Volume 1

Capítulo 31: O Guia

Sienna sentou-se na frente ao lado de Morpheus e ficou olhando para o vilarejo à frente. Era um pequeno povoado muito diferente da cidade de Jaisen e Alraml.

Casas de madeira espalhadas de forma desordenada ocupavam toda a vista da garota. Ruas de areia batida; bem diferente das feitas de rocha e pedra de Jaisen e Alraml.

Havia uma boa variação de cores nas roupas, mas todas em tons mais escuros e de segunda mão. O povo parecia igual; mesma cor, mesmas mãos, mesmo cabelo e mesmos olhos.

A carruagem foi se aproximando devagar e continuamente, mas a reação do povo foi bem diferente do que ela pensava que seria.

As mães colocaram os filhos para dentro, os homens começaram a se reunir e, assim que chegaram, um ancião surgiu.

— O que querem forasteiros? — interrogou o homem que possuía poucos fios brancos na cabeça.

— Queremos um guia para atravessar pelo Deserto de Demônios.

Vozes começaram a soar por detrás do ancião. Ele então levantou um dos olhos caídos e respondeu:

— Nenhum louco atravessaria aquele lugar. Dê a volta.

Morpheus desceu da carruagem e se aproximou do ancião. O seu corpo inteiro estava tampado por um capuz negro que lhe protegia do sol, por isso ele parecia ainda mais aterrorizante que o normal.

— Sei que tem um louco nesse lugar. Leve-me até ele; você não vai se arrepender.

De repente, ele puxou uma moeda dourada e jogou sobre as mãos do ancião que imediatamente guardou em um bolso para que ninguém visse.

 Sua atitude perante o homem de preto também mudou quase que no mesmo instante.

— Ah! Querido anfitrião, seja bem-vindo. Claro, claro, sei de quem está falando, embora possa ser um problema. A filha dele está muito doente, o senhor sabe.

— Eu sou médico.

— Médico? Então é perfeito. Abram caminho! Ele é um velho amigo meu!

Sienna viu toda a situação e outra vez sentiu-se como se estivesse dentro daquele Cassino. Dinheiro era realmente uma arma poderosa.

A população estranhou a mudança súbita, porém obedeceram as ordens do ancião. Entretanto, quando tudo parecia correr bem, um grito alto ressoou:

— U-um monstro!

Ângela que estava deitada na parte detrás, tirando um cochilo, acordou e deu de cara com um dos humanos.

Sienna sentiu a raiva lhe percorrer da cabeça aos pés, mas segurou seus sentimentos.

Morpheus tomou a dianteira.

— Está tudo sobre controle. — Ele jogou outra moeda na direção do ancião. — Ela é inofensiva. Eu posso afirmar.

— Cof-cof! — O ancião deu uma tossida alta. — Bem, senhor, consegue afirmar mesmo isso?

— Posso sim. — Uma resposta rápida e clara.

O idoso então permitiu a entrada, mesmo que os outros desaprovassem. Ângela não deixou de perceber o rosto irritado de Sienna e a confortou, dizendo que não se importava.

Eles então atravessaram pelas ruas de areia batida, fazendo a fumaça subir.

Pelas frestas, becos, janelas e buracos, Sienna conseguia sentir dezenas de olhos, mas estes não lhe observavam ou julgavam. Tudo era direcionado à “monstra” atrás dela.

Era diferente do olhar de cobiça. Era um medo irreal. Não era um terror pelo poder de Ângela, mas um tipo de medo diferente.

Como se sentissem que a qualquer momento, ela pudesse explodir. Simplesmente um preconceito irracional.

Sienna percebeu também que a ogra não parecia se importar muito, quase como se estivesse acostumada com aquele tipo de situação.

Ser julgada, observada e atacada por pessoas que nem sabiam de sua índole. Sienna inconscientemente colocou sua mão sobre a de sua mãe e sorriu, como se dissesse: “Está tudo bem.”

E Ângela pareceu entender, respondendo a mesma coisa:

— Está tudo bem.

 O grupo rapidamente chegou a uma pequena residência de não mais que dois quartos. Desceram os três da carruagem e Morpheus bateu na porta.

Quem abriu foi uma mulher que deu um pulo para trás assustada.

— Q-querido...!

— O que foi...?!

A reação do homem foi quase a mesma. O humor de Sienna ficou ainda pior com a situação.

Morpheus se interpôs à porta e rapidamente explicou:

— Eu sou médico. Gostaria de atravessar o Deserto de Demônios.

— Um médico? — A mulher perguntou com olhos de esperança que esqueceram o medo. — Querido... ele pode ajudar nossa filha.

O marido viu o rosto da esposa e olhou para o estranho grupo na porta. Ele ficou em transe por um momento, mas o seu instinto falou mais alto.

— Doutor, por favor, veja minha filha. Faço qualquer coisa depois disso.

