Volume 1

Capítulo 11: Viúva

Sienna caminhou em passos lentos, descendo a colina e indo na direção da cidade. Apesar da surpresa que teve ao presenciar a colorida e movimentada cidade, ela retomou o humor pessimista e a raiva pulsante que sentia por Truman.

O jovem, por outro lado, tinha um sorriso enorme no rosto e falava sobre múltiplos assuntos, desde como a cidade era bonita, até sobre quantos tipos de conchas existiam, mas a garota de cabelos brancos não prestava atenção. 

Ele percebeu o rosto aborrecido dela e calou-se, deliberando sobre a razão para tê-la irritado tanto.  Já havia pedido desculpas, mesmo achando que estava certo, e decidiu acompanhá-la na viagem ao porto, mesmo assim não conseguia fazer as pazes. Suspirando, continuou seguindo cabisbaixo pela pedregosa estrada. 

A cada passo dado pela dupla, aproximavam-se mais da cidade. Ela não era cercada por muros, então era comum ver casas mais afastadas, sendo sempre pequenas fazendas ou barracos de barro. 

Tudo era bem diferente do centro da cidade, poderia até mesmo ser chamado de periferia. Contudo, Sienna não enxergava aquilo como algo ruim. Lembrou-se de sua pequena casa e se sentia representada pelas humildes construções de barro.

Logo, o sentimento de felicidade que sentiu ao ver aquilo, tornou-se ainda mais raiva por Truman. Ela encarou o rosto do jovem, apertou o punho com força, mas ao ver ele para baixo, assim como ela, decidiu não fazer nada. Ao menos ele estava a acompanhando.

“Esse idiota...” Apesar de pensar aquilo dele, Sienna ainda entendeu que o jovem somente quis lhe proteger.

Suspirando, ela continuou seguindo em direção à cidade. O humor da dupla não era dos melhores. O calor, que fazia naquele dia, não contribuía em nada com a situação tensa entre os dois, tornando a viagem ainda pior.

Além da falta de muros, Sienna também notou que não havia guardas nos arredores. Os dois estavam adentrando no território de uma nação, mas não haviam sido parados em momento algum por qualquer tipo de autoridade.

— Truman — chamou ela, quebrando o silêncio entre os dois. — Não tem guardas ao redor da cidade?

— Não entendi a pergunta... Deveria ter guardas? — O menino respondeu com confusão.

Até Sienna, que viveu praticamente a vida inteira dentro de uma biblioteca, possuía o senso comum de que cidades precisavam ser protegidas por muros ou guardas. Por conta da resposta de Truman, sua mente achou uma resposta única baseada na sua errônea impressão do marujo.

“Ele é realmente um idiota.”

Uma cidade sem muros era uma novidade, mas sem guardas nas fronteiras era quase uma piada. Se uma pessoa contasse algo assim para ela, Sienna apenas riria. 

“Como um lugar desses se protege de inimigos?” Essa pergunta passou rapidamente pela mente dela.

Enquanto continuavam em frente, ela escutou uma voz.

— Truman! — exclamou uma senhora. — Como vai o capitão Willy? Vocês não tem tido problemas no mar, não é?

A senhora, que surgiu por detrás dos dois, tinha um sorriso gentil no rosto, carregando consigo algumas roupas molhadas. Observando os arredores, Sienna notou uma casa de barro, um pouco maior que as demais e havia um varal com roupas recém colocadas nele. A mulher já era uma idosa, passou há muito dos 70 anos, mesmo assim parecia ter resistido bem a passagem do tempo.

Ela era um pouco maior que Truman e também era bem magra, com pulsos tão finos quando os de Sienna, mas também com mãos calejadas, demonstrando uma vida de trabalhos manuais. O cabelo da mulher foi o que mais chamou atenção da menina, apesar da idade, os fios eram muito bem cuidados, ela possuía um pouco de vaidade.

Ao vê-la, Truman sorriu e se aproximou, dando-lhe um abraço.

— Estou ótimo! — respondeu com um grande sorriso. — O capitão e eu tivemos uma leve briga, então agora estou procurando um emprego novo.

— Briga? Faça logo as pazes com o Willy, você sabe que apesar de tudo ele gosta de você. — A idosa falou como se conhecesse os dois há muito tempo e continuou dando uma bronca em Truman. Ele voltou a estrada e continuou conversando com ela.

Sienna observou a casa da mulher e notou algumas coisas. Havia um balanço quebrado no quintal, junto com alguns brinquedos envelhecidos. No varal, além das roupas da idosa, também havia um uniforme incomum.

Ao ver aquela peça de roupa, Sienna sentiu dores fortes de cabeça. O uniforme era constituído de um sobretudo azul escuro, com ombreiras cinzas que eram ligadas aos antebraços por uma fina linha de tecido de mesma cor. No lado esquerdo do casaco, havia algumas medalhas e do direito dois emblemas

O emblema menor, que ficava na parte debaixo, era feito de uma material prateado e tinha a forma de um tridente bem simples. O outro tinha uma cor dourada e era constituído de um escudo com um sapo, uma espada, um cavalo e uma flor circulando ele por inteiro, todos em relevo claro.

