Volume 1

Capítulo 1: Sienna

Hã?

Uma jovem menina abriu seus olhos um pouco assustada, tinha um livro no seu colo e baba escorria de sua boca.

— Outro pesadelo? Tenho que parar de ler esse livro...

No livro que carregava estava escrito “A Grande Guerra – Henrique Fernan".

Nele estava descrito a aparição do homem que destruiu o continente 35 anos atrás: O Senhor da Guerra. Toda vez que a jovem lia esse livro, acabava dormindo e pesadelos a assombravam.

Durante essa guerra que ficou conhecida como, A Grande Guerra, um homem guiou os 10 Demônios Ancestrais contra o continente inteiro. Devastou tudo o que havia e, após ser ferido, desapareceu sem deixar rastros.

A jovem, por ser muito jovem, não sabia bem o que sentia a respeito disso.

O rosto dela era fino, seus cabelos brancos eram longos, chegando próximo aos pés, o seu corpo pequeno, de uma criança de 5 anos, junto dos olhos vermelhos e pele branca, a faziam se parecer com um coelho, a menina era uma linda jovem.

Porém, ela não gostava de sua própria aparência, principalmente de seus olhos vermelhos, pois lembravam ela da aparência do Senhor da Guerra.

Mesmo com apenas 5 anos, ela conseguia entender tudo muito bem. A menina tinha percepção de sua própria existência e que os outros seres também tinham suas consciências, suas próprias maneiras de ver o mundo.

— Eu sou eu, eles são eles...

Essa era uma frase que a jovem gostava de dizer desde que aprendeu a falar. O que era surpreendente nisso tudo, foi a idade em que aprendeu a falar, ela tinha apenas 1 ano de vida. Desde que nasceu, a menina já tinha essa percepção de seus arredores e de sua mente.

Ela lembrava de ver o rosto de sua mãe, uma linda mulher de cabelos loiros e de seu pai, um homem alto, bonito que possuía os mesmo olhos vermelhos assustadores. Depois disso, suas memórias eram um pouco turvas, se lembrava apenas de que acordou em uma pequena casa no meio de uma clareira.

A jovem não se sentia mal com isso, tinha livros para ler, um lugar quente para dormir e alguém para cuidar dela. A menina ousava dizer que estava satisfeita com sua vida.

Olhando para o livro em sua mão, se lembrou de um resumo escrito nele.

“Durante a Grande Guerra, um homem protagonizou todo o caos. Ninguém o conhecia ou sabia seus objetivos. Guiando monstros e demônios, destruiu tudo o que havia pelo caminho. Começou avançando diretamente para o Império Sagrado, o mais poderoso dos países que se encontrava no centro do continente.

Ele devastou tudo, deixando apenas mortos para trás. Após essa investida, os reinos criaram a União que, como o nome indicava, era a fusão de vários exércitos de múltiplos reinos. Todos acharam que ocorreria um massacre naquele dia e foi o que ocorreu, um verdadeiro massacre.

As forças enviadas, após uma difícil luta, foram destruídas por completo. O Senhor da Guerra apenas passou por cima de tudo e continuou em frente, terminando de destruir tudo pelo caminho com os Demônios Ancestrais.

Após o confronto, ele acabou ferido e desapareceu da mesma maneira que surgiu, como um fantasma.”

A jovem passou a mão por cima do livro, sentiu a capa dura e seus detalhes feitos a mão. Não sabia o que sentir lendo o livro, não era nada de mais para ela, mas toda vez que o pegava sentia seu coração acelerar e sua cabeça doer, além dos pesadelos que a assombravam.

— Acho que vou ler outro livro. Preciso parar de ler essa coisa — comentou enquanto guardava o livro em uma prateleira.

O quarto em que estava era cheio de estantes, cada uma lotada de livros, todos já lidos pela menina. O chão do quarto tinha uma cor difícil de se descrever, era marrom como um todo, mas, por ser feito da madeira de uma macieira, possuía muitos tons diferentes.

Ao sentir o cheiro daquele lugar, a jovem abriu um pequeno sorriso satisfeito, não conseguindo deixar de engolir em seco pelo cheiro de maçã no ar. Aquela era a biblioteca pessoal dela, seu lugar favorito em todo seu pequeno mundo.

— Sienna! Venha comer!

A voz ressoou por toda a casa, a jovem, chamada Sienna, soltou o livro que estava prestes a pegar e, com um sorriso ainda maior, saiu de sua biblioteca.

Sienna desceu algumas escadas, passou por um quarto onde não podia entrar e chegou a uma outra sala.

Nessa sala havia uma mesa enorme, cadeiras enormes e talheres também enormes, tudo era gigante em comparação com a jovem. Havia apenas uma cadeira com alguns degraus que permitiam que ela sentasse na mesma altura da mesa.

No canto do lugar havia uma porta. De dentro dela uma criatura saiu, carregando uma panela. Os olhos de Sienna se concentraram na figura, suas pupilas ficaram duas vezes maiores, como se tivessem dois rubis em seus olhos e um sorriso singelo surgiu em seu rosto.

Logo um cheiro assaltou suas narinas, carne cozinhada no ponto certo, uma mistura ótima de temperos e especiarias, isso tudo tornava o sorriso de Sienna ainda maior.

Oh. Você já está aqui? Pensei que teria que chamar de novo.

— Boa tarde, Dona Ângela!

Ângela tinha uma aparência que não combinava com seu nome. A mulher tinha uma altura maior que a de dois homens adultos, presas salientes saiam de sua boca, além dos músculos que eram maiores que os de um fisiculturista e, isso tudo, complementado com sua pele de cor verde.

“Ainda me surpreendo com seu tamanho tão pequeno para uma ogra”, pensou.

