Volume 1

Capítulo 47: Covil a Sete Palmos

— Tem certeza de que isso vai dar certo? — perguntou o rapaz com as mãos atadas pelas algemas envolta dos pulsos.

— Não vai dar certo, se você continuar falando comigo. Cala a boca, Colth — ordenou o amigo, ou melhor, o militar que acompanhava um prisioneiro sobre sua custódia a caminho da residência do ministro da Defesa.

Em meio a rua pouco movimentada, eles se aproximavam caminhantes. Colth atuava seu papel enquanto Goro exercia o seu trabalho sem parecer suspeito.

— Você voltou, rapaz? — perguntou o segurança em frente a porta do casarão branco de grandes janelas. Ele continuou em tom superior: — É claro que voltou. Sabe que o chefe não quer te ver mais, né? Você fugiu ontem antes do término do ritual.

— Ritual? — sussurrou Colth

— Cala a boca! — Exclamou Goro severo, em seguida apontou para o seu falso prisioneiro como uma mercadoria — É por isso que eu trouxe ele. É como um pedido de desculpas.

Colth baixou a cabeça e fingiu um desespero calado.

— Ah? — O segurança de braços grandes, que não escondia o coldre de seu revólver acoplado na cintura, processou a resposta com uma das sobrancelhas levantadas. — Tenho que admitir que você é corajoso, rapaz. Mas chegou atrasado, e com uma mercadoria bem ruinzinha — disse ao analisar Colth da cabeça aos pés —, o chefe já recebeu uma mercadoria hoje, e ela tem uma qualidade muito melhor do que essa... Hehehe.

Colth segurou todos os seus instintos ao ouvir a risada nojenta, respirou fundo ofegante para tirar qualquer decisão precipitada da cabeça. O segurança percebeu de imediato a inquietude:

— Qual é o problema dele? — perguntou o homem uniformizado para Goro que se manteve sereno.

— Se você estivesse no lugar dele, não estaria com medo? — rebateu o anti-criaturas indiferente.

— É... Claro. — Desistiu da desconfiança. — Sabe, eu retiro o que disse. Você não é corajoso, é só burro mesmo. — Abriu a porta e o caminho para os visitantes. — Se quer tanto apostar a sua vida, vá em frente. Hehehe.

Colth engoliu seco e, antes que a risada do guarda ecoasse pela sua cabeça, foi empurrado pelas costas em direção a entrada. Goro não perderia mais um segundo ali. Conversa encerrada, avançou os passos para dentro da residência e carregou consigo o falso prisioneiro preocupado.

As costas, a porta se fechou. No interior do casarão, um corredor todo em madeira rústica avermelhada os recebera com a luz amena das lamparinas na parede e o silêncio ganhando vida com cheiro oleoso.

Colth apressou os passos sem olhar para os lados, apenas começou a percorrer o corredor decorado por pinturas e retratos refinados em pressa.

— Espera — sussurrou Goro —, para onde você está indo?

— Temos que achar a Celina, rápido — Colth permaneceu com andar acelerado pelo corredor vazio.

— Eu disse pra esperar. — Goro correu para segurar o rapaz que ainda permanecia algemado. Segurou o braço de Colth e o empurrou contra a parede para fazê-lo parar. — Seu idiota, vai acabar morrendo antes mesmo de chegar no porão... — Quando Goro estava prestes a terminar a sua bronca, foi interrompido.

Algo havia caído do teto e pousou no topo de sua cabeça. Se fez presente sobre os seus cabelos e, de alguma forma, tapou os seus olhos.

— Vai garoto, fuja! — gritou o pequeno corpo se prendendo ao rosto do anti-criaturas.

— Que merda, é essa? — Goro desorientado se debateu sem visão.

— Fuja, rapaz! — repetiu.

— O quê? — Colth recebeu as ordens de modo confuso. — Koza?

— Sai de cima de mim — Goro colocou as mãos sobre a pequena criatura, puxou com toda a sua força. Descolou o anfíbio do seu rosto e em reflexo o jogou para longe.

A criatura pequena atravessou o corredor pelos ares e se chocou na parede do outro lado. Como se fosse o chão, Koza grudou na madeira como se estivesse de pé na parede.

De imediato, Goro sacou a sua arma, seu revólver de Sathsai que emitia um brilho antes mesmo de ser usado, apontou para a criatura exposta como um alvo pendurado na parede. Colth arregalou os olhos e previu o pior, prontamente se colocou em meio a linha de tiro. Levantou as mãos algemadas invocando o seu amparo e o bom senso do outro. Fechou os olhos esperando o pior enquanto suplicava:

— Espera, espera. Não atira.

