Volume 1

Capítulo 15: A Agressividade da Mudança de Ventos da Tarde

— Vocês estão bem? — disse Colth aliviado ao ver Aldren e Garta adentrando ao cômodo em que se refugiava junto a família moradora da casa. Em seguida, ele baixou a cabeça desonrado. — Que bom.

Aldren rapidamente caminhou até Celina sem dar ouvidos. A garota estava sentada ao chão encostada em uma das paredes úmidas do cômodo.

— Celina, você está bem? — Se ajoelhou diante da garota.

Levou as suas mãos até as da garota e as tocou gentilmente enquanto esperou pela resposta ainda abatida dela:

— Sim. Me-me desculpe. — O tom de Celina era de contrição plena, ela olhou para Aldren com os olhos sem intensidade. — Eu não queria ser um fardo para você. Eu não deveria...

— Calma. Calma, você não é fardo nenhum para mim. Fico feliz que esteja bem. — As palavras ditas com delicadeza por Aldren faziam a garota trocar olhares com ele. Ela assentiu com a cabeça e ele respirou aliviado com um sorriso mínimo no rosto. — Que bom que está bem.

— É... Eu também queria pedir desculpas. — Colth se manifestava em meio ao silêncio pouco duradouro em decepção.

— Tá tudo bem. Não precisa se preocupar com isso, Colth. — Aldren tentava consolar o colega com poucas palavras. Obviamente não estava simplesmente “tudo bem”, mas não seria ele que culparia alguém por aquela situação.

— O importante é que todos estão bem. — Garta resumiu a situação ao observar a família de Iara sã e salva. Se voltou aos outros: — Então, agora temos trabalho a fazer. Aldren, você vai até o restaurante e relata tudo para a Bertha, ela vai saber o que fazer. Eu, Celina e Colth, ficamos para limpar toda a bagunça e manter os moradores seguros, por enquanto.

— Mas e a Ce... — Aldren interrompeu-se ao ver os olhos determinados de Garta. Hesitou percebendo que aquela era a melhor opção. — Você tem certeza disso? — perguntou mesmo sem perceber qualquer hesitação da mulher.

— Não temos muita escolha. Aquele tiroteio pode ter alertado alguns dos homens do império, mas também não posso tirar os olhos da Celina.

Os quatro subiram as escadas e voltaram para cozinha enquanto mantiveram a família Figo em segurança no porão. Garta queria ter a certeza de que mais nenhum policial viria em averiguações antes de expor aqueles que não possuíam qualquer oportunidade de se proteger.

— Volto assim que eu falar com a Bertha então — Aldren concordou.

— Espera — Celina, se pronunciou. — Eu posso falar com você por um minuto, Aldren.

— Claro... — estranhou, mas não negou.

— Vamos, Colth. Temos que ser rápidos. — disse Garta com a sua seriedade.

Colth ainda estava cabisbaixo, mas não pensou em recusar as ordens.

Ambos saíram do cômodo e deixaram Celina e Aldren para trás. Na verdade, aquela era a real intenção de Garta, afinal, após a conversa que tivera com a sua pupila, não se oporia de tirar os olhos dela por alguns minutos, mesmo que aquilo ferisse as ordens expressas dadas pelo Gerente.

— O que foi, Celina. — continuou Aldren.

Ambos ficaram mudos por segundos. Algo parecia incomodar Celina, mas ela hesitava em colocar seus sentimentos para fora. Se encorajou:

— Eu só queria me desculpar. Me desculpar de verdade — disse ela com a voz trêmula e sem jeito.

— Não tem motivos para você se desculpar, eu já disse — Aldren respondeu notando a garota cabisbaixa em tom melancólico. — Escuta, fico feliz que você tenha mudado tanto desde do... Desde aquilo.

— Do que você está falando? Eu continuo a mesma. — retrucou Celina em entranhamento, seu rosto mudou para confuso.

— Não. Você não continua — observou as pequenas manchas de sangue na manga clara da vestimenta da garota. — Aquele seu comportamento há pouco mostra isso.

— Desculpe. Eu errei.

— Não. Nada disso. Fico feliz com o que fez, Celina. De verdade.

— Feliz? Com o meu erro?

— Não. Não pelo seu erro. Fico feliz por você ter se tornado... Hmm... — Aldren não conseguia achar palavras que descrevessem aquele tipo de coisa. Pensou arduamente e chegou a coçar a cabeça na tentativa de encontrar algo, mas falhou. Disse a palavra que lhe veio à cabeça: — Por você ter se tornado humana.

