Volume 1
Capítulo 19: A Voz Vinda das Sombras
A música calma de melodia pragmática vindo do aparelho de rádio sobre a bancada de madeira no canto da sala, transbordava o ambiente de um sentimento soturno.
Colth e Celina não viam a hora da programação usual ser interrompida, o momento combinado estava chegando junto com a noção de que tudo aquilo poderia mudar completamente a história.
Quando notou Celina observando-o de longe no sofá, o rapaz tentou transparecer tranquilidade e segurança. Suas dúvidas estampadas em seu rosto cansado, eram claras como os relâmpagos que rasgavam o céu chuvoso do lado de fora do prédio do restaurante.
Ele se incomodou com aquele olhar e, disfarçando esse sentimento, se levantou indo de encontro a única pessoa que o acompanhava naquela noite que parecia eterna.
— Você não precisa se preocupar, Celina. — disse gentilmente ao se sentar ao lado da garota.
— Eu não estou preocupada.
— Não é o que parece. — rebateu Colth. A garota não dava muita atenção às palavras, mas o rapaz insistiu. — Eles vão ficar bem. A Garta está lá, você já viu o que ela...
— Para com isso! — Em um tom ríspido sussurrado, Celina mostrava os seus olhos tensos. — Odeio quando dizem “está tudo bem”, “vai ficar tudo bem”, ou “não se preocupem”. Odeio isso!
— Tá... Desculpe. — respondeu baixando a cabeça contrariado.
O silêncio se destacou por poucos segundos até que uma nova canção começasse a soar em meio aos chiados do aparelho de rádio sobre a bancada. Colth voltou a erguer a cabeça.
— Celina, por que você se preocupa tanto com ele?
— Eu já disse que...
— Sabe... — Colth a interrompeu propositalmente. — Eu odeio pessoas que mentem. Principalmente as que mentem para si mesmas.
— ... — Ela levou os seus olhos até os do rapaz, como se estivesse surpresa com a insistência, mesmo não demonstrando isso.
— Você é tão direta e lógica, o tempo todo. Fica bem óbvio quando está mentindo ou escondendo alguma coisa.
— Fica tão óbvio assim?
— Sim, mas essa não é a questão. Não deveria ficar se escondendo. Penso que você deveria falar mais, talvez dizer o que está sentido ajude nisso.
— Eu não estou me escondendo. — Ela pareceu confusa. — Estou bem diante de você.
— Hã?... — Colth suspirou com pouca paciência, mas notou a sinceridade expressa no rosto da garota, tentou manter-se gentil. — Escuta, eu queria te pedir desculpa. Por ter colocado você e os outros em risco lá naquela casa. Eu sei que fui... egoísta.
— Eu não compreendo.
— Acho que eu não queria me sujar, sabe? E por isso hesitei em golpear o policial quando tive a oportunidade. Eu não queria me transformar em... — desviou o olhar.
— Em um assassino?
A conclusão da frase veio por conta de Celina, ela não mudava a confusão estampada em seu rosto mesmo quando Colth a respondeu com uma expressão surpresa.
— Eu não iria ser tão direto, mas sim. Um assassino.
— O Aldren disse algo parecido com isso, algumas vezes.
— Sério?
— Sim. “Eu não sou um assassino.” — ela respondeu ao desviar o seu olhar para encontrar os próprios pés balançando sutilmente sobre o chão. — Ele chorou muito naquela noite.
— Eu imagino que tenha sido difícil para o Aldren matar alguém. Ele não é uma pessoa que faria esse tipo de coisa. — Colth viu em Celina a oportunidade de saciar a sua curiosidade, prosseguiu sem anseios. — Por que o Aldren fez isso?
— Ele fez para me proteger. Para me tirar da prisão que eu estava.
Celina continuava olhando para os seus pés soltos, mas o seu tom era bem sereno e até um pouco desprovido de sentimentos levando em conta o teor do assunto. Colth se surpreendeu o bastante para calar-se com seus próprios pensamentos por alguns segundos.
— Eu... Não imaginava. — sussurrou ele.
— Mas suponho que eu tenha entendido um pouco melhor a situação agora. Graças a você.
Colth que se surpreendeu novamente ao ser acertado pelo olhar inexpressivo e pelas palavras de agradecimento da garota.