— Mas o quê?...

— Esse é o sapo falante de quem eu falei — explicou Colth com apenas um olho aberto em cautela enquanto na mira da arma brilhante. — Koza.

— Então, existe mesmo um sapo falante? — Goro baixou a arma após se perguntar espantado.

— Quem vocês estão chamando de sapo? — reclamou Koza com os olhos bravios. — Querem levar uma surra? Eu deveria dar uma surra em vocês. Desse modo, aprenderiam a se comportar. Não ficariam com essas caras de bobos e aprenderiam a agir quando eu dou alguma ordem, estou falando de você, Colth... Eu disse para fugir, seu idiota...

— E como fala — sussurrou Goro ao ter sua primeira impressão sobre a desconhecida criatura.

— Desculpa, Koza — O rapaz em meio a discussão tentava se explicar —, mas o Goro não é inimigo.

— Goro? Não é esse o babaca de quem você me falou?

— Babaca? — perguntou o insultado de forma incrédula.

— Convenhamos, Goro, você estava sendo bem babaca, principalmente no exame.

— Eu já disse que não podia levantar suspeitas. Além disso, você fez coisa bem pior.

— O que foi que ele fez? — perguntou Koza curioso.

— Fez minha namorada terminar comigo de propósito.

— Você fez isso, garoto?

Colth recebeu os olhares julgadores de ambos, se esquivou apressadamente:

— Eu só falei para ela a verdade, que o garanhão aí estava namorando duas ao mesmo tempo, e isso foi quando éramos crianças.

— Criança ou não, a pobre Lara nunca vai se recuperar do machucado em seu coração — respondeu Goro com o olhar perdido.

— Quem parece que não se recuperou foi você... Ah, não é hora para isso, tá legal? — Colth sacudiu a cabeça com a mudança de ares. Os outros dois concordaram. — Goro, você disse algo sobre um porão, é lá que a Celina está?

— Tem uma sala no porão que o Tolson utiliza para os seus “experimentos”.

— Então, foi para lá que levaram ela? — perguntou Koza interrompendo a conversa.

Colth estranhou:

— Espera, Koza, não é para você estar com a Celina? — Tentou esclarecer sua dúvida enquanto Goro utilizava de suas chaves para abrir a algema e livrar o amigo dos grilhões.

— Eu deveria, mas a garota deixou a bolsa para trás antes de entrar no porão.

Agora que Colth estava com as mãos livres, pôde esbravejar gesticulando:

— Eu não acredito, você tinha que ter ficado junto a ela. E por que ela não usou a magia de Tera?

— Idiota, você não prestou atenção no que conversamos mais cedo? — Koza retrucou do seu habitual jeito. — Celina não pode usar a magia dela, ou vai ser rastreada imediatamente. Esqueceu o que aconteceu com a região Norte depois dela te salvar com a magia. Você é tão impulsivo, ou talvez seja só idiota mesmo.

Colth suspirou como uma criança levando uma bronca, aborreceu-se apertando os punhos.

— Espera aí. Do que vocês estão falando? — Dessa vez Goro é quem interrompia o assunto. — Magia?

— Ah, a magia te surpreende? — Colth esbravejou coberto de sarcasmo. — Tem um sapo falante me dando um sermão, e a magia é que te espanta?

— Eu já disse que não sou um sapo...

— Se não é um sapo, o que você é? — Goro destacou sua dúvida.

— Não é óbvio? Eu sou...

— Ahhh!!! — O grito de dor veio de longe e interrompeu qualquer discussão.

Sem poder ser reconhecido como pertencente a alguém, Colth supôs o pior sobre o berro, retirou a sua adaga do cinto e se preparou:

— Droga, temos que ir.

                Concordaram sem contestações. Colth voltou a avançar seus passos para o fim do corredor. Dessa vez era acompanhado de Koza que tomou o seu ombro como modo de transporte, além dele, Goro também fazia questão de mostrar o caminho enquanto portando a sua arma de Sathsai:

— Final do corredor, atrás da estante de livros.

Como dito, no final do cômodo, uma parede com um relógio carrilhão roubava a atenção, mas o que era apontado pelo ponteiro dos minutos ao seu lado é o que importava. Uma estante repleta de livros costurados em capa dura.

— Não tem nada aqui? — estranhou Colth.

Antes que o rapaz afobada reclamasse ainda mais, Goro colocou sua mão sobre a madeira envelhecida da prateleira e, com a facilidade estabelecida pelas roldanas que corriam no trilho entre o chão e a estante, empurrou-a sem resistência.

