Volume 1

Capítulo 16: O Caos do Sereno

A garotinha respirou fundo assustada após ouvir uma explosão, mesmo distante, aquele estrondo fez com que ela se agachasse com o seu coração indo parar na garganta.

O estremecer consequente, após a detonação da bomba de Sathsai nas redondezas da pequena vila no litoral de Taemar, fez com que as telhas penduradas no teto destruído daquela simpática igreja em pedaços se espatifassem ao chão. Com o susto, mais uma vez a garota fechou os olhos e abraçou ainda mais forte as três batatas sujas por terra que carregava consigo.

Com as roupas sujas, o cabelo embaraçado e os olhos perdidos, ela se esgueirou por entre os vários bancos de madeira desorganizados do pequeno templo em ruinas vazio enquanto alguns gritos desesperados e mais explosões ressoavam longínquos no ambiente destroçado.

— Ei, você! — gritou arbitrário um soldado ao entrar na igreja.

O medo congelou a menina imediatamente, escondeu o olhar inocente com o baixar de sua cabeça. O homem caminhou até ela apressado se desviando dos destroços.

— Está sozinha? — perguntou ele observando os arredores.

— ... 

— Não quer falar? Hum... Venha turva, eu te levarei até a sua nova casa. — Autoritário, agarrou o braço da menina que imediatamente reagiu dando um passo para trás e se desvencilhando dele. — O quê? Pare de graça!

O homem carregava consigo um rifle em suas costas e um simples chapéu de soldado raso da tropa de infantaria do exército imperial. Perdeu a paciência rapidamente. Agarrou o pequeno ombro da criança com a sua enorme mão e a obrigou a caminhar dizendo-lhe palavras duras:

— Vocês todos são um bando de animais. Não conseguem nem seguir simples ordens.

Mais uma vez a garota tentava se desvencilhar do homem, dessa vez teve que deixar as batatas preciosas do jantar caírem ao chão e, mesmo se esforçando ao máximo, não conseguiu. O adulto era forte e obstinado, continuo inflexível forçando-a com a mão sobre o ombro esguio da menina.

A garota não teve opção, teve de partir para o desespero, cravou os seus dentes no braço do soldado que se surpreendeu com a dor repentina.

— Seu pedaço de lixo! — Ele odiou a garota ainda mais. Não pensou duas vezes ao ver o seu próprio sangue brotando em seu braço, empurrou a criança contra o chão sem misericórdia.

A menina se esparramou pelo piso sujo e rolou uma vez até bater com as costas no primeiro banco de madeira chamuscado da igreja.

— Agora eu tô todo cheio de sangue, sua idiota! — reclamou o homem sacudindo a sua mão para retirar o excesso do liquido vermelho vindo dos pequenos cortes deixados pelos dentes de leite da pequena.

Irritado, o soldado partiu para cima da garota. Ela não teve tempo ou condições de reagir, recebeu em cheio um chute da bota militar de couro que acertou o seu ombro e impactou até a sua última costela frágil.

— Ahhh! — gritou a criança já em choro.

— Ninguém vai sentir falta de um lixo como você. — O soldado deu um passo para trás e se armou com o rifle que carregava. — Deveria me agradecer por acabar com o seu sofrimento rápido. “Prender as crianças” eles disseram? Que se danem as crianças desse inferno.

Apontou a arma para a menina que continuava se lamentando em dor no chão. Hesitou, mas em seguida mirou varrendo todos os sentimentos de sua mente.

Ao colocar o dedo sobre o gatilho, o homem sentiu algo encostando na sua nuca com ímpeto intimidador. O cano de um revólver as suas costas, emitiu o barulho de engatilhar.

— O que pensa que está fazendo? — perguntou o homem que empunhava a arma com a voz imponente vinda de trás do soldado.

— Eu não ia atirar. — O militar rapidamente baixou a sua arma enquanto dizia as suas palavras em tom de desculpas. — Eu só estava tentando fazer ela cooperar.

A menina arregalou os olhos e manteve-se deitada vendo a cena bem à sua frente.

— Se eu atirar, ninguém vai sentir falta de um soldado, não é? — perguntou o misterioso no controle da situação.

— Não! Por favor, não faça isso — respondeu o homem trêmulo ainda sob a mira do revólver.