— Eu?
— Sim. Eu nunca tinha entendido o porquê, de o Aldren ter chorado tanto nas noites seguintes àquele dia. Mas agora, eu entendo que parece ser difícil tirar a vida de outras pessoas — disse ela com um tom trivial enquanto olhava diretamente para o rapaz pensativo.
— Difícil tirar a vida de outras pessoas? — repetiu em análise. — É claro que é... Pelo menos, devia ser.
— Devia? Bem, levando em consideração o seu conselho de falar sobre o que eu estou sentido: Acho que sinto compaixão daqueles que se machucam ou são mortos por outras pessoas.
A resposta óbvia, até mesmo para uma criança, era dita naturalmente por Celina. Ela definitivamente nunca havia parado para pensar nisso e muito menos havia falado com alguém sobre, mas aquilo só provava a sua humanidade, mesmo que soasse ridiculamente estranho ao ser dito por uma garota da idade dela.
— Ainda bem. — Suspirou genuinamente aliviado Colth. — Fico realmente feliz com isso — disse em um tom sarcástico que não era nem de longe entendido pela ouvinte. — E pensar que a Garta achava que eu era o ingênuo por ter vivido preso na realidade da minha cidade.
O som da porta abrindo interrompeu o ambiente amistoso e sútil que finalmente havia sido estabelecido.
— O que você... — disse Colth instintivamente segurando a mão quente da garota ao seu lado e se levantando do sofá, para então, se afastar do homem que recém adentrará a sala.
— Relaxem. Eu só vou usar o rádio. — respondeu o Gerente.
Calmo como sempre, o homem vestido no seu belo terno negro caminhou elegante até encontrar a bancada onde estava o aparelho ruidoso.
Colth e Celina continuaram atentos no canto da sala enquanto acompanhavam apreensivos o Gerente se preparando. Ele ajustava o microfone conectado por fios até o transmissor sobre abancada que foi completamente engenhado e construído por Bertha.
Celina se incomodou com o segurar das mãos do rapaz, soltou sutilmente sem que ele percebesse ao se surpreender com a frigidez vindo delas.
O rádio ficou mudo como se a transmissão tivesse sido cortada sem avisos. Um sinal sonoro semelhante a um bipe foi estralado pelo alto-falante do aparelho.
— Isso foi... — sussurrou Colth.
— O aviso de que a Bertha falou — complementou Celina em voz baixa para não ser notada.
Colth brandiu um sorriso. Aquilo era a evidência de que tudo havia ocorrido bem até ali. Significava que Garta e seu grupo tinham alcançado a torre de transmissão do ministério das Comunicações e acoplado o dispositivo de desvio de sinal que Bertha havia concebido. Podia significar também que todos estavam bem e que o plano avançava sem problemas.
O Gerente, sentado frente ao microfone posicionado na bancada, finalmente começou a falar. Ele parecia certo de si e empenhado a fazer aquilo dar certo, seus olhos estavam determinados como nunca antes.
— Boa noite cidadãos das sete grandes cidades. Meu nome é Edgar Vellk. Sou conhecido como Gerente, o último dos Sombras do Norte. Eu busco a igualdade entre os povos e a justiça entre as pessoas. Já há alguns anos, vivemos sobre as mais duras condições impostas pelo império. Já há alguns anos, temos escassez de comida em Nyasan e em Taemar. Assistimos mortes descontroladas em Rasuey e Tekai. Admitimos corrupção em Lagunia e Toesane. E claro, aqui da Capital, vemos a região Central enriquecer e colher todos os frutos do trabalho de todos os que vivem nas regiões fronteiriças as margens desse recanto chamado de Capital Real. Estamos cansados disso, não? Cansados desses vermes que nos tiram tudo, a toda hora e nos cercam com esses muros. Muro esse, que só serve para nos separar. Impedir que troquemos experiências. Impedir que possamos unir forças. Impedir que sejamos livres.
Colth engoliu seco. Tinha a plena noção de que aquele homem não prestava, mesmo assim se sentiu minimamente comovido pelas palavras e imaginou onde ele queira chegar.
O Gerente se levantou da cadeira sem se afastar do microfone e respirou fundo para enfatizar a força de sua voz vinda das profundezas de seus pulmões.
