Volume 1

Capítulo 17: Infiltração

O plano de Garta, que o grupo seguiria, foi detalhado em meio à viagem de carruagem que os trouxeram até ali. Os três já vestiam uniformes da polícia da Capital que foram coletados mais cedo dos policiais mortos ou feridos nos combates, eles serviriam perfeitamente para o disfarce que Bertha havia planejado.

A carruagem, que era conduzida por um dos subordinados do Gerente, atravessou a noite escura e metade da Capital sem quaisquer problemas. Graças ao horário e a chuva gélida, as ruas estavam quase que completamente vazias.

Garta, Bertha e Aldren deixaram o veículo e, debaixo do aguaceiro que lavava até as suas almas, se aproximaram a pé do prédio do ministério das comunicações do outro lado da rua deserta. Enquanto isso, a carruagem desaparecia ao dobrar a esquina e os deixava completamente a sós na alameda dos fundos do prédio que marcava o seu objetivo.

Aquele prédio havia sido construído estrategicamente em um dos pontos mais alto da Capital, com isso, era possível transmitir o sinal de rádio emitido pela torre no alto da construção com a máxima eficiência necessária para alcançar todos os repetidores de sinais nos muros fronteiriços e consequentemente todas as seis cidades além da própria Capital. Era daquele lugar que vinham todas as transmissões que os moradores de todo o império captavam nas suas casas através de seus aparelhos rádios receptores.

O grupo parou frente a porta de serviços dos fundos do prédio disfarçando os seus passos aflitos. Garta se agachou rapidamente frente a maçaneta e, utilizando de uma gazua e sua pouca experiencia utilizando uma, iniciou a tentativa de destrancar a porta.

Enquanto isso, Aldren se posicionou frente a porta, em uma postura que imitava aos dos verdadeiros oficiais de modo a evitar qualquer visão de algum pedestre que viesse surgir perdido na chuva.

— Bertha, fique ao meu lado para não suspeitarem — disse o rapaz com o peito erguido estático na chuva. Teve de forçar a voz para ser ouvido em meio ao despencar da chuva. Suas palavras alcançavam a garota despojada que se protegia da água levantando o seu casaco falso da polícia sobre a própria cabeça.

— O quê? Não tem ninguém aqui — respondeu ela estranhando.

— Mas pode aparecer alguém a qualquer momento.

— Não vai aparecer ninguém. Ninguém seria tão idiota quanto você de ficar na chuva assim.

— Quê?! — foi surpreendido pelas duras palavras lhe golpeando. — Garta, não dá para ir mais rápido? — continuou ao recompor a compostura.

— Não é tão fácil quanto parece — sussurrou a mulher com a ferramenta de metal acoplada na fechadura sem perder sua concentração.

— Eu avisei — Bertha também demonstrava a sua insatisfação. — Deveria ter trazido a minha serra. Essa porta não aguentaria nem cinco segundos contra o poder dos dentes metálicos dela.

— Fica quieta — retrucou Garta. — Você já trouxe a sua outra “ferramenta” não foi? — caçoou e voltou a se concentrar. — Só mais um pouco e... consegui.

O estalo vindo da fechadura assegurava o seu destrancamento.

— Finalmente — comemorou Aldren em sussurros.

A maçaneta girou por completa e rapidamente os três adentraram pela passagem. Ao fecharem a porta, o violento barulho da chuva cessou e os ouvidos dos invasores puderam descansar.

A sala em que estavam era nitidamente um depósito de serviços. Ferramentas, utensílios para limpeza, sacos de lixo, nada que chamasse mais atenção do que uma segunda porta do outro lado do cômodo.

— Droga de chuva — reclamou Aldren sacudindo os braços para remover a água fria.

— Não dá para reclamar, se não fosse por essa chuva a rua estaria muito mais movimentada — respondeu Garta coletando material de limpeza nas prateleiras. — Aqui, pega isso — arremessou uma das várias toalhas e panos do estoque de utensílios do armário que os serviriam muito bem naquela ocasião.

Após estarem minimamente secos e as toalhas absolutamente encharcadas, o grupo de invasores prosseguiu pela segunda porta da sala. Garta, liderando, foi quem cautelosamente abriu passagem.  O caminho revelado após a porta era um corredor que interligava o saguão do ministério e as escadas que levavam até os vários escritórios das repartições que se estendiam até o sexto andar do prédio.