— Os verdadeiros fracos são aqueles que acham que controlam o mundo.

Puxou o gatilho do revólver sem misericórdia. O barulho ressoou e se misturou aos vários outros ruídos de disparos e gritos do exterior.

O corpo do militar, já sem vida, ajoelhou e deitou ao chão logo em seguida. O sangue esparramado em uma única direção tingiu o piso sagrado e respingou no rosto da garota assustada.

— Você. Como é seu nome? — perguntou o homem recarregando o seu revólver e observando a menina imóvel manchada pelo vermelho fresco.

— ...

— Está me ouvindo? Eu te salvei, não? Poderia ao menos me dizer o seu nome. — A voz tranquila do homem não acalmava em nada a criança, muito menos deixavam as coisas mais normais.

— Ga-Garta — ela respondeu gaguejando enquanto seus dentes resvalavam uns nos outros.

O homem sorriu convencido e realizado.

— Finalmente eu te encontrei, Garta — disse ele se aproximando enquanto guardava a sua arma e retirava um pano de dentro do seu paletó. — Aqui, vamos limpar isso.

O estranho aproximou o trapo de algodão delicadamente do rosto da criança que, com alguma resistência, deixou ser limpa ao se levantar.

— Me diga, essas batatas eram para o seu irmão? — perguntou ele apontando com os olhos para os vegetais esparramados ao chão.

— Co-como sabe do meu irmão? — ela se afastou imediatamente suspeitando da situação.

— Não se preocupe. Eu estou aqui para te ajudar. — respondeu sereno como sempre.

— Quem é você? — As suspeitas de Garta não diminuíam.

— Digamos que eu seja um amigo do seu pai, ele me chamava de Gerente. Também conheço a sua mãe, ela era... bom, eu a conheci.

— Minha mãe? Ela está... — A garota se conteve ao se dar conta que continuava a conversar com um completo estranho.

— Viva? Não. — Desviou o olhar sentido. — Eu sinto muito.

—... — A criança baixou a cabeça ao ter suas esperanças destruídas.

— Mas eu estou aqui por ela. — O homem tentava ter a atenção de volta para si. — Ela me pediu para cuidar de vocês.

— Ela pediu?

— Sim, claro. Por favor, venha comigo. Eu vou te mostrar como você é especial.

— Não. Eu tô bem. — Garta continuou suspeitando e não moveu um músculo.

— Aqui, pega isso. — O homem esticou a mão após retirar um pequeno embrulho de baixo do seu paletó.

— O que é isso?

— Pega. É só um bolinho salgado.

A garota coletou a massa assada e rapidamente guardou em um dos seus bolsos.

— Não vai comer?

— Não... Não agora — respondeu ela se preparando para deixar o local. Praticamente ignorou o adulto.

— Vai guardar para o irmão, eu entendo. Saiba que eu posso conseguir o quanto você quiser disso. É só vir comigo.

— Não. Eu já disse que não.

— Bom, eu realmente não queria fazer isso, mas você não me dá escolhas, Garta. Vou ter que embaralhar um pouco as coisas.

O homem disse com a tranquilidade característica enquanto levantou a mão direita com o polegar grudado a ponta do dedo médio.

— Espera... — Garta pressentiu algo ruim, mas não pôde fazer nada.

O homem estalou os dedos e, aos olhos da garota, tudo começou a derreter como metal nas brasas ferventes de uma fornalha. Nada mais tinha forma além da confusão que abatia a mente inocente da pequena. A escuridão tomou conta.

                                               ***

Garta era acompanhada de perto por Celina e Colth. Os três adentraram ao restaurante apressadamente. Em poucos segundos a mulher já se encontrava escancarando a porta da sala de Bertha.

— Cadê ele, Bertha? — perguntou apressada a guardiã. Seu nervosismo determinado era evidente.

— Não deu tempo... Desculpa, Garta

— Merda — grunhiu a mulher voltando para corredor imediatamente. Adentrou a porta seguinte.

A curiosidade e a confusão de Colth o levara a seguir a guardiã ameaçadoramente estranha. Ambos encontraram com o Gerente arrumando a abotoadura da manga de sua camisa enquanto Aldren respirava exausto no fundo da sala sentado em uma poltrona.