— Vocês já se perguntaram o porquê de um cidadão não poder entrar ou sair sem permissão da Capital? Oras, não somos todos uma única nação como nos dizem? A desculpa dos poderosos, é a de que os de fora são sem Luz. Não possuem a graça da Deusa. Mentira!!! A Deusa nos criou iguais, não há sangue amaldiçoado. Não há sangue com Luz. Isso tudo é para nos separarmos, para romper com as nossas forças.
Edgar continuava feroz, suas palavras eram cuspidas com força, Colth podia sentir o poder e a motivação partida da voz firme. Ele se manteve completamente calado e observante ao lado de Celina.
— Um povo controlado por um império sanguinário, meticuloso e falso. Dentro e fora dos muros, somos iguais. Inclusive, somos consumidos pelos mesmos parasitas. É por isso que hoje é um dia muito especial. Hoje é o dia que marcará o início do fim dessa era. Hoje é o início da liberdade. Por isso peço ajuda de todos que estão exaustos dessa vida medíocre que vivemos. Vamos destruir esse mal que tanto nos perturba. Se quiserem se unir a mim, sabem o que fazer. Cansamos de viver de restos enquanto nos escondemos para a falsa Luz perdurar. O levante dos Sombras, começa agora! Tenham uma ótima noite.
A transmissão da rádio, ouvida por milhares de pessoas de todas as sete cidades, era encerrada. Assim que o gerente terminou o seu discurso, palmas e gritos polvorosos tomaram conta das ruas próximas.
O Gerente respirou fundo ao se sentar de volta na cadeira e relaxou os ombros enquanto Colth e Celina se mantinham imóveis e aflitos pelo que viria a seguir, simplesmente queriam ser esquecidos até que o homem deixasse o lugar. A música sonolenta voltou a ser ouvida trazida pelas ondas do rádio, esse ambiente prevaleceu por quase um minuto inteiro.
— Como vocês estão? — perguntou o Gerente sem mostrar o rosto.
— ...
— Eu perguntei. — Ele se levantou erguendo o queixo e se virando intimidadoramente aos outros. — Então, me respondam!
— B-bem. — murmurou Colth arregalando os olhos enquanto o homem se aproximava.
— Isso é bom — retrucou aliviado mudando a sua expressão aflita ao parar frente aos seus únicos ouvintes. — Bom, bom, bom, fantástico!
Colth e Celina se olharam estranhando a mudança repentina de humor e tom que o homem carregava consigo.
— O que foi?! — O Gerente, antes civilizado e agora inquieto, colou o seu rosto ao encontro dos outros dois. — Não se preocupem, enquanto estivermos aqui no Norte, estaremos seguros. O império teria muita dificuldade de nos atacar aqui.
— Do que você está falando? — perguntou Colth desconfortável.
— Não é óbvio? Ele está usando os civis como escudo. — Celina foi direta enquanto tentava afastar o seu rosto do sorriso sórdido do homem.
— Inteligente! — O ameaçador se afastou e deu passos sem direção. — Entendeu o jogo só vendo as jogadas.
— Do que vocês estão falando, Celina?
— O que ele pretende com tudo isso, é dificultar as ações da polícia e até do império. É tão difícil para o império resolver isso, quanto é para um corpo tratar do próprio câncer.
— O quê?
— Biologia... O corpo vai acabar atacando a suas próprias células e se debilitará.
— Atacar a si próprio? — Colth arregalou os olhos sem entender ao certo.
— Inteligente! — interrompeu Edgar. — Como esperado, da garota que passou a sua vida estudando enquanto se mantinha escondida, como uma verdadeira covarde! Não é, Celina?
— Não! Não é verdade! — a garota gritou surpreendendo Colth.
Nunca havia visto ela tão na defensiva e enérgica como agora. Tão repentino, que percebeu a mudança de atmosfera com preocupação.
— Ah é? E as suas habilidades, Celina? — perguntou o Gerente em tom sarcástico. Ele voltou a se aproximar dos outros dois e então segurou as bochechas da garota com só uma das mãos. — Você poderia estar ajudando o seu amigo, mas não! Não conseguiu sem mesmo aflorar a sua tão preciosa habilidade.
A garota não respondeu, apenas balançou a cabeça tentando se desvencilhar das mãos ásperas do ameaçador.
