Volume 1

Capítulo 3: Corvos de Odin

Os olhos de Sienna se abriram devagar, ela ergueu a mão e colocou sobre a cabeça. Ao olhar os arredores, viu Ângela preparando algo para comerem.

“Aquilo foi outro pesadelo? Não... era real demais, senti como se minha alma estivesse sendo devorada”, pensou um pouco assustada.

Sienna tinha dúvidas intermináveis. O que eram os olhos vermelhos? Quem eram as pessoas que assombravam seus pesadelos? E a dúvida que tinha maior curiosidade:

“Quem era a mulher dos meus sonhos?”

Levantando devagar, sofria uma leve tontura, mas logo se recuperou. Ângela viu a jovem em bom estado, então acreditou que tudo havia corrido bem. Aqueles que são reprovados no teste sofrem de dores fortes, dores perceptíveis até para aqueles de fora.

Ângela tinha certeza de que tudo correria bem, por isso ignorou a chance de Sienna ter participado do teste, ou até mesmo passado nele, até certo ponto Ângela era ingênua.

— Sienna, preparei um pouco de comida. Você dormiu um pouco enquanto passávamos pela floresta, teve um bom sono?

Apesar de saber tudo, Ângela decidiu encenar. Sienna achou estranho, mas não conseguia ligar seus sonhos ao comportamento de Ângela.

— Aquele campo de flores... — comentou a jovem.

— Era um belo campo, não é?

— Era...

“Ângela não parece saber de nada, não é possível que tenha sido apenas flores... Estou cansada demais.”

Suspirar era sua única escolha. Naquele momento, suas dúvidas não seriam esclarecidas. Ao passar um pouco sua tontura, salvou o estranho evento em sua memória e decidiu procurar a resposta em outro momento.

Sua atenção foi atraída para a comida que Ângela fazia. A ogra preparava uma espécie de carne em galhos, Sienna só não conseguia descobrir que carne era essa, sem conseguir descobrir após uma segunda análise decidiu perguntar:

— Que carne é essa?

— Carne de lobo. — O ogra respondeu com um sorriso.

— Você caçou?

— Não, estava pelo mato, ainda fresca. Estranho, não é?

— É...

 

 

— Capitão! Chegamos ao porto! — gritou um marinheiro.

Um pequeno navio veleiro aportou em um porto abandonado. Era apenas uma longa prancha de madeira com alguns lugares para prender o barco, alguns pontos até mesmo estavam em pedaços, o lugar estava claramente abandonado.

Os arredores também não eram nada demais, uma pequena praia em uma baia isolada cercada de rochas nos dois lados e uma floresta densa à frente, sendo o único caminho para dentro daquela ilha à qual alcançaram.

— Truman! Essa ilha está nos mapas? — chamou o capitão do navio.

O capitão era um homem gordo e baixo, parecendo um pouco com um porco. Sua característica mais marcante era seu bigode, era longo e penteado para cima, se parecendo com um semicírculo todo branco.

Um jovem correu até o capitão com um mapa na mão e um sorriso grande no rosto, esse era Truman, um marujo.

— Capitão Willy! Não vai acreditar! Essa ilha não aparece em nenhum mapa, nem mesmo nos mapas antigos! — Truman gritava entusiasmado, mas o capitão só lhe deu um olhar frio.

— Então é uma ilha deserta inútil?

— Hã...? Não!

— Tem ouro ou riquezas nesse lugar?

— Provavelmente não, essa parece ser uma ilha vulcânica...

— Então é inútil, vamos apenas esperar nosso contratante aparecer.

— Ah. Entendo... — Truman ficou bem para baixo com a reação fria de seu capitão. — Posso ao menos dar uma olhada nós arredores da ilha?

— Vá, mas fique por perto, se você se perder teremos dificuldades em voltar para casa. 

 Willy não se importava com o garoto, apenas com o que ele lhe proporcionava. Contudo, o jovem não percebia nada, e achava que seu capitão gostava dele.

