Volume 1

Capítulo 20: Frenesi

— Para! Para! Saí da minha cabeça! — a garota gritou em desespero. Sua mente se corrompia e sua cabeça doía como nunca. Quando finalmente abriu os olhos, percebeu o lugar que ainda estava.

As ruinas daquela pequena igreja no interior se tornavam ainda mais assustadoras durante a noite. Os poucos braseiros acesos no altar empoeirado iluminavam o local que estava bem mais silencioso do que antes da pequena Garta perder a consciência.

— É o suficiente? — perguntou o mesmo homem de antes. Aquele completo estranho continuava calmo enquanto sentado na cadeira ao lado da criança ao chão. — Você vai cooperar?

— Qu-quem é você? Como consegue fazer isso? — A garota estava exausta. Para ela, as últimas duas horas pareciam ter durado dias, talvez meses.

— Finalmente, quer bater um papo, é? — Ele levantou uma das sobrancelhas em plena tranquilidade. — Muito bem, então. Eu falei que você pode me chamar de Gerente, certo? Eu sou tão especial quanto você, por isso consigo desvendar qualquer segredo obscuro que carrega consigo.

— Especial?

— Sim. Eu te disse antes, mas você não quis me escutar.

— Você também tem habilidade...

— Habilidade? Então, é assim que você chama? Tanto faz. Eu não te atormentaria tanto, se realmente não fosse necessário. Preciso da sua... habilidade.

— Então, existe mais pessoas iguais a mim? — Garta se sentou ao chão ansiosa pela resposta enquanto ainda se recuperava ofegante.

— Ah, sim. Tem alguns, assim como você, que possuem poderes na palma de suas mãos, chamamos de guardiões. Já outros, iguais a mim, chamamos de emissário. Mas você é ainda mais especial, mais especial do que qualquer guardião ou emissário.

— O que quer dizer?

— Os guardiões são convocados através de um contrato com um deus. Sua função é servir o seu deus e o seu mundo. Para essa tarefa, é lhe atribuído o dom da... É lhe atribuído habilidades. Mas você não fez contrato nenhum com qualquer deus, não foi?

— Hã... Não. Eu nem sabia que isso existia.

— Exatamente. — O homem se levantou de sua cadeira e se agachou ao lado da garota para encarar seus olhos de perto. — Foi sua mãe, quem te deu essa habilidade. Ela foi quem fez o contrato com o deus. Mais especificamente o deus de Finn.

— Minha mãe...

— Ela morreu para isso. Se sacrificou.

— Foi por isso que ela morreu?

— Sim, exato. Agora escuta, Garta — Edgar se colocou ainda mais em destaque. — Não acha que sua mãe gostaria de ver você, a filha querida e amada, dominando o dom que te deixou como herança?

— ... — A garota se prendeu aos pensamentos.

— Melhor do que isso. Usar essas “habilidades” para derrubar o império que te causou tanta dor?

— O que quer que eu faça? — Os olhos da garota se concentraram no Gerente pela primeira vez.

— Preciso que venha comigo. Primeiro, vou treina-la para se tornar uma guardiã completa. Depois, vamos dar ao mundo a verdade sobre os falsos deuses do império. O que você me diz?

— Mas e o meu irmão?

— Você é mais durona do que eu imaginava, em? — Edgar se levantou ameaçador. — Quer mesmo voltar para os seus pesadelos e...

— Não! — exclamou em súplica ela. — Não, por favor. Mas não posso simplesmente deixar o meu irmão.

— Tá, tanto faz. Você pode levar o seu irmão. — Deu de ombros. — Mas já aviso que se atrapalhar, mesmo que por um segundo, eu vou...

— Não precisa se preocupar. Ele não vai atrapalhar.

— Muito bem, então. Se é assim, não há problemas. Apenas soluções.

                                               ***

Garta fechou os olhos devido a luz intensa, quando voltou a abri-los, se viu em meio ao céu azul, seu corpo despencava em queda livre na direção ao que parecia um mar escuro infinito. A guardiã não se assustou nenhum pouco, já estava acostumada com aquilo, deixou seus pés para baixo cortando o ar que não apresentava resistência.

Desse modo, seus pés foram os primeiros a tocaram naquele mar negro. Mergulhou profundamente após o impacto com a superfície. A água envolveu seu corpo sem nem sequer molhar as suas roupas ou seu longo cabelo.