O sétimo piso, que também era o último, dava acesso ao telhado e, consequentemente, a antena de transmissão que alcançava os céus para distribuir as ondas do rádio. E era aquele emaranhado de aço, apontado para o infinito sobre o telhado, que marcava o verdadeiro objetivo.

No saguão, dois guardas pouco preocupados com a entrada principal do prédio conversavam casualmente entre si. No mesmo ambiente, um único recepcionista sentado atrás de um balcão luxuoso na entrada se distraia com um jogo de cartas solitário. Essa não era nem de perto a hora em que havia o maior movimento por ali, mesmo assim, o prédio ficava parcialmente aberto para receber qualquer notícia de interesse imperial.

O grupo intruso seguiu as ordens silenciosas de sua líder e ignoraram o hall do prédio e a recepção, apenas apressaram seus passos furtivos pelo corredor até subirem os primeiros degraus da extensa escadaria. Nem se quer foram notados, deixaram o térreo do prédio para trás, mas assim que pensaram sobre a facilidade, foram surpreendidos.

— Tem alguém vindo aí — alertou Aldren em meio a subida das escadas ao ouvir o barulho de passos na direção oposta.

O grupo parou hesitante aos degraus. Teriam de tomar uma decisão rápida que poderia impactar o resto dos seus planos. Garta, claro, era encarregada dessa decisão.

Ou recuavam de volta para o saguão e encontravam os guardas da recepção, ou inevitavelmente cruzavam com quem quer que estivesse descendo os degraus.

— Mantenham o disfarce. Só continue andando e não levantem suspeitas — sussurrou a líder decidida em seu uniforme policial.

Os outros dois seguiram as ordens à risca. Voltaram a subir degrau por degrau enquanto disfarçavam o nervosismo de estarem em um local absolutamente restrito aos civis. Se fossem pegos, passariam longos anos em uma cela apertada na prisão da região Oeste da Capital, se calaram. Garta evitava pensar sobre e se concentrava em agir o mais naturalmente.

Ao dobrarem a esquina de um dos lances de escadas do quarto andar, deram quase que de cara com um funcionário do ministério.

De óculos, vestindo um belo terno pardo e com uma caneca de porcelana emanando vapor em mãos, o homem apenas sorriu para o grupo que lhe dava espaço em meio a escadaria para a sua passagem.

— Boa noite, policiais — cumprimentou ele.

— Boa noite. — Os três responderam em conjunto sem qualquer ensaio.

Em seguida respiraram aliviados ao ouvirem os passos do homem elegante se distanciarem as suas costas. Garta se preparou para dar o passo seguinte em direção ao sétimo andar, mas antes que o fizesse, os sons da sola do sapato do funcionário tocando o granito frio da escada cessou.

— Perdão — disse o homem chamando a atenção para si. Voltou a interagir com o grupo que, agora, estava alguns degraus acima. — Um de vocês, poderia me acompanhar até a sala dos representantes? Preciso entregar alguns documentos para a Defesa. E bom, já que estão aqui...

— Infelizmente, não é possível — respondeu Garta respeitosamente. — Temos ordens importantes.

— O que poderia ser mais importante a essa hora, do que cumprir um pedido de um secretário ministerial? — rebateu o homem.

O grupo calou-se.

“Secretario ministerial? Eu devo ser a pessoa mais azarada. Justo o homem mais importante desse prédio todo?” Os pensamentos atônitos de Garta faziam sua cabeça ferver, mas o seu rosto mostrava serenidade e um olhar falsamente despreocupado atrás das lentes de seus óculos.

Aldren e Bertha olhavam-se entre si, tensos ao esperar alguma reação por parte da líder.

Garta disfarçou o seu engolir seco e pensativa se manteve: “Se opor a uma figura tão importante, necessitaria de uma boa justificativa, o que claramente não temos. E se eu inventar algo absurdo para compor essa importância, vai consequentemente gerar uma necessidade investigativa nesse homem. Ele vai querer perguntar e saber sobre os detalhes, afinal ele é o chefe por aqui.”

— Claro. Sem problemas — respondeu Garta em tom burocrático. Os outros dois silenciaram. — Eu irei com o senhor, secretário.

— O quê? E o...