— Ficarei pela praia. Desejo apenas catalogar algumas plantas e conchas.

— Não quero saber o que vai fazer, só vá.

O capitão virou de costas e acenou com a mão para cima e para baixo, indicando para que o jovem fosse logo. Truman abriu outro sorriso e partiu para a praia.

Truman era ainda muito jovem, tinha cerca de 14 anos apenas, mas já era um aventureiro e especialista em ilhas, além de ser um navegador nato. O amor que ele tinha pelo desconhecido assustava os demais marujos, principalmente o capitão Willy.

Dentro do navio, Willy chamou por outro marujo.

— Algum sinal do homem?

— Nada ainda, ele disse apenas para aguardamos.

— Aguardamos? Quanto tempo?

— Não sei, não gosto de ficar próximo daquele homem, ele me causa calafrios.

— Droga, estou cercado de inúteis! — O capitão gritou e foi em direção a cabine de seu contratante.

Tocou a porta devagar três vezes e um som ressoou de lá, permitindo sua entrada. Abrindo a porta com cuidado, se deparou com o contratante parado de pé, analisando alguns documentos que tinham em cima da mesa.

O capitão sempre se surpreendia ao ver o homem. Ele era alto, magro e vestia um terno todo preto, usava até uma gravata também preta e calças que iam até os pés, onde um par de sapatos sociais estava. Os olhos negros, corpo esquio, rosto fino e cabelo escuro combinavam muito com suas roupas, também era bem jovem, parecia não ter mais de 25 anos.

“Ele com certeza é um nobre para ter uma aparência tão incrível.”

— Estava ocupado. Feche a porta, não gosto do sol. 

— Ah. Está bem. — O capitão concordou e fechou com velocidade a porta atrás dele. O quarto ficou todo escuro e o homem de preto acendeu uma vela.

— O que foi?  — Ele não se importava com a presença do capitão e continuou mexendo nos papéis.

“Espera? Como ele estava enxergando antes?”, pensou Willy um pouco nervoso. O capitão acabou encarando seu contratante por alguns segundos, o que lhe fez sentir a energia estranha que emanava do homem.

— Hã?... Desculpe-me, Senhor Furlan. — Willy engoliu em cego, deu uma leve risada e continuou: — Já chegamos no lugar que você pediu.

— O marujo que veio antes já me notificou disso. 

— Ele me contou, mas gostaria de saber o quanto teremos que aguardar...

— Até amanhã de manhã. 

— Mas... 

— O quê? — Furlan encarou o capitão que deu um passo para trás assustado e voltou a folhear seus documentos, sem ao menos perceber o estado aterrorizado em que Willy encontrava-se.

— Já estou saindo... — disse nervoso tentando escapar o mais rápido possível daquela armadilha do diabo.

— Espere. 

Com a voz do homem soando, Willy engoliu outra vez em seco e se virou com um sorriso falso no rosto.

— Pode falar?

— Aqui está o pagamento pela viagem, pode ir. — Furlan arremessou um saco de moedas para Willy que, com alegria, os agarrou e seu sorriso falso se tornou um sorriso ganancioso. 

O homem percebeu seu erro e, rapidamente,  despediu-se, saindo da cabine. Ao fechar a porta, Morpheus olhou para a chama em sua frente, nesse momento a imagem do rosto de Ângela passou por sua mente.

— Espero que chegue rápido Ângela... — Ao terminar de falar, Morpheus sobrou a vela e voltou a ler seus papéis na profunda escuridão do quarto.

 

 

Sienna e Ângela voltaram à atravessar a mata, as duas estavam tranquilas. Ao olhar seu Grimório, Sienna teve algumas dúvidas.

— Dona Ângela. 

— Oi? O que foi, senhorita?

— Você é uma maga, não é? 

— Bem... Quase isso. Na verdade, sou sim uma maga, mas sou muito ruim em magia. Não me considero uma por isso.

— Se você não é uma maga, o que você é?

