Volume 1
Capítulo 33: O Caminho do Sonhador
— E então? — perguntou a mulher sentada à mesa para o homem de pé ao canto, observando as grandes janelas da sala luxuosa.
— O seu emissário já está acompanhando o Colth e a Celina — respondeu Hueh com a sua vestimenta desleixada. Era óbvio que suas roupas casuais também o serviam como pijama. Um simples lençol sobre o seu corpo imitando um roupão de mal gosto era suficiente para o deselegante.
— Me diz, como pretende evitar que o rapaz surte ao se lembrar do que ele mesmo desejou esquecer?
— Não pretendo fazê-lo lembrar — respondeu Hueh se sentando à mesa, frente da bela mulher bem vestida com a saia de seu vestido azul claro tremulando na mesma frequência ao das cortinas. O homem afiou os olhos: — Desse modo, ele estará muito mais motivado.
— Que crueldade. Sem dúvidas, você é um dos mais ardilosos que eu conheço. Seu filho sentiria orgulho.
— Que seja. Não me venha com essa. Aquele tormento não é meu filho — retrucou desgostoso.
— Filho feio não tem pai, não é mesmo? — caçoou ela.
— E você? Se importando com um mero mortal. Não é o que se espera da deusa de Tera.
— É obvio, que eu não me importo. Tsc. Só estou preocupada, no caso das suas memórias voltarem.
— Não deveria se preocupar — Hueh se levantou e se aproximou da deusa com a gentileza de um encantador. Convidou sua própria mão ao rosto dela, e acariciou sua delicada face até encontrar as orelhas da mulher entre os seus dedos. — Você tem a última jogada.
— Eu já coloquei a minha última carta na mesa, esqueceu?
— Não — sussurrou ele. — Não, quando você tem a possibilidade de virar a mesa e recomeçar o jogo. — Sorriu com o canto da boca.
***
O compartimento de carga da carruagem chacoalhava mediante aos buracos da estrada de terra batida que a dupla de cavalos desbravava, eram guiados por Liana no posto de cocheira do veículo que seguia para o centro urbano.
— Essa deve ser a pior carruagem que eu já estive — reclamou Colth, em voz baixa para Celina que o acompanhava no interior do compartimento de carga enquanto disputavam espaço com as mercadorias junto a eles.
— Eu escutei isso! — Liana se fez ouvir no exterior dianteiro do veículo.
— Você, realmente, consegue vender tudo isso? — perguntou o rapaz enquanto observava as caixas, sacos, frascos, utensílios e bugigangas na velha carruagem de carga.
— Você se surpreenderia como as pessoas, de dentro e de fora dos muros da Capital, são dependentes umas das outras — disse a cocheira ao lado do garoto Jorge se aproveitando da pequena janela entre o compartimento de carga e a dianteira da carruagem onde estavam.
— A é? Tipo o quê?
— Tipo... — A comerciante pensava e procurava por uma exemplificação enquanto mantinha as rédeas sobre os cavalos, assim que colocou os olhos em Jorge, ela achou. — Tipo esse bolinho que o garoto está comendo.
Liana fez questão de levar Jorge na dianteira da carruagem, uma posição bem mais confortável do que no interior dela, onde, Colth e Celina, se apertavam desajeitados sentados sobres as caixas de madeira contendo a mercadoria. O garoto ainda ganhou um pequeno bolo de frutas da comerciante e parecia estar amando aquilo.
— Então, você vende esses bolinhos? Eu e a Celina poderíamos ganhar um também, né?
— Eu não vendo bolinhos. Eu vendo os ingredientes. Você sabe como é difícil de conseguir açúcar no interior dos muros? E não. Não vou dar nenhum bolinho para vocês dois. Já estou fazendo muito, levando-os para o centro de Tekai.
— Tia Liana, o Colth prometeu que vai me fazer um bolo bem grande, com muito chantily — disse o garoto com um sorriso lambuzado de geleia de amora.
— Droga. Eu já tinha até esquecido disso... — sussurrou Colth.
— Sério? Isso é ótimo, Jorge. — Liana respondeu com um sorriso brilhante e amigável ao garoto, em seguida, se virou para a pequena janela da carruagem às suas costas e mudou o seu tom e feição completamente, um bem mais agressivo e hostil: — Nem pense em descumprir essa promessa. Você me ouviu, Colth?