Antes que Aldren completasse a frase angustiadamente sussurrada, Garta o interrompeu sem gentileza:

— Não se preocupem. Terminem a tarefa dada pelo nosso superior — continuou com o tom autoritário. — Logo me juntarei a vocês.

— Sim, senhora — respondeu Bertha dando prosseguimento a péssima atuação da guardiã. Aldren fez o mesmo ao entender o recado por trás das palavras.

Os três interpretavam posturas de verdadeiros oficiais, mas internamente gritavam desesperados pela mudança repentina em seus planos.

— Muito, bem. — Garta se virava ao homem que esperava alguns degraus adiante. — Por favor, senhor, mostre o caminho.

A guardiã acompanhou o secretário escada a baixo. Restou para Aldren e Bertha a tarefa de continuar com o plano escada a cima.

— Vai ser mole. A gente da conta — disse Bertha ao reiniciar a sua subida pelos degraus de granito.

Aldren engoliu seco mais uma vez, não escondia a sua preocupação ao seguir os passos daquela garota. E em menos de um minuto a dupla chegou ao último andar.

— Essa é a porta? — perguntou Aldren ao se deparar com o corredor no final das escadas.

— Sem dúvidas.

Sobre a porta, a pequena placa com a inscrição “proibida a entrada” e o ar frio adentrando pelas frestas, deixavam evidente a resposta. Aos lados, o corredor se estendia, mas não lhe deram atenção uma vez que, já haviam chegado ao objetivo.

— Trancado. Droga. — disse a garota irritadiça ao girar a maçaneta sem sucesso.

Nesse momento, uma voz vinda do corredor a direita chamou a atenção de ambos:

— O que vocês estão fazendo? — perguntou o homem uniformizado. Um verdadeiro funcionário do ministério que fazia a guarda do ambiente.

Os dois que não perceberam a chegada do homem, arregalaram os olhos ao ver o oficial se aproximar em desconfiança.

— É... — Aldren enrolava enquanto pensava em uma desculpa. — Temos uma ordem para manutenção da antena de transmissão.

— Manutenção? — O homem parou diante deles. — A essa hora? Eu não recebi nenhum memorando sobre. E cadê o técnico de manutenção?

— Eu mesmo, senhor. — A resposta veio convicta de Bertha.

— Você não é muito nova para ser uma policial? — A suspeita do homem aumentava ao notar o rosto jovial da garota e as roupas largas sobre os ombros dela.

— Não, senhor. Eu sou da última seleção de agentes da Defesa.

— Aquela que aconteceu recentemente, entendo. Mas eu nunca tinha visto um oficial da Defesa fazer a manutenção da torre. — O guarda ainda não se convencia. — Ordens de qual superior?

— É... — Novamente Aldren atrasava a sua fala para ganhar tempo e pensar em uma resposta totalmente inventada de sua cabeça. — As ordens vieram do coronel Helm.

— Do coronel? De qualquer forma, eu vou reportar ao meu superior. — balbuciou o homem ao dar meia volta. — Esperem aqui.

— Ah, não vai mesmo. — A fala de Bertha veio em conjunto com uma investida rápida nas costas do oficial.

Nas mãos da garota, um pequeno objeto revestido de couro com dois pinos de metal que se destacavam, ganhavam a atenção de Aldren surpreso com a atitude. Foram aqueles dois pinos de metal que Bertha fez questão de empurrar contra a superfície das costas do homem.

Um alto e curto chiado foi ouvido enquanto um flash de luz azulado iluminou as paredes brancas do corredor. O homem não teve tempo de pensar no que o acertara. Um estremecer em seus músculos e uma dor aguda devido a uma alta corrente elétrica atravessando o seu torso o fez desmaiar quase que instantaneamente. O corpo do policial caiu como um saco de vegetais no piso recém encerado do sétimo andar.

— O que foi isso?! — surpreendeu-se Aldren com o que aconteceu diante de seus olhos.

— Só uma coisinha feita por mim. — Bertha respondeu com um sorriso malicioso enquanto mostrava o objeto estranho em mãos.

— Você me assusta... — sussurou tremendo hesitante.

A garota esticou a mão sobre o corpo do policial ao chão buscando algo no bolso interno de seu uniforme, quando retirou a mão, trouxe um molho de poucas chaves consigo e novamente sorriu maliciosamente em direção ao colega.