— Sou uma guerreira! — Ao falar sobre ser uma guerreira, Ângela abriu um grande sorriso. — Guerreiros são os mais fortes de todos!

— Que incrível... Os guerreiros também usam mana e magia? 

— Sim e não, usamos mana, mas não magia. Envolvemos mana ao redor de nossos corpos, criando assim a Aura, que potencializa nossa força, resistência e velocidade, além de outras coisas... Quanto mais mana conseguimos envolver, mais força temos a curto prazo e quanto mais treinamos, mais fortes nos tornamos a longo prazo.

— Então... Você deve ser muito forte, não é Dona Ângela?

A ogra abriu um sorriso orgulhoso.

— Eu sou a mais forte!

Assim, elas continuaram pelo caminho, até chegarem em uma situação complicada. As duas se depararam com um paredão de árvores, era impossível passar por ali de maneira normal.

— E agora, como atravessaremos? — perguntou Sienna se agarrando ao pescoço da ogra.

Ângela não se incomodou muito com aquilo e apenas colocou a cesta em que Sienna estava no chão. 

— Vou abrir caminho...

A ogra ficou de frente para as árvores, colocou a mão em cima de uma delas e respirou fundo. Logo, redirecionou um dos punhos para trás, ficando próximo ao peito. Por um milésimo de segundo, Sienna viu o ar se distorcer, em seguida, Ângela socou.

Um estrondo ressoou por toda a mata. Um buraco enorme, cinco vezes maior que Ângela, surgiu no lugar onde estavam as árvores. Ao olhar para cima, Sienna viu várias folhas caindo em sua cabeça e seus arredores, como uma bela chuva verde.

Sienna abriu a boca para essa linda visão, surpresa com a majestade de tal ato. Ao olhar para Ângela, Sienna viu a ogra parada, com um sorriso no rosto e o punho limpo.

“Ela é a mais forte...”

 Pegando a cesta e colocando nas costas, Ângela passou pela abertura e Sienna conseguiu ver o lugar onde estavam, centenas de metros acima das nuvens. O lugar onde estavam era tão alto que não se podia nem ao menos ver o chão.

— Dona Ângela, que lugar é esse? 

— Estamos na ilha paraíso... Tecnicamente estamos no tronco de Yggdrasil.

Sienna engoliu seco e Ângela se preparou para descer. A jovem já havia lido sobre a ilha paraíso em contos de fada.

“Ao adentrar Gardenheim, o Reino dos elfos, antes é necessário passar pelo teste da árvore do mundo, Yggdrasil, no lar das fadas e dos monstros, a ilha paraíso.” 

Essa era uma citação de um conto de fadas que a jovem lia em sua infância, nunca imaginou que a ilha existisse de verdade. No conto era contada a história de uma antiga tribo de elfos que morava nas raízes da árvore, quando um terrível demônio surgiu, mas eles subiram pelo tronco até os céus, fugindo do demônio e indo para o Arquipélago de Ilhas Gardenheim.

Era um conto infantil com um final feliz. Sienna nunca havia ligado muito para ele, mas agora uma dúvida assombrava sua mente.

“Será que o conto é real?”

Ângela começou a descer. Concentrava energia na pontas dos dedos e perfurava a madeira com força. O som do impacto era poderoso. A madeira da árvore parecia rocha maciça, porém pela força que Ângela demostrou antes, Sienna se surpreendeu um pouco pela resistência dela.

“Dona Ângela consegue perfurar rochas com facilidade, mas está com dificuldade em perfurar a casca de uma árvore?”

Aos poucos, Ângela foi descendo em um ritmo continuo, tudo estava correndo bem. Em um certo momento ela parou. A ogra olhou para cima por alguns instantes, buscava algo que Sienna não conseguia ver.

— O que foi dona Ângela? 

— Se prepare Sienna, eles estão aqui.

Antes que Sienna pudesse perguntar quem estava ali, Ângela acelerou sua velocidade de descida. A ogra se soltava do tronco e se agarrava outra vez nele alguns metros abaixo. Logo, Sienna começou a ouvir sons de asas batendo.