Calmo como uma piscina de água morna, o mar não apresentava resistência. A guardiã não se mexeu ou nadou, continuou imóvel sem mover um músculo, afundando nas águas em direção ao leito, a única luz vinda do céu enfraquecia.

Por mais que afundasse em águas, Garta respirava normalmente, todo aquele ambiente completamente adverso a realidade, aquilo não era estranho para a guardiã que diversas vezes o atravessou para encontrar o destino que tinha em mente.

A visão era afetada pela escuridão, mas a mulher se mantinha firme. Quando viu o que parecia degraus de uma escada incompleta feita completamente de areia no fundo do leito, soube que estava no local certo.

Ela configurou seu corpo de modo que, ao continuar afundando, seus pés encontraram justamente os últimos degraus da escadaria de areia antes da abrupta interrupção. A guardiã piscou lentamente como se rogasse aos céus por um favor e foi respondida com um calafrio característico passando pelo seu corpo. No instante seguinte, Garta estava nas escadas do prédio do ministério das comunicações.

Respirou fundo o ar que era muito mais quente do que o respirado na fortaleza há poucos segundos atrás e, imediatamente, começou a subir os degraus da escadaria que dariam acesso ao sétimo andar do prédio.

O som da sirene ainda ecoava por todos os cantos e, provavelmente, os guardas estavam revirando as salas à procura dela.

Garta subiu pelas escadas rapidamente sem grandes problemas, mas assim que alcançou o último andar, viu um homem uniformizado tentando abrir a força uma das portas do corredor.

O guarda notou a aproximação da mulher e não perdeu tempo.

— Ei, você! Me ajude a abrir a porta, eu já chamei o reforço, mas talvez nós dois já consigamos abri-la. — ordenou o oficial.

Continuava forçando a porta sem dar atenção para Garta que se aproximava.

— Claro... quer dizer. Sim, senhor. — Garta mantinha a sua atuação. — Eu consigo abrir usando um método mais fácil.

— Sério? Você consegue? — O homem parava com a força bruta sobre a porta e voltava a sua atenção para a Garta.

— Sim, claro. Me empresta o seu cassetete por um segundo?

— Tá. Tudo bem. — O guarda removeu a arma branca pendurada ao seu cinto e entregou para a guardiã sem qualquer resistência e com muita inocência.

Garta não pensou duas vezes, assim que recebeu a arma, segurou o bastão firme e o levantou rapidamente para acertar o oficial. Apenas um golpe direto no rosto surpreso do vulnerável foi o suficiente. Ele caiu desacordado imediatamente com o impacto estalando um som tão alto quanto o da sua queda.

— Desculpa por isso — pensou alto ela.

Garta foi até a porta e chamou por Aldren e Bertha. Nesse momento, sons de passos vindos da escada por onde a guardiã acabara de subir, começaram a ser ouvidos.

— Aldren! Bertha! Abram a porta! Sou eu, Garta! — gritou sem poupar a garganta novamente.

Os passos se aproximavam rapidamente, certamente era um grupo de policiais que subiam os degraus com a pressa necessária para encontrar os infiltrados e responsáveis pela mensagem que estava indo ao ar na rádio.

A maçaneta girou no mesmo momento em que os policiais visualizaram a mulher frente à porta e ao lado de um corpo imóvel.

— Ela está ali! Peguem ela! — o primeiro homem, que era acompanhado por mais uma meia dúzia, gritava com convicção.

Felizmente para Garta, o caminho se abriu, ela imediatamente saiu pela passagem e, em seguida, fechou a porta trancando-a.

Aldren não perdeu tempo, assim que sua colega passou pela porta, imediatamente empurrou uma barra de ferro contra a porta e a encaixou entre a maçaneta e o chão de concreto do telhado reforçando a tranca.

— Acho que isso deve funcionar — disse o rapaz concluindo o amparo.

A integridade da porta parecia realmente intransponível, mesmo com os policiais do outro lado chutando e empurrando-a sem dó.

— Boa ideia — Garta elogiou ao notar o objetivo do rapaz. Ele sorriu em resposta.

— É bom ver você, Garta.

— Como está a transmissão? — A guardiã voltou a sua seriedade direta de sempre.

— Tá acontecendo agora. — Apontou para o fim do telhado debaixo de chuva, onde, sob a estrutura da antena de transmissão, Bertha segurava o seu dispositivo enquanto acompanhava e assegurava que as palavras do Gerente seriam transmitidas pelas ondas do rádio.

— Que bom. Isso é bom. — Garta sorriu por um mísero segundo satisfeita.