— Haha. E olha só... Nossa entrada. — comemorou Bertha fazendo uma pose completamente inesperada para uma situação daquelas. Ela ergueu a mão com as chaves para o alto e levou a outra mão em direção a cintura, sorriu cheia de si com um dos olhos fechados.

— É maluca... — pensou alto o assustado.

— Vamos, não temos muito tempo.

A dupla se concentrou na porta com as chaves roubadas do policial. O vento forte vindo do exterior noturno adentrou ao corredor quando finalmente abriram a porta de acesso ao telhado. Como esperado, a torre de aço que transmitia as ondas da rádio imperial para todas as cidades estava diante deles enxarcada pela chuva.

Rapidamente, antes de iniciarem a parte mais importante dos planos, a dupla invasora moveu o corpo do policial para o telhado e fechou a porta de modo a não deixar rastros de uma invasão no corredor.

— Ele está vivo? — Aldren percebeu a respiração suave do oficial ao colocar o seu corpo encostado na parede exterior.

— Sim. A minha ferramenta só deixa as pessoas inconsciente. — Bertha se mostrava orgulhosa. — Mas infelizmente ela só tem carga para um uso.

— Então, a partir de agora essa coisa é inútil?

— Não o menospreze! — exclamou a inventora abraçando o objeto com ambas as mãos sobre o peito.

— Maluca é pouco. — sussurrou Aldren antes de se fazer ouvir. — Você devia achar um nome para essa coisa. Ficar chamando de “ferramenta” é muito...

— O quê? — Bertha perguntou curiosa ao ver o rapaz se calar hesitante — É muito o quê?

— Deixa pra lá. — Aldren se deu conta com quem conversava. — Vamos logo para o que interessa.

Bertha demorou ainda curiosa sem resposta, mas logo concordou colocando um sorriso determinado no rosto. Ambos se aproximaram da torre e encontraram o pequeno armário de metal acoplado à base da estrutura de aço enquanto os finos pingos da chuva, agora mais fraca, os acertavam como agulhas levadas pelo vento.

A garota abriu a portinhola do armário de modo a revelar um painel com uma dezena de fios e alguns poucos interruptores. Um sorriso empolgado tomou conta do seu rosto, para então, começar a desencapar alguns dos fios com a ajuda de um pequeno alicate tirado do bolso. Em seguida, retirou do segundo bolso do casaco a sua mais nova bugiganga, o objeto que o velho Oskar havia lhe enviado, mas agora, modificado por ela própria.

— Que tal, "choquinho"? — perguntou Bertha casualmente enquanto se concentrava no trabalho.

— O quê? — Aldren não entendeu de primeira.

— O nome da ferramenta. Choquinho. Não é um bom nome?

— É um péssimo nome. É muito fofo para ser uma arma.

— E que tal, "choquinho mortal"? Fica menos fofo assim.

— Mortal? Você mesmo disse que ele só deixa as pessoas inconscientes. Além disso, o problema é esse “choquinho”, o nome continua ruim.

— A é? Então me dá uma sugestão, senhor sommelier de nomes. — caçoou Bertha balançando a cabeça em provocação. Ela prendia um dos vários fios ao seu aparelho modificado, mas ainda parecia longe de terminar o seu trabalho por ali.

— Tá bom. Hmmm... — Aldren realmente aceitou o desafio de peito aberto. — Eu pensei em "arma de choque".

— Que sem graça. Não tem personalidade nenhuma. — rebateu Bertha prontamente em tom entediado.

— Personalidade? Isso é uma arma, não precisa de personalidade. E você nem pensou sobre.

— Chato...

— É melhor do que choquinho, isso parece até coisa vinda de um conto infantil lá de Rasuey... — Aldren se atentou as suas próprias palavras de modo que sua curiosidade foi provocada. — Aliás, de qual cidade você veio?

— Eu? — Bertha não esperava a pergunta, mas não relutou em responde-la enquanto conectava mais um fio ao seu dispositivo. — Eu sou daqui da Capital, mais especificamente da região Central.

— Central? — Aldren ficou tão surpreso que seus olhos arregalaram debaixo da chuva. — Por quê? Como você foi parar no Norte da Capital?

