Volume 1
Capítulo 32: Sentimentalista
— Tudo pronto para partirmos? — perguntou Richert, liderando o seu grupo de anti-criaturas.
— Sim, tudo certo. — respondeu Goro, prestes a montar em seu belo cavalo.
À beira da estrada, frente à propriedade abandonada, os três anti-criaturas estavam prestes a iniciar sua viagem, o restante, Colth, Celina e Jorge, apenas se limitava a assistir.
— Senhores e senhoras, camponeses. — O líder da tropa falava alto para os civis escutarem, ele já estava montado em seu cavalo e continuava com o tom e o sorriso superior. — Estamos partindo, cuidem-se e escondam-se caso um Sirveres, ou uma outra criatura sombria, apareça pelos arredores.
— Espera! — exclamou Colth.
O rapaz se aproximou dos três cavalos e fixou o seu olhar em Goro na posição superior.
— O que você quer? — indagou, nada amigável, o mais novo integrante daquela tropa.
— Pense no que eu te falei. E tome cuidado.
O tom sóbrio e sério de Colth, por um instante, tocou a consciência do seu ouvinte, em seguida, o rapaz se forçou a dar de ombros e guiou o seu cavalo para a estrada de terra batida sem dar uma resposta clara.
— Não se preocupe com o Goro. Nós protegeremos o seu amigo — concluiu Richert com o mesmo sorriso de antes. — Adeus.
Os três começaram a cavalgar lentamente pela estrada com o Sol às suas costas deixando a propriedade para trás. Richert mostrava-se orgulhoso com os olhos sobre os cadáveres das criaturas sombrias amarrados juntos as cargas que os cavalos carregavam, eram a prova da capacidade de sua equipe.
Assim que o bosque e a construção abandonada ficaram de fato para trás, Rose, a única mulher daquela divisão, percebeu Goro com olhares perdidos em pensativo.
— O que foi, novato? — perguntou ela em superioridade.
— Hã? — Goro se desprendeu de seus pensamentos. Ambos os cavalos se alinhavam em meio a estrada enquanto o cavalo de Richert guiava-os para o oeste.
— Por que ficou tão pensativo? O que aquele camponês falou de tão importante para você?
— Não foi nada. Nós só lembramos dos velhos tempos. — Goro desviou o olhar e, em seguida, se desviou da conversa. — Capitão Richert?
— Sim?
— Para onde vamos agora? — perguntou acelerando o trote do seu cavalo para alcançar o seu superior.
Rose não havia se dado por satisfeita, ficou desconfiada após receber uma resposta superficial daquelas, mas desistiu de ir além e apenas seguiu os dois companheiros de equipe sem expressar.
— Vamos levar esses cadáveres de Sirveres para a Capital, certeza que vão nos recompensar com uma promoção. — respondeu Richert enquanto imaginava uma festa de condecorações no seu futuro próximo.
— Entendo. — Goro voltou a ficar pensativo e, assim que se decidiu, tomou coragem e voltou a indagar o seu capitão: — Tivemos sorte de ficarmos perdidos. Se tivéssemos seguidos as instruções da missão, nunca encontraríamos esse grupo de Sirveres. Não acha um pouco estranho?
— O que quer dizer com isso?
— Não pense besteiras. — Rose entrou na conversa alinhando o seu cavalo aos demais, ela respondeu o que Richert não conseguiu nem entender.
— Não é uma simples besteira — retrucou Goro pensativo. — Tínhamos ordens expressas do general para seguirmos até Toesane, mas fomos em outra direção e acabamos parando aqui. Parece até que estavam evitando isso.
— Primeiro, não fomos em outra direção, estávamos apenas fazendo um simples desvio. — Richert dava as suas explicações ao tempo que as conjecturava. — E segundo, não faz sentido algum, querer manter os anti-criaturas longe das criaturas. Esse seria o pior general de todos.
— Tem razão, senhor. — disse Goro baixando a cabeça sem diminuir as suspeitas. — Mesmo assim, eu não entendo o porquê de nos mandarem para Toesane, uma terra arrasada.
— Vocês deveriam se focar mais em seus objetivos, ao invés de ficarem com conversa fiada — interrompeu Rose entediada. — Tanta desatenção. Não foi à toa que descumprimos ordens.
— Caramba. Não precisava ser tão direta — rebateu Richert em tom ameno. — Escuta, você não vai falar disso para os nossos superiores, não é?