— Isso nem passou pela minha cabeça — retrucou ele desanimado.
Celina se levantou da caixa de madeira onde estava sentada e se esgueirou pelas várias mercadorias do compartimento de carga enquanto se equilibrava ao andar da carruagem. Colth não deu importância àquilo, continuou com o seu assunto à cocheira:
— Será que no centro de Tekai, há uma padaria ou algo parecido que façam bolos?
— Nem pense nisso. Você disse que ia FAZER o bolo. Não é isso, Jorge? — Liana teve a sua confirmação a partir de um aceno positivo do garoto. — Então, terá que se esforçar para isso. A parte do esforço está implícita na promessa.
— Nossa... — surpreendeu-se Colth com as palavras e o tom da comerciante.
— Além disso, você pode comprar os ingredientes comigo. Tenho açúcar, farinha e outras coisas que vai precisar.
— O quê!? — Colth levantou a cabeça furiosamente e se focou na janela. — Você só está querendo vender as suas mercadorias fuleiras forçadamente para mim. Você é uma aproveitadora, é isso o que você é!
— Fuleira? Você se esqueceu de onde está, nesse exato momento? — retrucou em tom serenamente ameaçador. — Se quiser desembarcar, aqui no meio da floresta, estará fazendo um favor para mim.
— Eu ficarei feliz em comprar os ingredientes com você — desistiu ele de qualquer contraposição. Sorriu com as suas palavras em tom gentil e cordial disfarçando o seu sentimento em desafronta. Ao se virar, viu a sua colega ocupada com algo entre as mercadorias. — O que você está fazendo, Celina?
— Eu vi uma coisa. — A garota se abaixou em meio aos sacos de trigo e voltou com algo em mãos. — Então, era só isso?
Ela se virou para Colth e mostrou o que havia encontrado, entre as suas delicadas mãos, um sapo esverdeado se acomodava sem se importar.
— Ahhh! — Colth se jogou para trás e desviou o rosto em meio ao grito assustado. — Que coisa nojenta! Tira isso daqui.
— Por que você está tão assustado? — perguntou Celina inclinando a cabeça em companhia ao anfíbio.
— Quanto barulho por uma coisinha. — Liana revirou os olhos na dianteira do veículo. — Ele deve ter entrado quando eu passei pelos pântanos, mais cedo.
— Ele é bem fofinho, não é, Celina? — Jorge grudou os seus olhos na pequena janela enquanto sorria para dentro do compartimento de carga observante ao animal.
— Fo... finho — repetiu Celina pensativa.
— Que fofinho que nada, moleque — Colth destoou da reação do garoto. — Isso aí deve estar cheio de doenças e pragas. Não deixe ele te morder, Celina.
— O Fofinho parece estar bem. Ele não parece ter pragas ou estar doente — disse a garota serena observando bem de perto o sapo que não se importava nem um pouco com a comoção sobre ele.
— O “Fofinho”? Isso não é um nome. E você não deve dar um nome para uma coisa dessas, sua maluca. Joga isso pela janela, agora!
— Mas se eu o deixar aqui, ele vai acabar morrendo. Aqui não é o seu habitat natural.
— E desde quando você se importa com isso?
— Essa espécie de sapo não se adapta bem a ambientes secos, ele prefere bem mais lugares com uma elevada umidade. — A garota sentou de volta sobre a caixa que estava anteriormente, dessa vez com o sapo sobre as suas pernas lhe fazendo companhia.
— Você nem me ouviu, não é? — Colth suspirou em nova desistência.
— Uau! — o garotinho no exterior ficou impressionado. — Você sabe muito sobre sapos, Celina.
— Eu estudei por bastante tempo. Os meus livros preferidos tratavam sobre biologia.
— Isso é muito legal. O que mais você sabe?
— Um pouco de tudo. Plantas, aves, mamíferos... — Celina continuou a conversa com Jorge enquanto Colth se sentia completamente isolado em meio aos dois.