— Garta, como você está? — disse o Gerente cordialmente com um sorriso tranquilo.

— O quê... O que você fez? — A mulher reduziu a euforia e ficou estática.

— Nada. O que eu poderia ter feito? — perguntou sem esperar a resposta — Aliás, é bom se preparar, Garta. Tenho uma missão importante para você. Passarei os detalhes para a Bertha.

O homem caminhou sereno para fora da sala. Colth teve que abrir caminho ao se deparar com os olhos temivelmente tranquilos. O Gerente saiu e Colth desconsiderou tudo para ir direto ao colega ofegante na poltrona.

— Aldren, você está bem?

O rapaz estava completamente exausto e suado, parecia ter acabado de atravessar a Capital correndo. Ele respirava fundo recuperando o ar enquanto encarava o nada do chão aflitamente.

— Ei, o que aconteceu? — Colth insistiu.

Aldren sacudiu a cabeça negativamente até encontrar os olhos preocupados de Colth.

— Nada, nada. Nada aconteceu.

— Aldren? Você está bem? — Celina se aproximou cautelosamente após se juntar à sala.

— Ce-Celina... — Aldren rapidamente voltou o seu olhar perdido para a garota. — Eu vou te proteger. Eu vou te proteger — disse palavras sem sentido aparente.

— Droga... — O desabafo sussurrado veio da entrada da sala. Garta não conseguiu conter a sua angústia.

— Droga? — Colth rebateu e foi até ela. — O que você sabe sobre isso? O que aconteceu com o Aldren?

— O Gerente ferrou a cabeça dele. — A mulher observava o fundo da sala com os olhos inquietos. — Ele embaralhou a mente do Aldren.

— Embaralhou? O que isso...

— Garta — Bertha interrompeu a pergunta confusa do rapaz ao entrar pela porta da sala movimentada. Parecia tão abalada quanto o restante dali mesmo evitando demonstrar. — Garta, eu preciso falar com você.

                                               ***

— Invadir!? — Colth dava voz a expressão de surpresa em seu rosto.

— Fala baixo — disse Garta em bronca.

— Eu não terminei ainda — complementava Bertha. Também não parecia confiante. — Depois de invadirmos o prédio do ministério das comunicações, vamos transmitir a mensagem sobre o levante dos Sombras.

— Isso é loucura... — sussurrou Garta.

— O quê? O que é o levante dos Sombras? — perguntou Colth. Sua dúvida trouxe a guardiã de volta ao seu estado sóbrio.

— É algo que o Gerente planejava para o futuro. Uma tomada de poder pela população renegada. — A mulher fez a seriedade da sua voz congelar o ambiente. — Não imaginei que isso viesse agora, não hoje. Não era isso que estava acordado...

— Espera. Você sabia disso? Vocês planejavam isso? — Colth rebateu surpreso.

— Não temos tempo pra isso. — Bertha sobrepôs as palavras do rapaz com mais ímpeto e urgência. — Temos que nos preparar. Além de mim e você, Garta, o Gerente pediu para levar ele. — Apontou para o outro rapaz no fundo da sala.

— O quê? Nem pensar! — Celina era quem discordava energeticamente ao lado do alvo os olhares. — Se o Aldren vai, eu vou junto.

— Não. Não vai. — O rapaz se levantou demonstrando uma recuperação repentina. — Esse é o meu dever. E você deve descansar depois do que aconteceu.

— Eu não preciso, Aldren — implorou Celina. — Eu estou bem, juro. Além disso, por que a Bertha e a Garta vão, e eu não?

— Eu vou transmitir a mensagem do levante — respondia Bertha — a Garta vai nos proteger junto com o Aldren. E como vamos ser discreto, é melhor que sejam poucas pessoas.

— Está decidido. Celina e Colth ficam aqui cuidando de qualquer problema que apareça — Garta concluiu depois de pensar silenciosamente.

—Por favor... — O implorar de Celina era como o de uma criança. Ela segurou o tecido da vestimenta de Aldren com as pontas dos dedos e o impediu de caminhar em direção aos outros.

— Celina... — O rapaz voltou até a garota e segurou a sua mão delicadamente. — Não se preocupe, eu prometi que não iria te deixar. Eu vou voltar para cumprir essa promessa.