Morpheus acenou com a cabeça e entrou na casa. Sienna e Ângela se entreolharam e sorriram.

Morpheus entrou na pequena residência. Era um lugar simples, mas muito bem cuidado. Ele se aproximou da cama onde a pálida garota estava deitada.

O suor frio escorria pela testa e o rosto estava vermelho. Ele pegou seus utensílios e começou a fazer uma análise dela.

Escutou os batimentos cardíacos, mediu a temperatura e fez algumas perguntas aos pais.

— Quando começou?

— Tem cerca de uma semana.

— Aconteceu algo de diferente?

— Não. — A mãe que respondeu essa pergunta. — Tudo normal.

— Hmm. Preciso de mais algum tempo.

Morpheus continuou os exames procurando descobrir causa, mas nada parecia fugir do padrão. Até que ele perguntou de novo aos pais.

— Nada realmente de diferente?

A mãe, já com raiva, gritou:

— Já dissemos! Você nem deve ser um médico de verdade!

O olhar frio de Morpheus irritava ainda mais a mulher. Surpreendentemente, o marido foi que a acalmou.

— Querida, se acalme. Ele é a nossa única opção. — Ele deu um abraço nela. — Senhor, por favor, seja mais específico.

O homem de preto deu um outro olhar na garota e prestou atenção principalmente na febre e palidez.

— Ela não esteve na cidade sob a montanha, correto?

— Correto. Nossa filha nunca esteve lá.

— Você esteve?

Com a pergunta de Morpheus, o rosto do homem de repente empalideceu.

— Sim, estive há cerca de 15 dias... mas eu não trouxe nada de lá.

— Sim, o senhor trouxe.

O casal se olhou assustado e Morpheus pegou algumas de suas ferramentas.

— Por favor, vão os dois para fora. Preciso ficar sozinho.

— Mas...! — A mãe tentou contestar, mas o pai colocou a mão em seu ombro e sacudiu a cabeça, saindo ambos da casa.

Do lado de fora, aguardavam os quatro. O pai andava de um lado para o outro se culpando e a mãe apenas chorava continuamente.

Algumas horas se passaram e nenhuma notícia foi dada. O marido impaciente tentou entrar na casa, mas a enorme mão verde da ogra o impediu.

— Confie nele — disse ela. — Morpheus é o melhor médico que eu conheço.

O homem viu o olhar sério e resoluto, assim desistiu de tentar entrar e confiou. Alguns minutos depois, chegou a notícia.

Morpheus saiu da sala com um balde de madeira na mão. Todos aguardavam ansiosos.

— Eu retirei a maior parte deles. Ela pode vomitar por um tempo, mas é algo bom. O corpo dela vai se livrar dos restantes...

Ele não conseguiu terminar o diagnóstico, pois a mãe desesperada entrou na casa e o pai perguntou:

— E-ela... está bem?

Morpheus não precisou responder, pois um grito de alegria ressoou, junto da voz, ainda um pouco fraca, da menina.

— Estou bem, mamãe...

O pai tentou entrar correndo, mas foi parado pelo homem de preto que lhe mostrou o balde.

— Vermes dos Esgotos são criaturas que gostam de viver em lugares úmidos, como a cidade sob a montanha, mas eles tem o costume de colocar ovos na comida das pessoas. Um ser humano adulto dissolve os ovos sem problemas, mas uma criança não consegue.

— Mas eu não trouxe comida nenhuma.

— Os ovos são minúsculos. Você pode ter dado um beijo na sua esposa ou na bochecha da sua filha e resultou na passagem. Mais cuidado da próxima vez, ou pode ser fatal.

Dentro do balde, havia uma dúzia de enormes vermes de cor azul que nadavam no vômito da garota, criando náuseas em qualquer um que visse.

Sienna viu toda a cena e ficou maravilhada com as habilidades de Morpheus. Ele não parecia se abalar com nada.

— Como parte do acordo, amanhã estaremos partindo. Você será nosso guia.

O homem nem pensou duas vezes. Acenou com a cabeça e concordou com tudo. Sienna achava que se Morpheus pedisse para ele se matar; talvez ele o tivesse feito.

A garota então viu o desenrolar das coisas. O homem indo pedir desculpas a família e o agradecimento pela ajuda que era dado repetidas vezes.

O que deixou Sienna mais feliz, foi o olhar do homem ter mudado depois de tudo. Ele não olhava para Ângela com os mesmos olhos de antes.

Apesar de Morpheus fazer a maior parte do trabalho, Ângela recebeu um pouquinho dos créditos e ficou parecendo muito bem na história, ainda mais pelo incentivo que ela deu.

Com o guia, eles partiram bem cedo na manhã seguinte. O sol ainda estava nascendo no horizonte, mas Morpheus estava com muita pressa.

Na noite anterior, o familiar que mandou com a carta que avisava sobre sua viagem, retornou.

E ele voltou com péssimas notícias.

“O jovem mestre retornou...”



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