— O que é isso? Quem está aqui?!

Os corvos de Odin...

O som das asas tornou-se uma tempestade. Ao olhar para cima, Sienna teve uma visão aterrorizante. Centenas de pontos pretos ocupavam o céu e, entre eles, um pássaro gigantesco pairava observando as duas.

Possuía vários metros, tinha uma dúzia de olhos vermelhos e asas com ossos de fora, parecendo um gigantesco pássaro zumbi. Ao redor do corvo gigante, se encontravam múltiplas versões menores dele, milhares delas. Cada ponto preto que cobria o céu era um corvo.

Ângela encarou os corvos com as sobrancelhas enrugadas, ela tinha uma clara expressão de seriedade e um pouco de frustração. 

— Dona Ângela... — Sienna não conseguia nem ao menos terminar sua frase, seu corpo tremia por inteiro e ela começou a ficar branca.

Logo, um grunhido ressoou. O corvo gigante abriu suas asas planando devagar e como se isso fosse um ordem, os demais corvos atacaram, descendo em alta velocidade na direção das duas.

— Abaixe a cabeça, isso vai ser difícil.

Tentando descer ainda mais rápido, Ângela perfurava a árvore com ainda mais força. Por consequência disso, ela não conseguia concentrar mana corretamente, ferindo suas duas mãos. Os demais corvos começaram a se aproximar.

Eles disparavam em direção ao tronco com uma velocidade incrível. Os ataques deles eram suicidas, chocando-se contra a árvore no objetivo de acertar seu alvo, Ângela e Sienna. A ogra saltava de um lado para o outro desviando dos ataques, nesse processo suas mãos ficavam cada vez mais devastadas.

— Ah! — gritou a ogra em dor.

— Dona Ângela! Seus dedos!

Ao olhar para mão de Ângela, Sienna não pode deixar de ficar em choque. A jovem colocou a mão na boca para tampar o grito de desespero que vinha de seu interior. As mãos de Dona Ângela se encontravam em carne viva, alguns dedos já estavam até mesmo quebrados e as unhas já havia sido arrancadas há muito tempo.

Com o grunhir do corvo gigante, os pequenos ficaram ainda mais raivosos com seus ataques. Os corvos usavam os bicos para cortar Ângela, seus bicos eram tão afiados quanto espadas. Contudo, ao se chocarem contra o tronco, na tentativa de acertar a ogra, eles também se matavam, pela dureza da casca.

A ogra puxou o ar com força e preparou um ataque. Os corvos continuaram em seu ímpeto, com a ogra parada preparando o ataque, uma dúzia deles acertaram ela, que apenas teve tempo de proteger Sienna.

Batendo no corpo duro da ogra, os corvos acabaram mortos, mas ainda haviam a ferido. Assim que as dúzias de corvos bateram em seu corpo, Ângela terminou seu ataque.

— Tampe os ouvidos rápido! — Com o rápido grito de Ângela, Sienna tampou os seus ouvidos e observou as veias do pescoço de Ângela incharem até que se pudesse até mesmo ver o sangue circulando por elas. Após isso, Ângela soltou seu ataque. — AAAARRRG!

Um poderoso rugido quebrou o ar ao redor, enviando uma onda de choque visível a olho nu pelo espaço. Os corvos foram arremessados para trás pela onda, alguns perdendo a capacidade de lutar no mesmo instante, no entanto, o verdadeiro ataque veio em seguida. 

Como se fossem estrelas cadentes, os corvos despencaram dos céus, um a um. Os ouvidos deles sangravam e suas consciências já haviam sido apagadas. O som que Ângela emitiu pelo ar, destruiu por completo os tímpanos das bestas.

Observando seus subordinados caírem dos céus, o maior dos corvos bateu suas asas e seus vários olhos focaram no alvo de sua raiva. A ogra e a menina estavam correndo um sério perigo.



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