Volume 1
Capítulo 46: A Caminho do Inferno
— Mansão Tolson? — perguntou Colth no banco de passageiro do belo veículo que acelerava em direção a região central da Capital. — Tem certeza de que a Celina foi levada para lá?
— Pode apostar que sim. — respondeu Goro com convicção. Ao volante, ele mantinha os seus olhos nas ruas movimentadas por carroças, carruagem e alguns poucos automóveis bem menos luxuosos do que o pilotado. — Tolson é um tradicionalista endinheirado da Capital. Um pervertido nojento que usa do seu poder político para suprir seus desejos mais grotescos.
Colth não conseguiu evitar de franzir a testa e mostrar um olhar alarmado sobre o motorista. Expôs sua dúvida sem pensar duas vezes:
— E como você sabe disso?
— Me espanta você não saber. Tolson é o ministro da Defesa. — Goro suspirou incomodado. — Ele não exerce a função de verdade, apenas comprou o cargo para sentir a sensação do poder em suas mãos.
— O que ele tem de tão ruim? Além de ser um político, é claro.
— Ele é apenas um verme covarde. Do tipo que viaja pelas outras cidades comprando crianças e mulheres para fazê-las os seus brinquedos e... Ah. — suspirou mais uma vez. — Acredite, o pior tipo de pessoa.
— Entendi. — Colth concluiu. Não precisava de mais, só de ver o rosto enojado do amigo, já havia compreendido. — Você disse que esse tal Tolson viaja por aí. Como pode ter certeza de que ele está na mansão?
— Noite passada ele estava lá e, sabendo que o Tolson dá recompensas para os soldados mais rasos da Defesa que lhe forneçam material para as suas loucuras, é fácil de supor que aqueles lá na estação de passageiros que capturaram a sua amiga estão com pressa para entrega-la a ele.
— A Celina... — Interrompeu-se Colth. Engoliu seco imaginando a garota em uma situação dessas, mas logo fez questão de abandonar o pensamento antes que lhe afligisse. Continuou: — Foi por isso que você estava na estação de passageiros, para pegar o trem para fora da Capital? Por conta do que aconteceu ontem à noite?
— É. — Foi sincero a contra gosto, pensou em virar o rosto, mas não o fez. Goro manteve o pé no acelerador adentrando ao bairro mais nobre da Capital, a região central. — Foi um deslize, não deveria ter tentado fugir. Não depois do que falei para você.
— Isso foi o mais perto de um pedido de desculpas que já vi sair da sua boca. O que aconteceu para te fazer querer fugir?
— Lembra das pessoas que estavam comigo quando encontrei você na região rural de Tekai?
— A mulher séria de cabelos vermelhos e o paladino sorridente, não poderia esquecer, eles salvaram minha vida. Aliás, você estava agindo bem estranho aquele dia.
— Eu achava que um deles, um dos meus parceiros de divisão, Richert ou Rose, fossem algum agente ligado diretamente a guardiã de vermelho, por isso não podia deixar que levantassem suspeitas sobre você ou sobre meu verdadeiro objetivo ao entrar para o ministério da Defesa.
— Por isso estava sendo tão babaca? Não deve ter sido tão difícil para você.
— O problema foi que eu achava que tinha alguém naquele grupo, alguém naquele dia que estivesse atrás de um alvo em particular. No inicio achei que eu, ou você, fossemos o alvo, achei que tinham descoberto meu objetivo de me infiltrar no reinado de Albores. Afinal, me sentia sendo manipulado, as nossas ordens sempre nos mandavam para os lugares menos naturais para um esquadrão anti-criaturas. Nossas diretrizes recebidas sempre nos afastavam dos rastros das criaturas sombrias, era como se alguém nos quisesse longe delas.
— E por isso achou que um dos seus colegas fosse um agente ligado a guardiã de vermelho? — perguntou Colth assistindo os prédios luxuosos se aproximarem pelo para-brisas. Estavam prestes a chegarem ao seu destino.
— Sim, achei que estavam tentando me mandar para uma emboscada, algum lugar onde pudessem me silenciar sem que deixassem pistas, eu sei lá.
— Mas...
— Mas nenhum dos meus dois parceiros de divisão era um agente da guardiã vermelha e, muito menos eu, era o alvo das ordens descabidas recebidas por nós. Descobri isso da pior forma.
Colth não escondeu o seu estranhar:
— Descobriu como, então?
Goro recebeu a pergunta sem mudar a sua expressão. Silenciou-se de modo que pareceu não ter escutado a pergunta. Colth tinha certeza de que o rapaz ao volante tinha ouvido suas palavras, mesmo assim decidiu repetir a pergunta:
— G... — Foi interrompido pelo repentino frear brusco do veículo.