Uma passagem se revelou, uma porta escondida que se abriu e expôs uma escada em degraus de pedra que descia para a escuridão do porão.

Colth não deu tempo nem para a sua própria surpresa ao ver um mecanismo tão aprimorado em uma casa do bairro residencial.

— Vamos...

— Espera — Goro interrompeu a pressa de Colth com a mão sobre o seu peito. — Geralmente sempre tem alguns oficiais fazendo a guarda da residência. É estranho não ter ninguém na casa. Quer dizer, na superfície da casa.

Colth entendeu de imediato onde o amigo queria chegar, sussurrou olhando para o profundo breu da escada:

— Acha que estão todos lá embaixo?

— Provavelmente. Foi assim na noite passada.

Colth engoliu seco e, no momento em que pensou dar um passo para trás, teve sua atenção levada ao relógio no final do corredor, lembrou-se do porquê estava ali. Arqueou as sobrancelhas mostrando a sua confiança recobrada:

— Não importa.

Avançou descendo o primeiro degrau, foram sete no total. O silêncio da superfície parecia barulhento quando comparado ao do subsolo.

A escada acabou e, após um pequeno corredor escuro, chegaram à sala principal do porão.

— Caramba... — sussurrou Colth abismado. Aquilo não podia ser chamado de porão. — Isso é enorme.

Era um pequeno anfiteatro, bem ali sob as ruas da região central da Capital, uma construção inimaginável para uma casa comum. Bem, aquela não era uma casa comum. Os dois rapazes e o anfíbio se encontravam no topo do que poderia ser descrito como uma arquibancada de pedra.

Ao redor do meio círculo de dois lances de assentos, que podiam suportar algumas dúzias de espectadores entre pilastras que sustentavam a superfície, lanternas iluminavam as paredes e o teto de rocha sólida.

Mais abaixo, o palco, ou talvez o altar, era enfeitado por candelabros dourados e tomado por cinco homens de costas que pareciam orar frente a uma mesa de madeira com um único cálice dourado sobre ela, em suas extremidades, correntes e uma espécie de carretel grande de madeira tomavam os cuidados dos únicos indivíduos dali.

No fundo do altar, uma porta cheia de entornos chamava a atenção. Com um sol desenhado em um belo escudo dourado pendurado sobre a porta, era impossível não notar.

— É ali — falou baixo Goro, apontando para a porta enfeitada no nível inferior enquanto se escondiam junto dos parceiros agachados atrás de uma das pilastras sem serem notados.

— Mas que merda eles estão fazendo? — perguntou Colth observando a movimentação no altar.

Os homens continuavam em oração, e os intrusos, ao topo dos degraus de pedra que serviam como assentos, mantinham-se discretos sem serem vistos.

Repentinamente, a porta no fundo da sala rangeu, abriu-se devagar com todos os olhos da sala esperando pelo que estava por vir.

Da abertura que se mostrou escura e misteriosa, dois homens em sobretudos inteiramente brancos adentraram ao salão.  Ambos se ajudavam para carregar uma terceira pessoa, uma garota.

— C... — Colth quase gritou o nome dela, mas foi imediatamente interrompido por Goro.

O rapaz tapou a boca do amigo com ambas as mãos. E, por muito pouco, Colth não entregou as suas posições, se acalmou momentaneamente.

Calados, mantiveram-se observantes à movimentação que ocorria no altar. Os homens de branco levaram Celina até a mesa, quase desacordada, a colocaram deitada sobre a superfície da mesa de modo sútil. A garota não resistiu ou evitou, parecia completamente apática a situação.

— O que ela está fazendo? — perguntou Colth não compreendendo a passividade da garota.

— A drogaram. — respondeu Goro com olhos fixos na situação. — Extrato de relva roxa.

Colth não deixou de estranhar o conhecimento de seu aliado, sabia de muitos detalhes e isso não parecia ser uma virtude. Voltou sua atenção para o altar.

Uma última pessoa passou pela porta enfeitada, um velho com roupas tão brancas quanto a dos outros dois, cabelos grisalhos e rugas por toda face que evidenciavam a sua idade avançada. Adentrou com ambas as mãos levantadas sobre a cabeça e vestiu o seu capuz com detalhes costurados em fios de ouro. Se aproximou da mesa:

— Terminem de preparar o expurgar — ordenou como líder para os outros sete homens ao redor da mesa.

— O que estão fazendo? — perguntou Colth impaciente tentando manter a frieza.