— Me pergunto, como você se tornou capitão? — O tom nada amigável da mulher contrastava com o sorriso sem graça de Richert.
Os três seguiam pela estrada nada movimentada que cortava a mata rasteira de poucas árvores. Continuavam a caminho da Capital enquanto Goro não conseguia tirar as palavras de despedidas daquele rapaz da cabeça:
“Por que você está agindo tão alheio, Colth?”
***
— O que você pensa em fazer depois de terminar a escola? —perguntou Goro enquanto observava os longínquos campos de plantações que se estendiam por boa parte de Toesane, sentado sobre a grama, e de baixo de uma velha árvore, ele sorria aos céus.
— Eu não tenho certeza ainda, mas pretendo abrir uma loja de instrumentos musicais. — Colth respondia sinceramente, observava o tempo tranquilo passar ao lado do amigo como geralmente faziam nas tardes de domingo. — Agora sem a política do meu pai para me preocupar, eu me imagino ajudando a minha irmã com as suas músicas.
— Entendi. É como acertar dois coelhos com apenas um golpe.
— Sim, e a minha irmã gosta do que faz, então estarei feliz ao lado dela. Quem sabe um dia, ela faça tanto sucesso e acabe com uma das suas músicas na rádio da Capital. — Colth sonhava acordado.
— Isso seria bem legal. O império inteiro reconheceria a sua irmã.
— É... E você? O que pensa em fazer?
— Eu pretendo treinar bastante e, no futuro, prestar a prova de admissão para agente de segurança do império.
— Sério? — Colth se impressionou.
— Sim. Agora que minha mãe assumiu o posto de administradora de Toesane, ela quer que eu me destaque. Me tornar um guarda Real encheria a nossa família de prestigio.
— Eu entendo bem — baixou a cabeça.
— Ah. — Goro percebeu o rapaz pensativo. — Desculpe, eu não quis dizer que...
— Não. Tudo bem — Colth desfez o tom melancólico em justificativa. — Eu nunca me importei com isso, e agora que o Thomas se foi, isso não tem mais nada a ver comigo.
Ele não mentia, realmente não possuía nenhum apego ao prestígio da sua família na liderança da cidade, não após o falecer do homem que os treinavam de forma tão abrupta. Talvez fosse até ao contrário, seria bom se ele se desligasse desse prestígio, uma vez que, muitos rumores rondavam a morte de Thomas e a passagem da administração da cidade para a família Hamra, liderada exatamente pela mãe de Goro.
Os Hamra e os Lasvin sempre tiveram uma forte rivalidade, o que aumentavam ainda mais os rumores que circulavam pelos cidadãos da cidade de Toesane, mas isso não interferia na amizade entre Colth e Goro, desde pequenos, eram leais um ao outro e, mesmo com influencias para que os dois se distanciassem, mantinham-se amigos.
— Sua mãe deve estar te pressionando bastante — disse Colth, tentando prosseguir com o assunto e, demonstrando na prática, as palavras ditas anteriormente.
— Nada que já não fizesse antes. Ela acha que tem um grande papel, mas só segue as ordens vindas da Capital. De qualquer forma, eu vou me preparar bastante para as provas, se ela acha que isso é tão importante, então eu vou fazer o meu melhor para deixa-la orgulhosa — afirmou Goro, em tom decidido e sorriu para o céu alaranjado.
***
“Por que essas lembranças apareceram agora? E por que parecem tão distantes?” Pensou Colth.
— ... entendo.
— Hã? — Colth voltou a realidade após observar os três cavalos desaparecerem no horizonte ao longo da estrada de terra batida.
— Eu disse que, eu não te entendo. — Celina repetiu suas palavras percebendo que o rapaz não havia prestado atenção nelas. — Por que falou para aquele homem tomar cuidado? Você o odeia.
— Eu não odeio. — respondeu Colth, estranhando a escolha das palavras pela garota.
— Então, por que tentou dar um soco nele?
— Aquilo foi diferente, você não entenderia. — disse o rapaz desviando o olhar.
— Então, me faça entender.
“Acha que eu sou inocente igual a uma criança?” Colth se lembrou daquelas palavras ditas pela própria Celina no dia anterior. Respirou fundo e em seguida voltou atrás na sua omissão:
— Eu confesso que não entendo muito bem. O Goro está bem diferente. É como se fosse uma pessoa bem diferente da que eu me lembro. Mas ele ainda é meu amigo.