— Acho que é por causa do meu pai. — A garota parou os seus trabalhos por um breve segundo. — Sabe, ele era engenheiro, ajudou a construí várias coisas aqui na região Central. Mas o que ele gostava mesmo, era de ser inventor.

— Tipo, o que você faz?

— Isso. — A garota não escondeu seu sorriso ao ouvir a pergunta que vinha de encontro com seus sentimentos. Voltou ao trabalho. — Engraçado.

— O que é engraçado?

— O meu pai tinha uma invenção parecida com uma estação de rádio, igual essa. A diferença, é que tudo isso, caberia dentro do seu bolso.

— Nossa... Isso facilitaria bastante a vida do radialista.

— Hã? Não, você entendeu errado. Esse aparelho seria usado por qualquer um. — Bertha explicava com uma empolgação que passava despercebida por ela mesma. — Qualquer um poderia se comunicar à distância individualmente. Como os telefones nos prédios do império, só que sem fio.

— Por qual motivo umradialista iria querer transmitir um programa de rádio para só uma pessoa?

— Aff. Eu havia me esquecido quem você é... Como pode ser tão burro?

—Ei! — reclamou e fechou a cara de imediato.

— Não fique nervoso, Aldren. Inteligência é uma habilidade para poucos. — Bertha voltava com seu orgulho enquanto terminava os últimos arranjos no painel da torre de rádio. — Enfim, o “rádio de bolso” poderia ser usado para intermediar conversas entre duas pessoas à longas distâncias a qualquer hora. Imagine uma estação de rádio particular, onde você pode se conectar com outras estações em qualquer outro lugar.

— Isso... seria mesmo possível?

O rapaz finalmente entendia do que se tratava toda aquela conversa.

— Sim. Mas havia um problema. — Bertha tentava não mudar o seu tom concentrado, mas não conseguiu. Suas palavras ficavam mais pesadas e inflamadas. — Você sabe para qual propósito serve os muros entre as cidades?

— Eles foram construídos para defesa, numa época em que as seis cidades e a Capital brigavam entre si.

— Sua resposta está correta. Mas essa guerra já acabou fazem uns quarenta anos. Não acha que o império poderia derrubar os muros? Ou pelo menos algumas partes deles?

— Onde você quer chegar?

— Os muros só continuam de pé, porque eles ainda possuem um propósito. E esse propósito é o de Impedir a circulação de pessoas e, principalmente, informações entre todas as cidades. — Bertha observava fixamente os olhos pensativos de Aldren. — A única informação que ultrapassa os muros sem qualquer problema, são as ondas de rádios que saem exatamente dessa torre.

— Então, quer dizer... que o problema com a invenção do seu pai...

— É o império. — A garota voltava a sua atenção para o painel. — O problema é, exclusivamente, o império.

— Dane-se o império. O seu pai pode distribuir essa invenção sem que o império...

— Mataram ele. — Bertha tratou de interromper. Ela não demonstrava qualquer sentimento nas suas palavras ou nas suas expressões, apenas corria os olhos de baixo para cima percorrendo todo o corpo metálico da grande torre diante dela. — Mataram o meu pai, assim que ele deu a ideia para a família Real de apresentar a sua invenção para o público.

— Eu... — Aldren sentiu a atmosfera pesada e alterou o seu tom em sentimento de pesar. — Eu sinto muito...

— Hahaha! — De modo abrupto, a expressão de Bertha mudou e uma gargalhada tomou o lugar de sua voz séria. Aldren imediatamente estranhou e arregalou os olhos. — Terminei! Terminei!

— Bertha... — A voz preocupada do rapaz foi praticamente inaudível em meio as gargalhadas conquistadoras da garota na chuva mais amena.

O rapaz ficou impactado e, por um segundo, suspeitou de toda aquela história contada há pouco pela garota, mas logo tratou de se desfazer desse pensamento: “Não foi falso. De modo algum, aquelas palavras eram falsas.” Continuou observando o sorriso sádico da garota que cantava vitória.

— Faltam apenas seis minutos para iniciarem a transmissão. — Bertha riu para o relógio em suas mãos. Os ponteiros marcavam exatamente dez horas e cinquenta e quatro minutos. — Agora é só esperar e...

Antes que a garota terminasse o seu discurso convencido, uma alta sirene começou a ecoar por todo o prédio. O tom notável de alerta, vindo dos andares abaixo, eram indícios de problemas.