— Isso não faz o menor sentido. Eu sempre fui humana. — Celina cerrou os olhos evidenciando o aumento de sua estranheza.

— Ah, é? — Aldren duvidou e, ao mesmo tempo, revisitou em suas memórias o momento de quando conheceu Celina. Não demorou muito para, ao despertar dessas lembranças, ter ainda mais certeza de suas convicções. — O que você acha que te faz humana, Celina? O que te difere de todos os outros animais daqueles seus livros?

— Como se eu não soubesse de uma coisa tão simples — reclamou ela fechando o rosto como uma criança sendo desafiada.

— Vai. Responde logo.

Mesmo proferindo perguntas tão desconexas e banais, Aldren se mantinha amistoso enquanto demonstrava um sorriso sério que poucos conseguiriam repetir.

— A principal característica, mas não a única, é a nossa capacidade de pensar e entender mais do que o resto dos animais e...

— Errado. — o rapaz interrompeu sem ensaios. Demonstrou uma fagulha de irritação, mas durou apenas uma fração de segundo, voltou ao tom anterior de sua gentileza característica. — É isso aqui.

Com o dedo indicador, Aldren apontou para o seu próprio peito.

— Não, eu tenho certeza que você está errado. A maioria dos animais tem um coração ou algo que o substitua.

— Aff. — o rapaz respirou fundo e balançou a cabeça negativamente algumas vezes antes de continuar. — Não é o coração. É o que você carrega nele. Sabe, há um tempo atrás, você calculava cada passo, cada movimento seu. Era como se estivesse jogando xadrez, sabe-se lá contra quem, o tempo todo. Mas agora não. Agora eu sinto que você é outra pessoa. No começo, eu até achei que fosse apenas uma impressão minha, mas o que você fez hoje... O que você fez pelo Colth, se arriscando e salvando ele, apenas por você se importar, provou que a minha impressão estava certa, e isso me deixa muito feliz, pode acreditar.

O sorriso e os olhos de Aldren demonstravam a sua mais pura sinceridade. Celina cativou-se por um segundo, mas em seguida desviou o olhar e respondeu escondendo qualquer fragmento de sentimento que estava sentindo:

— Não seria bom ter uma pessoa ferida no grupo. Eu só garanti que o Colth não virasse um problema para nós.

Assim que terminou a sua fala, a garota se virou e começou a caminhar em direção a janela sobre a pia da cozinha. Aldren ficou imóvel por mais alguns segundos antes de soltar um suspiro com a nuance de um sorriso:

— Ah... — satisfeito — Bom, até mais tarde, Celina.

— Até... — ela respondeu observando o exterior entre as cortinas, ainda pensativa.

Aldren deixou a cozinha, e em seguida a casa, para trás se dirigindo para a praça em objetivo de encontrar Bertha, como ordenado por Garta.

Enquanto isso, a outra dupla, retirava os corpos dos policiais de lugares que pudessem ser visíveis a qualquer um que passasse pela apertada rua daquela casa marcada por buracos de disparos. Garta e Colth esconderam os cadáveres em uma das várias vielas do entorno. O lugar estava deserto, nenhum morador da região parecia ousar sair de suas casas.

O policial que estava apenas inconsciente foi devidamente amarrado e colocado em um dos armários para não chamar a atenção.

— Isso é o que podemos fazer, por enquanto. — disse Garta trancando o armário com a sensação de objetivo concluído em meio a sala manchada de sangue com Colth lhe acompanhando.

Ela esperava por uma resposta do rapaz, mas não veio. Quando colocou os seus olhos nele, o viu cabisbaixo e pensativo.

— Aí, não pensa nisso — disse ela. Não como uma ordem, mas sim como um conselho.

— Será que estamos fazendo a coisa certa? — perguntou Colth enquanto encarava a marca de sangue do chão da sala.

Garta hesitou, desviou o olhar e respirou fundo para deixar de lado o tom áspero que fazia questão de carregar.

— Você falou que sua irmã está em Toesane, não é?

— A Nya? Sim... — respondeu ele sem entender o motivo da pergunta, continuou encarando o vermelho impregnado no tapete.

— E ela tem uma filha, certo?

— Isso, Agnes. Como você...

— O Aldren me contou.

— Aquele tagarela...

— Já imaginou que a Agnes poderia estar na situação da Iara? — Garta mantinha a sua seriedade, mas o modo como falava, era completamente diferente do que vinha usando com Colth. A sua gentileza era estranhada por ele.

— ...

— Você salvou aquela garota. Aquela família lá no porão, poderia não existir mais, caso você não tivesse nos ajudado.