Imediatamente, Celina deu um passo abrupto para trás.
— Você soca os seus amigos? — perguntou em tom surpreso e defensivo.
— Só quando eles precisam — Colth demonstrou o seu rosto mais obscuro e impetuoso, de forma proposital, para arrancar de Celina uma reação ainda mais surpresa, quase medo. Quando teve sucesso, sorriu para ela com um riso comedido. — Estou brincando, mas acredite se quiser, as vezes um amigo precisa de uns bons socos.
— Então, amizade é algo ainda mais complexo... e perigoso, do que eu imaginava — sussurrou a garota, levou o polegar até seus próprios lábios e ficou alguns segundos pensativa sobre aquilo até algo tomar sua atenção repentinamente.
Um barulho contínuo, vindo de longe, chamou a atenção deles e interrompeu a conversa.
Uma carruagem coberta com um grande compartimento de carga, sendo movida por dois cavalos, se aproximava da propriedade rural abandonada. O cocheiro encapuzado por um pano branco sobre a cabeça guiava os cavalos até a entrada entre as muretas de pedras e estacionava o seu veículo nos arredores da propriedade.
— Quem é esse, agora? — se perguntou Colth.
A figura misteriosa debaixo dos panos desceu do posto de condutor e, ao pisar na grama frente aos dois forasteiros curiosos, retirou o seu capuz e revelou-se uma mulher com um sorriso convencido.
— Bom dia, amigos. Me chamo Liana, eu trouxe a solução para todos os seus problemas! — iniciou ela empolgada com gestos para si mesma.
— Solução? — sussurrou Colth imaginando saber do que se tratava. Afinal, estava esperando por uma pessoa, um emissário, para ser mais exato. “Só pode ser isso” pensou ele.
A mulher se virou após os cumprimentos e se voltou para a única porta do compartimento de carga da carruagem:
— Venham, cheguem mais perto! Eu lhes mostrarei a revolução — Animada, destrancou o compartimento e escancarou a porta da carga enquanto Colth cautelosamente se aproximava. A mulher coletou um objeto de metal desajeitado e mostrou à dupla curiosa: — Esse é o milagre que vai acabar com os seus problemas de uma vez por todas.
— Um... cabideiro? — Colth se decepcionou de imediato com o objeto que não passava de duas traves de metal contrapostas com ganchos para penduricalhos.
— Não é só um cabideiro. — disse a contrariada em tom de convencimento. — Esse objeto, forjado com o melhor aço e concebido apenas para um objetivo, manter o tecido macio e confortável ao toque, e também de secar as roupas em seu domínio muito mais rápido. É uma revolução da engenharia!
— Então, é um cabideiro...
— Que incrível! — destoou Celina com os olhos brilhando.
— O quê? — Colth foi surpreendido pela inocência da garota. — Não, Celina. Não é incrível. É só uma vendedora fazendo algo sem valor parecer incrível. Eu até vi um desses recentemente na loja de velharias daquele amigo da Garta. Aposto que foi essa vendedora aí mesmo quem vendeu essa coisa para ele. Espera aí... — O rapaz percebeu que suas palavras faziam todo o sentido. Apontou para a vendedora da carruagem sem constrangimentos — Você é o fornecedor do velho Frederic.
A mulher foi acertada pelas palavras e, imediatamente, recolheu o cabideiro e a feição confiante:
— Eu não sei do que você está falando. Eu nem conheço esse Frederic. — Fechou a porta do compartimento de carga se preparando para partir agitadamente. — Infelizmente, eu preciso ir. Desculpem a minha pressa, mas esqueci que tenho negócios a tratar com outros clientes.
— Espera. Você...
— Eu não tenho tempo para perder com pessoas que desprezam os meus produtos — retrucou Liana prestes a subir ao posto mais alto da carruagem. — Então, adeus.
— Garota dos bolinhos! — gritou Jorge vindo da velha casa abandonada, correu até a carruagem com um grande sorriso no rosto.
O silêncio pensativo entre eles deu oportunidade para o vento uivar entre as árvores do bosque às margens da propriedade.
— Jorge?! — Liana se surpreendeu. — O que você está fazendo aqui?
— Eu estava apagando o fogo da lareira — respondeu sorrindo.
— Ele está com a gente. — Se intrometeu Colth certeiro.