Goro pisou no pedal do freio de uma só vez e fez com que o carro estacionasse sobre o meio fio de uma bela rua residencial calma e arborizada. Colth se surpreendeu e por pouco não acertou a testa no painel de madeira do veículo. Enfim, estavam no centro requintado da Capital.
— Chegamos. — Colocou um ponto final no assunto e na viagem.
— Chegamos? — sussurrou Colth observando o prédio luxuoso no final da rua ao se recuperar da freada brusca.
Aquele casarão amarelado de dois andares e grandes janelas reluzentes era, sem dúvidas, o destino. Ali, em meio a rua secundaria de pouco movimento do bairro residencial, era possível ver o palácio real tomando parte do horizonte e do céu azul ao fundo da paisagem.
— Colth, você se lembra daquele dia na colina oeste de Toesane? — perguntou Goro desligando o motor do carro e acendendo um cigarro solitário.
— Acho que sim.
— Nós falamos sobre os nossos sonhos — sussurrou evidenciando o tom saudosista. — Thomas tinha acabado de morrer e deixar parte da administração de Toesane para a minha mãe. — Expeliu a primeira fumaça do tabaco pela janela do carro observando o lado de fora. — Sabe, ele era uma pessoa incrível, guiava Toesane, nos treinava e ainda arrumava tempo para ser um bom pai para a Agnes e um bom marido para a sua irmã.
— ... — Colth se calou ainda não entendo o motivo daquelas palavras.
— Enquanto Thomas nos treinava, durante aqueles longos dias, eu sempre vencia você em tudo. Eu era mais rápido, mais forte, tinha uma mira melhor, lutava melhor e era mais inteligente.
Colth manteve-se calado, apenas escutava. Aquelas palavras seriam comuns para Goro se fossem em um tom superior e esnobe de sempre, mas dessa vez o rapaz parecia soturno enquanto fumava o seu cigarro e observava as folhas secas serem carregadas pelo vento na rua tranquila. Ele continuou:
— Mesmo sendo superior a você em quase todos os aspectos, tem um que parece que nunca vou conseguir te superar. Eu demorei para reconhecer isso como uma competência sua e, quando reconheci, odiei por muito tempo, talvez odeie até agora, mas foi isso que me fez vir junto com você hoje. Enfim, o fato é, você é realmente um altruísta como poucos. Talvez se importe mais com os outros, do que você mesmo.
— ... — Confuso, Colth permaneceu.
Goro aspirou o fumo mais uma vez antes de se virar com os olhos certeiros sobre Colth enquanto balançava a cabeça negativamente, como se dissesse um sonoro “esquece o que eu falei”. Talvez arrependido, mudou o tom e retornou ao assunto anterior:
— Ontem eu descobri que aquelas ordens, aparentemente sem noção, vindas da alta cúpula do ministério da Defesa para os anti-criaturas, miravam um único objetivo, facilitar a captura de uma garota, a captura da garota que andava com você naquele dia em Tekai.
— Celina — complementou Colth pensativo. Era óbvio que Celina era o objetivo, afinal ela era a guardiã de Tera e tudo aquilo se resumia a isso, não se surpreendeu nenhum pouco.
— Sim, mas isso não é tudo.
— O que quer dizer?
— Eu tinha certeza que alguém, naquele dia, era um agente da guardiã vermelha. Não ficamos, eu e minha divisão, rodando em círculos pelas florestas de Tekai à toa, havia alguém por trás disso, tinha certeza. Mas foi nisso que errei. Não era “alguém”, era alguma “coisa”. As criaturas sombrias que te atacaram naquele dia, Colth. Aqueles Sirveres, os três lobos negros, eram os agentes da guardiã vermelha.
— ...
— Eu sei, parece loucura. Como se uma criatura sombria pudesse ser domesticada ou treinada como um vira lata de rua. Mas é a única possibilidade.
— Índigo — sussurrou Colth sem ser ouvido. Lembrou-se do homem de tatuagens azuis que encontrara na região Norte da Capital, o homem que controlava as criaturas sombrias. Se sentiu idiota por não ter pensado nisso antes.
— Deve estar achando que estou falando bobagens. — Goro continuou após mais uma tragada em seu cigarro fedendo a alcatrão. — Mas eu tenho certeza do que estou falando. Ouvi do próprio Coronel Helm ontem à noite...
— Helm? O que ele disse?
— Bom, nós entregamos os cadáveres dos Sirveres, Richert achou que ganharíamos alguma recompensa por eles, idiota. — Se puniu olhando para os céus, continuou em seguida: — Fomos repreendidos por termos feito nosso trabalho, destruímos as criaturas sombrias. Logo entendi que elas eram as armas “secretas” do ministério da Defesa, na verdade, armas dessa maldita guardiã de vermelho.