Não era um isolado ruim. Do lado de fora da conversa, o rapaz pôde pensar sobre aquilo. Não sobre o assunto da conversa, mas o que ela representava:
“Lembro que quando eu conheci essa garota, ela me observava como se eu fosse um simples objeto ou ferramenta que usaria para passar no exame do ministério da Defesa. E agora, ela se importa até com um animal perdido desses e, ainda mais surpreendente, fez amizade com uma criança.” Pensou ele enquanto observava a garota acariciando as costas do sapo e discursava sobre os seus conhecimentos.
Colth não conseguiu conter um leve sorriso ao ver, o que parecia felicidade em meio a um olhar sério e quase sem sentimento no rosto dela.
— Por que vocês estão indo para o centro de Tekai, mesmo? — A comerciante se intrometia na conversa.
— Nós estamos procurando por alguém, um amigo. — Colth respondeu com sinceridade, mas manteve os detalhes bem distantes.
— Perguntem para mim, eu sou uma comerciante, visito muitos lugares e conheço muita gente, talvez eu possa ajudar a encontra-lo.
— Eu agradeço a sua intenção, mas acho que você não o conhece. Ele deve estar na Capital, então vamos ter que voltar para lá.
— Isso tem a ver com a destruição da passagem no muro? — indagou Liana.
— O quê?
— Parece um pouco estanho para mim. Primeiro vocês destroem a minha passagem no muro e, depois, querem voltar para a Capital. Isso não faz muito sentido. Vocês não são do império, né?
— Não. Claro que não. — Colth se apressou para desfazer um possível mal entendido.
— Relaxa. Eu estou só zombando. — A comerciante voltou a deixar o ambiente mais leve. — Vocês não parecem nada com os homens do império. E eles não se importam nem um pouco com Tekai. Talvez, com nenhuma cidade do exterior dos muros.
— Parece que só eu demorei para perceber isso. — Suspirou Colth. — De qualquer forma, eles se importam o bastante, para impedir que os de fora entrem ou saiam pelos portões dos muros. Por conta disso, não temos nem onde passar a noite.
— Isso é verdade. Bom, vocês estão com sorte. Eu conheço um lugar onde poderão descansar.
— Sério? Isso seria ótimo, Liana... — Colth definiu a sua voz em um tom sério e respeitoso. — Eu agradeço muito o que está fazendo por nós. De verdade.
— Hum? — A mulher pensou por um breve segundo após ter suas bochechas coradas. — Pode parar! É só por uma noite. E, não vão achando que eu vou perdoar os prejuízos que me fizeram. Eu ainda estou pensando em como vocês vão me pagar.
— Você é mesmo uma pessoa obstinada... — murmurou ele.
— A capital deve estar mesmo um caos, para vocês deixarem as suas vidas para trás desse jeito — proferiu a comerciante mudando de assunto.
— Não, você entendeu errado. Eu e a Celina somos de fora do muro também. Eu de Toesane, e ela de Rasuey.
— Ah, entendo — respondeu Liana desviando o olhar. — Eu sinto muito pela sua cidade. De qualquer forma, acho que Tekai é um bom lugar para recomeçar.
— Hã? Eu não pretendo recomeçar nada em Tekai. Só estou resolvendo algo antes de voltar para minha cidade — esclareceu Colth.
— Em Toesane? — estranhou Liana.
— Isso, tenho pessoas me esperando por lá.
— Sério? Desculpa, eu não achava que havia pessoas vivendo por lá ainda, mas de qualquer forma, boa sorte.
“Ela acha Toesane uma cidade tão horrível assim? É claro que é uma cidade pequena com vários problemas, mas esse comentário foi um pouco demais.” Pensou Colth franzindo a testa. Assumiu a defesa de sua cidade natal em seguida:
— O que quer dizer com isso? Escuta, Toesane não é tão ruim a ponto de... — Colth bem que tentou, mas foi interrompido pelo entusiasmo do garoto à frente.
— Olha! — gritou Jorge impressionado. Apontou para o grande vale frente à estrada.
No horizonte distante, era possível vislumbrar as linhas de perfil de uma cidade as margens de um largo rio retilíneo com diversas embarcações movimentando suas águas. Do outro lado da paisagem urbana, era visível a ferrovia rasgando os campos em direção à Capital sob o pôr do sol do céu alaranjado.
— E lá está, Tekai. Devemos chegar ao anoitecer — disse Liana enquanto os outros tinham os olhos cheios pela bela paisagem no horizonte se aproximando rápido.