruins, eu fico com a menos pior. Você já perdeu a luz de seu mundo Nox, entende o que eu falo. Seu mundo sem céu ainda existe por uma simples misericórdia de Lux, mas e se perdemos essa luta suicida que Rubrum propôs? O que mais vai ser tirado de você?

A mulher sorridente perdeu o ar sereno, Rubrum percebeu e, de imediato, levantou a voz contrapondo a deusa Calis:

— Eu não estou propondo luta, estou propondo um novo acordo. Um acordo que deixa de fora os guardiões.

— Propor um acordo desses é o mesmo que propor uma guerra.

— Que seja, Calis, pelo menos não vou me deixar aprisionado pelo medo como você.

— A questão não se refere mais a mim... — A mulher indomável mirou seus olhos invocados à Nox.

— Bom... — respondeu ela sem jeito, odiando ter de fazer aquilo. Desembuchou de uma vez como se arrancasse um curativo de uma ferida: — Eu peço desculpas aos meus irmãos, não queria que fosse assim. Meu voto é não.

— Tsc. — Rubrum se puniu enquanto Calis sorria com o canto de boca.

— Obrigado pelo seu voto, Nox. — O rapaz de terno azul prosseguia com sua fineza para conduzir a votação: — A próxima é a deusa de Finn, por favor.

Colth arregalou os olhos ao notar a presença daquela mulher, ela havia passado completamente despercebida até agora sem dizer qualquer palavra, mas observando atentamente Colth não conseguiu impedir a comparação:

— Garta? — disse se surpreendendo ao notar a mulher que todos apontavam os olhos. De fato, a deusa de Finn era bem parecida com Garta, era difícil não a associar, mas o seu rosto com feições mais serenas do que a da guardiã o fizeram ter a certeza de que se tratava de outra pessoa. — Quem é essa?

— Obrigada. — Ela deu início: — No meu mundo, vivemos em tempos que não sabemos o que esperar do futuro próximo, as águas são cada vez mais escassas, os cristais de Sathsai não são mais encontrados, e a fome já não é mais um pesadelo distante. Temos de mudar esse cenário, esse futuro. Não há outra forma, se não o de não encerrar o acordo com Lux, seja mediante a um novo acordo ou qualquer outra abordagem. — A mulher estava determinada ao seu voto, arrancou olhares surpresos e impressionados com tamanha resolução. — Meu voto, com a anuência de todos os guardiões e conselheiros, com a complacência de todo o povo de Finn, é sim.

Um novo sorriso pouco esperançoso de Rubrum e o descontentamento de Calis que não se deixava afetar se contratavam na sala. O deus de terno azul se fez ouvir mais uma vez:

— Obrigado, Finn. Se me permitem, eu próprio sou o próximo, Mutha. — proferiu o orador ajeitando a sua gravata azulada e prosseguiu com a palavra: — Eu gostaria de dizer palavras bonitas com mensagens importantes, mas sendo sincero, acho que essa votação já está decidida, não provarei mais do tempo de vocês, meu voto é sim.

— É claro que é... — criticou Calis em tom rabugento. Ela não se deixou levar, Mutha era um voto certo a favor da ideia de Rubrum, não se abalou, o próximo voto era tido como certo para o seu lado.

— Com o meu voto, a contagem fica: Quatro votos para discutimos o acordo com Lux e três votos para mantermos o acordo. Resta apenas um voto, o que decidirá a conclusão dessa seção, afinal o empate entre os votos é tido como manter a situação como está. Por favor, o último votante. Como se dá o seu voto, deus de Anima?

—Hueh... — sussurrou Colth com a expectativa de saber o voto do deus que lhe fez guardião.

— Obrigado. Eu serei breve. Meu voto é sim.

Todos se espantaram, até mesmo Rubrum ficou boquiaberto. Mutha descolocou suas costas de sua poltrona e indagou o votante para confirmar:

— Hueh, digo, deus de Anima. Votando na opção positiva, você está sendo a favor de solicitarmos a revisão do acordo com Lux. Tem certeza disso?

— Vocês me ouviram bem. Meu voto é sim.

— Você ficou maluco? — perguntou Calis esbravejando sua ira. — Isso não faz sentido, você será aquele que mais vai perder.

— Querida irmã — Hueh iniciou a sua resposta com o tom provocante de sempre —, você só vê as coisas com seus belos olhos, eu estou pensando bem mais além.

— O quê?

— Veja bem, nesse momento, eu quero dizer que as coisas ficarão bem, não se preocupe em se perder nos sonhos daquela que se diz imperatriz de um mundo que nem conhece.

— Está falando de Lux? Isso não faz o menor sentido, você deve mesmo estar maluco, não está falando coisa com coisa.

— Como eu disse, você enxerga apenas com os seus olhos, Calis. Tenho certeza de que estou bem lúcido das minhas palavras, e aqueles que as entenderem vão estar também.

Colth analisou uma, duas vezes, as palavras que o deus de Anima proferiu. Teve certeza de que elas eram dirigidas a ele próprio, por mais que isso não fizesse sentido, afinal sua presença naquele sonho deveria ser ignorada, sua presença naquela lembrança nunca existiu e, se tratando do passado de alguém que não o dele, aquilo fazia ainda menos sentido.

— Hueh, está me vendo? — perguntou ele confuso.

— Que Lux tenha piedade de nós... — disse o deus de Anima olhando para o vazio.

O brilho das estrelas sob o grandioso domo do teto foi se extinguindo aos poucos, em segundos a sala foi sendo tomada pela escuridão e tudo sendo levado pelo vento como folhas secas de uma árvore no outono.

— Espera, agora não... — Colth queria mais respostas, mas as luzes já haviam deixado aquela lembrança.

Ele não se intimidou, estava se acostumando com aquilo e, quando viu o brilho retornar, manteve-se atento ao o que aquelas novas lembranças que viriam iriam lhe mostrar.



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