—... — O respiro com dificuldades por parte de Celina dizia mais do que qualquer palavra. Soltou o tecido amarrotado da vestimenta.

— Eu já volto. Eu prometo.

Aldren seguiu os passos de Garta e Bertha que caminhavam para fora do cômodo em direção as escadas do restaurante, mas no meio do caminho, Garta parou frente a Colth.

— Escuta, Colth. Eu não tenho opção. Eu tenho que te pedir isso.

— Hã? — A surpresa do rapaz ao ver o tom suplicador da guardiã foi sincero.

 — Por favor, fique aqui e cuide da Celina. Se não fizermos isso, não teremos a mínima chance, mas... se não der certo... — Ela mostrou a sua preocupação em um suspiro inevitável. — Fuja com a Celina para o mais longe possível, se escondam em alguma cidade no exterior da Capital e não deixe ninguém, nem mesmo o Gerente se aproximar. Por favor, é o que te peço.

— ...

— Me promete, Colth — insistiu a mulher.

— Eu não sei muito bem o que está acontecendo, mas sei que você é uma pessoa boa. Se fosse diferente, eu já teria sido morto por uns bandidos ralés da capital, mas... Por que está fazendo isso? Por que precisa esconder as coisas tanto assim? — As perguntas de Colth a alcançaram, mas Garta manteve o silêncio com a cabeça baixa. — Independente do que esse Gerente use para te chantagear, vale realmente a pena...

— Colth — exclamou Garta em tom ameno.

— Para mim está muito óbvio que ele te usa. E que você não quer estar ao lado dele, então simplesmente nos deixe te ajudar...

— Colth.

— Eu não sei nada sobre guardiões, ou essa tal Deusa Lux, mas sei que eu, a Bertha, a Celina, podemos ajudar se você...

— Colth! — A voz mais alta e a mão firme nos ombros do rapaz, finalmente fizeram ele parar de falar e prestar atenção no que Garta tinha a dizer. — Eu agradeço, mesmo. Mas por ora, o que eu mais preciso é que você me prometa que não vai deixar ninguém se aproximar da Celina.

O silêncio pairou frente aos olhos próximos um do outro. Colth jamais pensou em se negar àquela promessa, mas sabia que havia algo de errado com tudo aquilo, sabia que esse não era uma simples promessa. Se aquela mulher poderosa e confiante estava se rebaixando ao nível de um simples tonto sem rumo, era por quê ela estava desesperada.

— Tá... Claro. Eu prometo — aceitou ao ser confrontado pelos olhos decididos de Garta. Se viu novamente coordenando pela sua fraqueza, dessa vez tentaria provar o contrário.

— Todos prontos? — perguntou Garta ao pequeno grupo liderado por ela.

Aldren e Bertha confirmaram balançando a cabeça positivamente com as expressões firmes esperada. Não foi à toa que o Gerente escolheu aqueles dois para essa jornada. Ambos estavam dispostos a tudo por seus objetivos, usar isso não era nada honesto por parte dele, mas sem dúvidas funcionaria, Garta sabia disso. Ela desconsiderou tudo com mais um respirar fundo antes de realmente deixar o corredor.

Colth e Celina ficaram quietos por alguns segundos após se trancarem na sala de Bertha. Só restou para eles, esperarem o melhor.

— Isso é estranho — sussurrou Colth sem rumo. — Esse Gerente controla tão facilmente a Garta. Ela parece outra pessoa quando ele está presente, ou quando ela está cumprindo as ordens dele.

— ... — Celina se mostrou pensativa.

— E o Aldren... O que foi aquilo? Ele não queria se separar de você de modo algum, Celina. E agora quer bancar o herói?

— “Embaralhou a mente dele.” Foi o que a Garta disse.

— Acha que isso tem a ver com a mudança de atitude do Aldren?

— Pra mim é bem óbvio — continuou ela pensativa. — Eu só não entendo como isso pôde ter acontecido.

— Acho que você tem razão. Mas se a Garta não quer falar sobre, então não temos muito de onde partir.

— Embaralhou... — sussurrou Celina pensativa para encerrar a conversa e mergulhar em suas próprias ideias.



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