— É claro, os Sirveres estavam à procura da Celina, como fui ingênuo.
— Você sabia?
— É, mais ou menos. — Desconversou Colth. — Mas o que aconteceu com você e os anti-sombras?
— Bom, Helm me declarou inocente, afinal sou um novato na divisão, apenas levaria uma punição leve enquanto Richert e Rose levariam a culpa de fato. Helm deixou que Tolson tratasse dessas punições. Na verdade, Tolson ordenou que ele ficasse responsável por essa parte. A única recompensa que ganhamos por fazermos nosso trabalho foi a pura insanidade de um homem.
Goro respirou fundo, dessa vez sem tragar. Apenas tentou tomar coragem para o que estava prestes a dizer. Concluiu:
— A condenação deles foi a morte. E, se isso não bastasse, a minha punição “leve” foi aplicar a pena. — Os olhos de Goro miraram o rosto espantado de Colth. Refletiram a angústia e o pesar dele sem precedentes: — Eu matei os meus colegas, Colth.
— ... — O amigo no banco do passageiro ficou sem palavras.
— Mas essa era a única saída, não era? — Tentou se justificar, aos poucos seus olhos se umedeciam e as palavras ficavam mais pesadas. — Se eu não fizesse, também estaria morto. Não poderia cumprir com o meu objetivo, além disso, Richert e Rose também eram de Albores, eles mereceram pelo que fizeram com nosso povo, certo?
— Goro...
— Eu sei, merda. Eu sou um completo miserável. — Desistente, pousou sua testa sobre a parte superior do volante. — Você nunca faria isso, você se mataria, Colth, mas não faria mal algum a um amigo, não é? Do que adianta ser melhor em tudo, ser o mais forte, se eu não consigo salvar aqueles que estão ao meu lado. Foi assim com Toesane, foi assim com Richert e Rose, foi assim com você, Colth.
— Não é verdade, Goro. Você acabou de me salvar, esqueceu?
— Foi só uma coincidência. Uma maldita coincidência, se não fosse isso, eu estaria em um trem, covardemente me afastando da capital. Mas sendo sincero, não importa mais, eu só quero acabar com isso. — Se recompôs e voltou ao seu equilíbrio máximo. Elevou o risco: — Dentro daquela mansão deve ter uma dúzia de soldados, não sairemos de lá do mesmo jeito que entraremos. Não vai ser hora para ser altruísta, entendeu? Tem certeza de que quer fazer isso?
Colth engoliu seco ainda pensando sobre as palavras pesadas do colega. Decidiu por superar aquilo uma vez que Goro fingiu não ser afetado pelos sentimentos zelosos. Hesitou por menos de um segundo, balançou a cabeça em positivo com o olhar decidido.
Goro não se surpreendeu, era exatamente a resposta que esperava. “Altruísta” ele pensou, comprovava os seus dizeres sobre. Tinha certeza de que o amigo faria aquilo pelos outros envolvidos e não só por ele mesmo, estava certo.
— Ótimo. — Concluiu o anti-criaturas colocando um ponto final em seus sentimentos. Atirou o cigarro para fora pela janela, lavou o rosto com a palma da mão e, com a mesma mão, abriu o porta-luvas no painel de madeira do veículo, retirou de dentro do compartimento uma arma que se assemelhava a um revólver.
Colth observava o colega concentrado sobre a arma que não parecia com as que já havia visto, ficou curioso e, antes mesmo de poder realizar a pergunta, recebeu a resposta de Goro ainda fugitivo de seus pensamentos e lembranças:
— Revólver de Sathsai — respondeu, fungou. — E você, está armado?
— Eu tenho minha adaga. — Colth mostrou a arma branca que carregava no cinto.
— Boa escolha, você sempre foi menos pior com armas curtas — disse Goro em tom ambíguo.
— Isso não pareceu um elogio... — resmungou o rapaz com a adaga de Sathsai em mãos.
— Não foi. Só não morra lá, você tem alguém para salvar.
— Obrigado pelo conselho — rebateu com ironia. — E como faremos para entrar na mansão?
— Vou entrar pela porta da frente, fingindo levar um prisioneiro como mercadoria para o Tolson. — Goro retirou uma algema do porta-luvas e a mostrou para corroborar com seu plano. — Como sou da Defesa, não vão desconfiar.
— Boa ideia — aprovou Colth. — E eu?
Goro balançou a cabeça negativamente de modo superior como se a resposta fosse óbvia até para uma criança, foi sua única reação.
— Não... — voltou a resmungar o rapaz no banco de passageiro. — Eu não vou...
— Coloca a algema, Colth.
Jogou o objeto sobre o colo do amigo e abriu a porta do carro de saída.
— Droga.