— Que merda é essa? — Aldren se assustou com o barulho.

— Droga...

— Garta?! — Imediatamente ele se preocupou com a colega e correu em direção a única porta no telhada. — Eu vou...

— Espera! E a transmissão?

— Fique aqui, eu já... — Assim que Aldren colocou suas mãos na maçaneta do acesso ao interior, sentiu alguém do outro lado da porta empurrando-a. — Merda!

O rapaz forçou de volta a porta. Evitar que alguém acessasse o telhado naquele momento era prioridade.

— Quem está aí? Abra a porta imediatamente!!! — gritou um homem no interior.

A voz grossa vinda de dentro do corredor lembrava Aldren de que a chave daquela porta ainda estava em um de seus bolsos. Se puniu percebendo que foi tolo ao se esquecer de tranca-la. Rapidamente colocou a mão no bolso e alcançou a chave, em questão de segundos, a colocou no buraco da fechadura.

Assim que tentou girar a chave, a porta levou um forte golpe na parte interna. O homem do outro lado tentava de toda forma ultrapassar o obstáculo que era concorrido com o próprio Aldren. O rapaz fazia força contrária, evitando da porta se abrir por completo.

— Haaa! — Seu ombro ardia com as pancadas vindas do lado oposto.

Os gritos não adiantavam em nada contra o homem que possuía força superior ao do rapaz baixinho.

A porta só precisava se encaixar no batente, para assim, Aldren girar a chave e tranca-la de uma vez. Mesmo com todo as suas forças aplicadas, não parecia ser possível, a porta tendia a abrir.

— Abra imediatamente!!! — o policial do outro lado gritou ordens que continuavam a serem desobedecidas.

— Merda! Eu não vou aguentar...

A porta estava prestes a ser escancarada, Aldren não podia fazer mais nada, era inevitável.

— Não me interrompam!!! HAAA! — A voz aguda esbravejando determinação vinha da garota no telhado. A pequena Bertha gritou chamando a atenção e levantou voo logo em seguida através de um salto em direção ao rapaz protetor na porta.

Impulsionada pelas suas curtas pernas, saltou de encontro a entrada acirradamente disputada e sobrevoou o concreto do telhado por alguns metros. Seus pés rasgavam o ar como a ponta de uma flecha atirada, se alinhavam ao rosto surpreso de Aldren.

O rapaz teve uma fração de segundo para desviar a sua cabeça e evitar o encontro de sua face com as solas molhadas dos sapatos da garota.

Ao invés da cara assustada de Aldren, os pés de Bertha acertaram a superfície da porta. Por um breve momento, a engenheira ficou de pé na horizontal sobre o metal da porta.

Com o próprio peso, a garota desequilibrou a disputa pela passagem. No breve momento em que os seus pequenos pés tocaram a superfície, a porta se encaixou completamente no batente. Imediatamente, Aldren girou a chave e finalmente trancou-a.

Antes mesmo de respirar aliviado, sabendo que agora estavam momentaneamente seguros diante da ameaça vinda de dentro do prédio, viu a garota caindo no chão enxarcado de modo completamente desajeitada.

— Aiii!!! — Bertha se contorceu no concreto molhado. — Não! Por quê?!!!

— Bertha! Tá tudo bem? — Aldren rapidamente se agachou para checar a situação da colega que se lamentava como nunca antes.

— Não! — gritou ela novamente.

— O quê? Machucou o seu pé? Onde está doendo?

— Eu tô toda molhada, e agora suja!

— Suja? É só isso?

— Cala a boca! É fácil para você falar. Não está com lama por todo o seu corpo — respondeu ela grosseiramente enquanto chacoalhava os braços e se levantava quase em prantos.

— ... — Aldren não teve condições de responder.

— O que foi? O que você está olhando?

— Você só pode estar brincando... — sussurrou o rapaz segurando o riso.

— Você está achando graça?! — enfurecida.

— Não, não. Claro que não — Aldren pressionou os próprios lábios evitando uma gargalhada. Não fez por mal, mas a raiva da garota junto com sua própria preocupação foi totalmente engolida pela reação exagerada de Bertha em relação a algo tão trivial.

— Que babaca... — murmurou ela caminhando em direção à torre. — Vamos terminar logo isso, já cansei desse lugar. Espero que a Garta tenha mais sorte.



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