Vendo aquilo e sentindo as dores, ela não sabia como reagir. Aquele símbolo parecia tão familiar, mas, por mais que tentasse lembrar de onde o viu, ele desaparecia de sua mente, como um sonho recente de alguém que acabou de acordar, simplesmente sumiu das memórias. 

Ei! Quem é essa contigo? — perguntou a humilde idosa. — É sua irmã?

Sienna passou a prestar atenção na mulher que era aparentemente gentil, pois sempre mantinha um sorriso no rosto. Se havia algo em que Sienna era boa, era em avaliar sorrisos, descobrir se eram reais ou apenas forçados, mas o da idosa era ilegível até para a menina.

Percebendo que estava sendo encarada, a garota de cabelos brancos abaixou a cabeça, tentando esconder os olhos, seguindo o pedido que Morpheus havia lhe feito.

— Não, não! Ela é apenas uma amiga. Hahaha.

A idosa reparou na ação da menina, acreditando que poderia ser apenas timidez.

— Venha aqui minha menina, eu não mordo. — Ela estendeu as mãos na direção da jovem, como se a convidasse para um abraço.

Sienna sentiu-se pressionada em se aproximar, mas não queria fazer desfeita para a idosa gentil. Ainda receosa, ela se aproximou com passos lentos para perto da mulher. Truman ficou para trás, estando bem afastado das duas.

Assim que chegou próximo da gentil idosa, Sienna levantou a cabeça lentamente e uma mudança drástica ocorreu. Naquele momento, o rosto da mulher ficou branco, as pupilas dela dilataram, o coração acelerou e com um rápido movimento de mãos, ela agarrou o ombro da garota e sussurrou:

— D-demônio...  

As unhas dela apertavam com força a pele de Sienna, um aperto tão forte que causou um leve corte em um dos ombros.

— Aí! — grunhiu a menina em voz baixa. 

“Essa mulher é louca?”, pensou ela.

O marujo que estava atrás de Sienna não percebeu nada de incomum. Em sua visão, a mulher estava com a cabeça baixa, conversando com a menina. Por isso, ele manteve um sorriso no rosto e apenas aproveitou a brisa que bateu.

Quando o vento acertou os cabelos de Sienna, eles o fizeram voar, tampando por um instante os olhos da menina. Vendo isso, a mulher logo percebeu o seu impulso e soltou a garota, mas continuou com o rosto branco e os olhos fissurados. 

— Me desculpe. — Ela murmurou com frieza. — Confundi você com outra pessoa.

Sienna pôs a mão no ombro, escondendo o ferimento. Ela tornou a abaixar a cabeça e falou:

— Está tudo bem... sei que foi apenas um acidente.

“Eu preciso ficar longe dessa mulher.” Sienna sentiu Truman agarrar o seu braço e lhe puxar de volta para a estrada.

— Obrigada, senhora! Precisamos ir embora agora. Outro dia faço uma visita.

“Obrigado! Finalmente esse idiota fez algo que preste.” 

Os dois voltaram a caminhar pela estrada. Quando estavam um pouco longe, Sienna voltou a olhar para a casa. O rosto branco desapareceu, pois substituído por um pequeno sorriso, mas os olhos assustadores ainda pareciam obcecados. Ao vê-los, a garota sentiu um arrepio  percorrer todo o corpo, desviou o olhar e continuou andando. A mulher parecia um espectro pronto para levá-la ao submundo.

Descobrir mais sobre a mulher era essencial, por isso Sienna queria perguntar se era parente de Truman. Contudo, ela escutou que a mulher não sabia se o jovem tinha uma irmã, logo a chance de serem parentes era baixa, mesmo assim decidiu seguir em frente.

— Truman, aquela mulher é a sua avó? — perguntou Sienna, carregando segredos nessa simples frase. Ela sabia que Truman não aguentaria falar apenas um pouco, ele era um verdadeiro tagarela 

— Não, ela é apenas uma amiga. Sabe, gosto de vir visitar ela as vezes. Sendo viúva nessa idade, tenho medo de que alguma coisa aconteça.

— Viúva? — Sienna lembrou do uniforme militar no varal. — O que aconteceu com o marido dela?

— Durante a Grande Guerra, muitos homens foram recrutados para o exército. Dizem por aí que o marido dela lutou nessa guerra, mas a única coisa que sobrou foi um uniforme militar. Alguns anos após a morte do pai, o filho dela fugiu e tornou-se um pirata, abandonando ela. — O jovem tinha uma expressão triste no rosto, pois sentia pena da gentil senhora que conhecia.

Suspirando, Sienna ainda permanecia confusa com a situação. A mulher havia ficado louca ao ver seus olhos. Eles realmente eram uma característica rara, mas chamar ela de demônio era um exagero, ao menos era o que Sienna pensava.

“Morpheus estava certo, preciso esconder meus olhos.”



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