— Tire as suas mãos dela! — exclamou Colth empurrando o homem para longe.
Foi quase como um impulso selvagem protetor que tomou conta de seu corpo para achar a coragem de tomar tal atitude. Talvez fosse resultado da promessa que fizera à Garta, ou talvez, finalmente havia se posicionado como um verdadeiro pertencente a esse mundo.
O Gerente deu dois passos para trás até recuperar o equilíbrio. Assim que o fez, mordeu os próprios dentes em raiva e levou uma de suas mãos para de baixo de seu paletó. Sem mais, sacou um revólver assustando os dois mais jovens.
Imediatamente, sorriu com o canto da boca e apontou a arma na direção da testa da garota. O ato desconexo e surpreendente, fez Colth encostar as suas costas na parede ao dar um único passo para trás. Celina congelou com os olhos apontados para o cano cromado da arma.
— Me desculpe. Mas se você não possuiu habilidades de um guardião, você é completamente inútil para mim. Como um câncer, não é? — disse o homem sério e convicto, amedrontando qualquer um.
Ele encostou a ponta do cano da arma na testa de Celina que não conseguiu reagir, apenas ficou estática sem saber o que fazer ou pensar.
— Espera. — Colth se desesperou, tinha os olhos arregalados e as mãos trêmulas com a tensão. Só tentou ganhar tempo sem saber como proceder. — O que deu em você? Por que você está fazendo isso, Edgar?
— Eu já disse. A Celina é inútil aqui — o Gerente respondeu. Viu a garota se incomodar com as palavras. — A não ser, que consiga me mostrar o contrário.
“Inútil?” Pensou ela engolindo seco. Tentou imaginar o que Aldren faria em uma situação daquelas, mas era em vão, não havia o que pudesse fazer, estava completamente à mercê de um homem que se mostrara completamente imprevisível.
— E então!? — O Gerente deu um passo para trás e se posicionou para o tiro enquanto engatilhava o revólver com o polegar. — Consegue me mostrar do que é capaz?
— Não! Por favor, não faz isso — suplicou Colth.
— Diz alguma coisa, garota! Ou eu juro que vou atirar em você!
A voz de Edgar ficou mais alta e aflita, a situação havia chegado ao ápice da tensão inesperada há um minuto atrás.
— Haaa! — Ele gritou com o dedo no gatilho.
— Não!!! — Colth entrou na frente da linha de tiro como o último de seus recursos.
— O que é isso? Você é suicida, é? — perguntou o homem baixando a arma em tom irônico. — É óbvio que eu não vou atirar nela. Seria idiotice perder minha mais nova arma desse jeito.
— N-não vai? — perguntou Colth confuso e ainda nervoso com a situação.
— Desculpa, Celina. Eu achei que assim você pudesse se sentir pressionada a mostrar as suas habilidades. Me desculpe. — O tom estranhamente arrependido do Gerente em direção à garota, que continuava imóvel às costas de Colth, era completamente inesperado. — Não fique com medo, minha jovem. Eu já disse que você é preciosa para mim.
— ...
O silêncio foi estabelecido em meio a pausa das musicas na rádio e o calar-se dos três na sala.
O suor frio escorria pela testa de Colth. Relaxou os ombros minimamente pensando que o pior já havia passado. Se enganou.
Um trovão da chuva incessante ecoou pela região e fez as construções tremerem e as janelas baterem.
— Já você... — O Gerente voltou a ficar sério com as palavras em direção a Colth. — Não me é útil em nada. — Ergueu sua arma.
Colth voltou ao tenso e, antes que pudesse ter qualquer reação. Antes que pudesse pensar. Antes que pudesse implorar. O gatilho do revólver foi pressionado.
A explosão da pólvora no tambor da arma ecoou pela sala e obstruiu os ouvidos de todos.
Colth não entendeu de imediato. Um frio repentino na região do seu abdômen começou a tomar conta de todo o seu corpo. Ao olhar para baixo, enquanto tocava na sua própria barriga, viu a vermelhidão espalhar-se por sua mão e consumir sua visão.
— Não!!! — gritou Celina em desespero.
Quando o rapaz se deu conta, já estava de joelhos tentando resistir ao fechar de seus próprios olhos que o traiam. Em questão de segundos, tudo escureceu com o som da chuva lhe confortando.