— Por qual motivo, ele estaria com vocês dois? — perguntou a vendedora preocupada. — Ele deveria estar com a senhora Runa e...
— A região Norte da Capital foi atacada e... a senhora Runa, acabou sendo... — respondeu Colth de imediato, baixou a cabeça em respeito sem terminar a frase, já era o bastante.
— A Runa, ela... — Liana recebeu a confirmação nos olhares entristecidos de Jorge. — Tanto faz. — Se desvencilhou de qualquer apego emocional escondendo os olhos. — De qualquer forma, preciso ir. Tenho negócios na Capital para resolver.
— É... Sobre isso. — Colth coçou a cabeça e desviou o olhar em um tom arrependido: — Já que você é a tal garota dos bolinhos, e também é a fornecedora do Frederic, acho que deve ser você que utilizava o túnel secreto do muro Norte.
— Por que está dizendo isso como uma confissão de crime? —Liana pensou por um segundo. — O quê? O que vocês fizeram?
— Acidentalmente, sem intenção, por um acaso, nós destruímos a passagem.
— Des-destruiram!? — O arregalar dos olhos dela vieram em mesmo tom das palavras. — Como? Como vocês...
— Tinha um explosivo na caverna, a culpa não foi só nossa — argumentou Colth.
— Espera, vocês destruíram meus explosivos? — Liana se surpreendeu mais uma vez.
— Então tinha mais do que um? Eu sabia — intrometeu-se Celina convencida de que suas escolhas estavam corretas. — A explosão de apenas um explosivo foi o suficiente para provocar uma reação em cadeia nos explosivos que estavam escondidos à nossa vista. Eu tinha razão, aquela explosão foi forte demais, eu jamais erraria um cálculo daqueles. Viu, Colth? Eu estava certa.
— Ah? — se surpreendeu com o esboço de um sorriso confiante de Celina. — Então, os explosivos estavam escondidos — entendeu Colth, mas ainda faltava algo: — Liana, por que você estava escondendo explosivos numa caverna?
— Não é da sua conta... Ah. — Suspirou desesperançosa, ainda na dianteira da carruagem estacionada, baixou a cabeça pensativa sem planejamento. — O que eu vou fazer agora!? Eu tinha tantas entregas para fazer e...
— Bom, agora você vai ter que voltar para o centro de Tekai, não? — Celina disse em consequência da pergunta que nunca foi dirigida a ela. Continuou séria para sugerir algo: — Então, pode nos dar uma carona até lá.
Liana levantou a cabeça e mostrou os seus olhos enfurecidos. A raiva e as chamas que vinham de seu olhar, faziam Colth lembrar do medo que sentira ao enfrentar o Capelobus.
— Você está brincando comigo!?
— Sim, foi só uma brincadeirinha. — Colth intervinha na tentativa de amenizar a situação. Ele agarrou os ombros de Celina e a fez dar meia volta junto a ele.
— Destruíram a passagem e ainda me vem com essa... — reclamou a vendedora franzindo a testa.
Colth manteve-se pensativo à medida que caminhava para longe com Celina ao seu lado: “Droga, eu odeio admitir, mas essa mulher é a única que pode nos ajudar agora. Que tipo de comerciante é tão sentimental assim?... É isso!”
— Esquece isso — Colth interpretava a inocência em suas palavras — Nós vamos arrumar algum outro jeito, talvez tenhamos que andar por dias, a pé — continuou o rapaz de costas com segundas intensões enquanto se afastava. — Ficaremos sem comida e água. Eu aguento, mas fico triste pelo pobre Jorge... Uma criança... Pobrezinho.
A comerciante foi fisgada. Levou seus olhos para criança e observou o garoto curioso por um instante agachado sobre o gramado admirando um formigueiro, ela respirou fundo e desfez o seu olhar de ódio.
— Esperem — ordenou ela. Fechou os olhos por um segundo, respirou fundo mais uma vez e, só então, continuou: — Eu levo vocês até o centro de Tekai.
— Sério!? — Colth se virou imediatamente.
— Sim... Preciso dar um jeito de vocês pagarem pelo meu prejuízo.
— Isso não tá parecendo um favor — comentou Celina.
— E não é, mesmo — Liana deixou bem claro com o seu mau humor. — Faço isso pelo Jorge e não por vocês. Eu tinha uma dívida com a senhora Runa, e isso deve servir como pagamento.
— Isso! — comemorou Colth desconsiderando a última parte. — Obrigado.