— Aquele é o Tolson, o ministro. É como um ritual — respondeu Goro ao lado do amigo. — Vão ilumina-la enquanto bebem aquela droga que está no cálice para sentirem que estão em outro mundo.

— iluminar?

— “Resplendor e Escuridão”, a lenda. Há quem ache que a deusa Lux virá para Tera em algum momento e julgará todos mediante as suas vontades. Obviamente, Resplendor jamais aceitaria a escuridão que os mortais carregam consigo.

— O que quer dizer com “escuridão que os mortais carregam”?

— Basicamente, tudo o que os seguidores de Lux não gostam, isso vai de pessoa para pessoa. Às vezes, matar ou cometer crimes é carregar a escuridão. Algumas vezes, se aproveitar dos outros é carregar a escuridão. E tantas outras vezes, apenas ser de fora do império, um estrangeiro de outra cidade, é carregar a escuridão, talvez esse seja o caso, principalmente se for uma garota bem apessoada. No final das contas, é só uma justificativa para julgar os outros enquanto ficam chapados. Já para o Tolson, é uma desculpa para causar dor e acalmar os seus desejos mais perversos.

— Dor? — Colth hesitante.

— Ahhh! — O grito veio de baixo. Celina parecia ter recuperado parte de sua compreensão.

Com os membros acorrentados e fixados aos carreteis por grilhões nas extremidades da mesa, a garota era submetida a dor provocado pelo esticar das correntes em diferentes direções.

— Mas que... — Colth levantou-se espantado com a crueldade, imediatamente foi interrompido novamente.

Dessa vez, Goro circundou um de seus braços ao entorno do pescoço do rapaz e o puxou com força para paralisa-lo. Colth debateu-se violentamente tentando a soltura, não conseguiu e, enquanto persistia, reclamou:

— O que está fazendo?... — falou baixo para não ser escutado pelos homens no altar, mas a sua ferocidade podia ser sentida no tom impetuoso que rangia em sua garganta apertada pelo braço de Goro.

— Não... — segurou com mais força o outro — Para com isso.

— Ahhh! — Celina mantinha os seus gritos de dor enquanto as correntes eram enroladas devagar nos carreteis pelos homens, seus braços eram afastados lentamente de suas pernas através da máquina de tortura pouco a pouco.

— Vejam, meus irmãos! A dor expurga a escuridão! — Tolson proclamou com um sorriso asqueroso no rosto enquanto os outros homens o vislumbrava.

— Me solta, seu traidor — disse Colth rangendo os dentes e bracejando a tentativa de se livrar do rapaz que, as suas costas, lhe segurava de modo a aprisiona-lo e impedir sua fuga. — É por isso que sabe tanto, está com eles, não está?

— Não. Seu idiota, é claro que não. Eu estava em um ritual desses ontem.

— Você...

— Dei um belo soco em um dos caras de branco após Richert morrer de exaustão nessa máquina de tortura. Foi aí que eu fugi, no mínimo seria expulso do ministério da Defesa, provavelmente morto. Por isso pegaria aquele trem para o mais longe possível daqui, mas você me deu uma ideia melhor.

— Ideia?

— Acabar com todos aqui. Mas para isso, precisamos esperar um pouco, eles vão beber aquela maldita droga depois que a garota desmaiar de dor e então...

— Você ficou maluco? — Colth renegou aquelas palavras.

—Ahhh! — a garota se contorcia sobre a mesa de tortura.

— Me solta.

— Eu disse para esperar — Goro continuava a segurar o amigo com todas as suas forças. — São oito contra dois, nunca vamos vencer uma luta direta. Ainda mais tendo você tão impaciente. Eu te disse que não poderia ser altruísta aqui.

— Você está matando a Celina desse jeito e... Me solta.

— Eu já disse, é mais provável sobrevivermos em um ataque sorrateiro após eles beberem da droga. Eu estou aumentando as chances de todos nós permanecermos vivos. O sapo tinha razão, você é muito impulsivo.

— Ele não é... Espera. — Colth esperou ouvir uma frase que já havia se cansado de escutar vinda da criatura que sempre se irritara com o termo "sapo" para si, mas ela não veio. — Koza, cadê ele? — deu uma trégua na sua luta.

— Merda... — sussurrou Goro ao observar o anfíbio pronto para atacar um dos homens que girava o carretel e as correntes enrroladas aos membros de Celina.

Koza saltou na direção do orador desavisado sobre o altar e gritou em desabafo agressor:

— Tire as mãos dela!



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