— Eu não fiz nada. Na verdade, só atrapalhei.

— Então seja mais forte e deixe de atrapalhar. — foi direta. — Mas nunca deixe os mais fracos sofrerem por algo que você pode evitar. Afinal, você não quer que as pessoas pelas quais você preza sofram, não é Colth?

O rapaz baixou a cabeça novamente, processava as palavras deixando transparecer que seus sentimentos conflituavam.

— E mais uma coisa, desculpe por fazer você ter que lidar com tudo isso. — continuou ela com um tom ainda mais gentil.

O rapaz voltou a levantar a cabeça suspeitando das palavras. Encontrou os olhos sensibilizados da mulher por um momento antes de ela esconder seu rosto atrás de seus cabelos escuros se virando.

A guardiã, desconfortável com a sua própria atitude, se desfez da gentileza e começou a caminhar em direção a janela. Com os passos pesados, seguiu em objetivo de verificar o perímetro exterior.

— Garta, eu é quem deveria estar pedindo desculpas — respondeu Colth chamando a atenção dela.

— Esquece isso. Você não deveria ficar se lamentando por ter salvado uma família inocente.

 — Tem razão... — Colth finalmente aceitava a situação, ou simplesmente tratou de esquece-la, como dito. — Agora é só esperar?

O rapaz escorou as suas costas em uma das paredes da sala rogando para que nada de empolgante acontecesse dali pra frente.

— Esperar e proteger — respondeu Garta percebendo o receio do outro. — Não se preocupe, vai dar tudo certo. Além disso, eu posso usar o deslocamento, se for necessário.

— Escuta, essa sua habilidade. Como foi que você a descobriu?

— Para falar a verdade, eu não lembro. Eu acho que deve ser do tipo de coisa que não se aprende, você incorpora e esquece como aprendeu. Tipo aprender a andar ou falar. Mas bem, a primeira lembrança que eu tenho dessa habilidade é a de quando eu me separei do meu irmão.

— O Hikki? — perguntou Colth e teve a confirmação através de um aceno de Garta. Em seguida ele continuou: — Entendi. Por que o seu irmão não está com você? Aquele lugar, o mundo de Finn, não é perigoso?

— Bom, faz muito tempo que ele não vem para Tera. — Garta dizia em tom pouco pensativo enquanto voltava a visualizar o que se passava no exterior da casa pela janela, mas nada parecia se mover lá fora. — E sim, ele está seguro, pode se dizer que ele é uma pessoa importante naquele mundo.

— Com aquele castelo e até com criadas, ele parecia mesmo importante. — Colth sentiu a inveja massageando a sua garganta. — Eu também não voltaria para esse mundo.

— Não é tão simples assim. Aconteceram algumas... coisas — sensibilizou-se ela. — Eu e o Hikki fomos perseguidos por vários meses. Éramos tidos como uma maldição que assombrava a nossa vila, tudo o que acontecia de ruim por lá, era imediatamente atribuído a nós. No começo era só um rumor, mas as coisas começaram a aumentar, a ponto de isso tudo virar um grande boato e toda Taemar ficar sabendo.

— Nossa...

— Pouco tempo depois, o império começou uma ofensiva em direção a Taemar. É claro que os apontados como culpados daquela má sorte foram os “irmãos da maldição”. Por isso começamos a ser perseguidos e, então... — Garta freou as suas palavras como se estivesse evitando algo acidental. Após um segundo pensativo com os olhos perdidos, ela continuou: — E então, Hikki não aguentou mais, ele se afugentou na fortaleza Última no mundo de Finn e desde então nunca mais voltou.

— Foi nessa época que você conheceu o Gerente?

— Quase isso. Bem, eu levava o que fosse necessário para a sobrevivência do Hikki. — Garta mergulhava em suas próprias lembranças. — Em uma das minhas buscas por suprimentos, eu encontrei o Gerente. Na verdade, ele me encontrou e... — foi interrompida por um som estranho.

As atenções foram roubadas por sons de estática perdida no ar. Ambos se olharam perguntando-se da origem e do motivo daquilo.

Garta seguiu o ruído cautelosamente, seus ouvidos farejaram o som vindo de baixo. Abaixo de seus pés, previu o que encontraria e afastou o tapete avermelhado para revelar as madeiras envelhecidas do piso da sala.

— O que você está fazendo? — perguntou Colth estranhando a ação.

— Quieto — respondeu ela fria se agachando e em seguida colocando o ouvido sobre a superfície do chão. Sussurrou: — Achei.