A porta continuava a ser atacada, mas não parecia que fosse ceder aos homens do outro lado.

— Isso!!! Missão concluída! — Os gritos animados sob a antena de transmissão vinham de Bertha.

A garota comemorava com as mãos para o céu enquanto sorria com alegria. Obviamente aquilo significava que a transmissão do Gerente havia sido encerrada.

Aldren estampou o seu sorriso no rosto, mas logo o desfez com as ordens vindas de Garta:

— Hora do plano de fuga — disse ela convicta.

— Sim, claro. — Aldren voltou a si.

— Garta, você está bem. Que alivio. — disse Bertha ao perceber a presença da mulher. Correu para perto deles e continuou cantarolando sua felicidade. — Conseguimos.

— Certo. Então vamos sair daqui. — Garta sabia que aquela era a sua deixa. Não deixou mais tempo para comemorações. — Se prepara, Bertha.

A líder esticou a palma da mão em direção a garota sorridente que parou há alguns passos dela. A luz começou a iluminar o rosto da pequena Bertha e...

Blast! O barulho interrompeu o som da chuva por um breve momento e o flash de luz azulado iluminou o telhado como um relâmpago. Bertha já não estava mais ali.

— Isso é um pouco assustador — comentou Aldren.

— Você se acostuma — respondeu Garta ofegando para recuperar o fôlego.

Era óbvio que aquela habilidade demandava um pouco do seu condicionamento físico e, quanto mais Garta a usava em curto período de tempo, mais evidente aquilo ficava.

— Então, agora sou eu, né? — Aldren perguntava demonstrando o seu desconforto.

— Sim... Eu só preciso de alguns segundos para me recuperar. —respondeu Garta respirando ao seu descanso.

— Tá. Claro — consentiu ele. Notou que a perturbação da porta havia parado, talvez os policiais tivessem desistido, mas mesmo sendo o mais otimista ali, Aldren não imaginou isso. Teve um mal pressentimento que o deixou preocupado. — Vai demorar muito tempo?

— Não, só mais alguns segundos — respirou fundo —, o dia está bem movimentado.

— Hã? O que isso significa? — perguntou ele ignorado.

Garta sentiu que estava novamente capaz, sentiu a energia voltando a fluir pelo seu corpo.

— Bom, eu estou pronta.

A guardiã se virou em direção à Aldren e esticou a palma da mão.

— Odeio isso... — disse Aldren fechando os olhos e esperando pelo que viria.

Garta se concentrou, a luz começou a emanar de sua mão, os pingos da chuva eram tingidos pela luz. Mas então...

Um som foi ecoado por todo o ambiente. Aquele não era o costumeiro ruído da habilidade de Garta, sua habilidade nem sequer havia sido utilizada ainda. Aquele era um som originado na única porta de acesso ao telhado.

Em uma fração de segundo, antes de Garta deslocar Aldren com sua habilidade, algo acertou a porta do outro lado e a partiu em pedaços. Os detritos de metal da porta voavam para fora em direção ao telhado e aos dois que ali estavam.

A porta havia se desfeito em uma dúzia de pedaços, como se houvesse sido acertada por uma explosão, mas aquele barulho escutado anteriormente não era familiar de uma explosão ou um estouro, muito longe disso, era algo bem sereno e até reconfortante.

Independente da característica do som, sem dúvidas o seu resultado era tão destruidor quanto o de uma verdadeira granada sendo detonada.

A destruição repentina obrigou Garta a recolher a suas mãos para proteção de seu rosto. Não pôde manter a concentração para utilizar o deslocamento, o brilho de sua mão desapareceu no momento seguinte.

— Argh! O que... — reclamou ela.

— Vejam como um profissional trabalha, seus inúteis! — disse o homem em uma voz pedante no corredor recém escancarado.

Onde antes estava a porta, agora um homem, com cabelos bagunçados e vestes vermelhas em detalhes dourados, mostrava o seu sorriso convencido. Ele tinha um de seus braços esticados para frente com as suas mãos abertas de modo a mostrar a palma para o exterior.

Junto a ele, um outro homem, mais velho se destacava e era acompanhado por conjunto de oficiais da polícia da capital. Todos se apresentavam ao telhado enquanto eram iluminados por um relâmpago cortando o céu.

— Você? — balbuciou Aldren arregalando os olhos e se surpreendendo com a figura mais velha em roupas chiques que só um burguês ostentaria. — Como é possível?



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