Garta colocou os seus dedos entre as tábuas do piso e, enquanto era julgada pelos olhos curiosos de Colth, puxou a madeira com força para arrebentar o prego enferrujado que mantinha a peça no lugar.

Sorriu com o canto da boca ao ter suas suspeitas confirmadas. Um compartimento secreto de baixo do piso guardava um aparelho eletrônico reconhecível.

— O rádio do Oskar...

— Um rádio? — perguntou Colth em continua curiosidade. — Por que tem um rádio no chão?

— Idiota, não é um simples rádio — respondeu ela em bom humor.

Alguém... escuta? Bzzz. — O som abafado vindo do alto falante da caixa de madeira enchia a expressão animada de Garta, até porque, ela reconhecia aquela voz feminina mesmo em meio a tanta interferência.

— Eu nunca tinha visto um rádio tão pequeno assim... — Colth continuou a expor a sua completa ignorância quanto aquilo.

Garta o ignorou. Segurou com uma das mãos a pequena concha de metal acoplada na caixa de madeira por um fio elétrico e, girando um dos dois interruptores do aparelho, respondeu:

— Estou ouvindo.

Colth franziu a testa de modo a estranhar a atitude completamente absurda dela.

Garta? Que bom que respondeu. Você precisa vir para o restaurante, imediatamente.

— C-como que a radialista sabe o seu nome? — Colth se espantou boquiaberto. — Espera. Essa aí é a...

— O que aconteceu, Bertha? — perguntou Garta utilizando o microfone em mãos.

O Gerente. O Gerente está aqui.

— Droga... — sussurrou ela se punindo. Pensou por um segundo antes de responder hesitante. — Certo. Estou indo.

Garta não esperou a resposta, colocou o aparelho de volta no compartimento do chão e o escondeu para, sem se afirmar, começar a andar em direção a cozinha.

— Espera. O que está acontecendo, Garta? — perguntou Colth alheio à situação.

— Problema. Preciso levar a Celina de volta. — A resposta aflita de Garta, sem suspender os seus passos determinados, confundiam Colth.

— O quê? Por que? E aquele papo de não ser completamente seguro e...

— Isso não importa mais, Colth. — Ela abriu a porta que dava acesso ao porão e não perdeu tempo. — Celina! Vamos embora.

O chamado do alto da escada era suficiente para ter a garota do porão apressada. Em segundos, Celina subiu a escada para encontrar Garta célere.

— Espera. E os moradores? — perguntou Colth confuso. Não era para menos, a guardiã de Finn mudou o seu comportamento e seus planos em questões de segundos. — Você não disse que eles...

— Eles vão ficar bem! — A mulher encarou Colth dando um basta em suas perguntas. Ele, por sua vez, se surpreendeu e calou-se. Garta deu as costas: — Vamos, Celina.

A garota acompanhou a líder sem fazer perguntas, apenas um olhar para o rosto acuado de Colth era o suficiente para entender a situação. Ambas seguiram em direção a saída da casa.

— Vocês estão indo embora? — A voz meiga infantil entristecida veio da porta do porão e acertou Colth em cheio.

O rapaz não se preocupou em ficar para trás e atrasar-se. Se virou com um sorriso no rosto para não preocupar a garotinha:

— Sim, nós temos que ir. Cuide bem de seus pais, Iara. — Colth sorriu para a criança que transpareceu confiança imediata.

— Iara, filha. Não sai correndo assim. — Disse a mãe ao subir as escadas e sair do porão. Encontrou a criança e Colth já na cozinha — Hã? Cadê a Garta?

— Ela acabou de sair — respondeu o rapaz sem olhar diretamente para a dona da casa.

— É uma pena. Queria ter feito algo por ela. Bom, por favor agradeça a ela em meu nome. Aliás, qual é o seu nome?

— Colth.

— Obrigada, Colth. Da próxima vez que vocês vierem, eu farei um jantar maravilhoso de agradecimento. — A mulher sorriu radiante.

— Oba. A Garta vai vir de novo — comemorou a garotinha em meio aos adultos.

— É claro que vai, Iara. Pare de ser tão dramática. — A mãe respondeu e arrancou um sorriso verdadeiro de Colth em nostalgia despercebida.

— Bom... — o rapaz hesitou pensativo. — Eu preciso ir. Foi um prazer conhece-las.

— Eu digo o mesmo.

— Até mais, Colth. — A garotinha se despediu do rapaz acenando com a palma da mão.

— Até...

Colth foi atingido por um sentimento árduo ao deixar a casa, mas se esforçou para não olhar para trás e ignorar enfático tudo. Se apressou pelas ruas apertadas para alcançar Celina e Garta.



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