A ogra sentou-se ao lado de Sienna e os enormes utensílios e outros itens na sala passaram a fazer sentido. Pegando uma concha, Ângela colocou um pouco do ensopado para Sienna e começou a comer direto da panela.

Sienna sentiu o cheiro dos temperos subir e engoliu em seco. Logo, a jovem pegou uma colher e começou a comer com um sorriso no rosto enquanto observava Ângela.

Ângela era a pessoa que cuidou de Sienna a vida toda, poderia se dizer que era sua própria mãe. As ações dela iam muito contra o que as pessoas acreditavam. Nos livros que Sienna possuía, os ogros eram colocados no mesmo patamar dos demônios, feras enlouquecidas que só conheciam a guerra e a morte.

Depois de encarar Ângela por tanto tempo, a ogra acabou notando. Mesmo cuidando de Sienna por anos, Ângela não conseguia lidar bem com a garota. Para Ângela, ela era uma pessoa muito incomum.

— O que foi tem alguma coisa errada?

A ogra, diferente de Sienna, comia sem cuidado, sem etiqueta alguma. Ela estava preocupada que isso estivesse incomodando a menina.

— Nada, só estou admirando.

— Deixe de ser boba e continue a comer.

Essa era uma cena comum entre as duas.

Sienna terminou de comer e voltou para a sua biblioteca, mas não antes de despedir-se da ogra.

— Até mais, Dona Ângela.

—  Até... — Dona Ângela sempre era receosa ao responder — mais.

Ao retornar a biblioteca, Sienna pegou outro livro e voltou a se concentrar na leitura. Nunca havia questionado Ângela sobre o motivo de estarem ali, ela sabia que não obteria uma resposta de qualquer maneira, mas não se preocupava com isso, a jovem era feliz.

Na casa de Ângela haviam dezenas de lamparinas, elas cumpriam a função de iluminar toda a casa. Essas lamparinas eram alimentadas por pequenas pedras brilhantes que ficavam em seu centro, então não era como o fogo que poderia ser apagado facilmente.

Ângela sentava na sala de jantar enquanto terminava de secar os utensílios.

— A carne está acabando, acho que irei caçar amanhã...

Uma das lamparinas do salão se apagou. Ângela observou aquilo por um segundo sem expressão em seu rosto. Logo, sua boca se abriu e um olhar temeroso surgiu em seus olhos.

“Não... Ainda é muito cedo, eles não deveriam aparecer agora”, pensou a ogra.

Ela tentou se manter calma, tentava esconder o que sentia. Subindo as escadas, percebeu que outras lamparinas pararam de funcionar. Conforme atravessava o corredor e percebia que outras lamparinas apagaram, menos controle ela tinha sobre si mesma.

No fim do corredor, ela se deparou com uma porta e pensou:

“Se acontecer... Não posso fazer nada.”

Ao abrir a porta do quarto, Ângela acabou quebrando a maçaneta. Ao observar o lado de dentro, ela viu Sienna caída no chão em um canto e, aproximando-se da jovem lentamente, a expressão da ogra melhorou.

Sienna tinha outro livro em seu colo e dormia tranquila.

Pegando a menina em seus braços, Ângela saiu da biblioteca e foi em direção ao quarto da jovem.

— Dona Ângela...  — Ainda meio desacordada, Sienna chamou por Ângela.

— O que foi menina? Pode voltar a dormir.

— Não é nada... — Sienna levantou o braço devagar e passou a mão pela bochecha de Ângela, limpando uma lágrima que escorria pelo rosto da ogra. — Boa noite, mãe...

Um aperto surgiu no coração da ogra.

Já no quarto da menina, Ângela terminou de cobri-la e levantou-se. Seu coração nunca havia apertado tanto, ela sentia um peso tremendo. Ao olhar para um canto escuro do quarto, Ângela proclamou:

— Apareça Morpheus, eu sei que está aí... Você soltou sua mana pela casa inteira.

De entre a escuridão, surgiu um pequeno morcego. Ele era assustador em muitos sentidos, principalmente pela expressão clara de desgosto em seu rosto, uma expressão humana.

— Nosso Senhor deseja seu retorno. — A voz fria do morcego tornava o peso no coração de Ângela ainda maior.

— Diga para ele que amanhã estarei saindo da ilha

— Fale você mesmo quando se encontrarem. Estarei chegando na ilha com uma embarcação civil em dois dias, acompanharei você no retorno.

— Agora eu preciso de vigia?

— Eu vi tudo o que aconteceu hoje, Ângela... Você se apegou demais a menina!

— Fale baixo... — A raiva era nítida no rosto de dela, raiva de si mesma.

O morcego ergueu uma asa, uma massa de energia negra foi se amontoando próximo do lugar e tomou a forma de uma pequena esfera.

As sombras controlam à noite, as sombras devoram o som. Magia das sombras de baixo nível: Esfera Silenciosa. — A esfera cresceu até cobrir os dois por completo. — Pronto, agora ela não poderá ouvir.

— Agradeço...

O morcego apenas ignorou o agradecimento.

— Agora me diga Ângela, o que você pretende fazer com a menina?

— Vou levá-la comigo.

— Nosso Senhor nem ao menos deve lembrar dela, ela é um erro.

— Não ouse falar isso, Morpheus!

Ângela liberou uma aura pesada no ambiente que fez Morpheus dar um passo para trás.

— Está bem... — Morpheus apenas aceitou. Naquele momento, ele não queria entrar em um combate. — Foi necessário o sacrifício de uma centena apenas para trazer a garota até aqui. Ninguém além da Família Real de Haber e nós mesmos sabemos da existência dela, apenas sair com ela da ilha já é um perigo.

— Eu não pedi sua ajuda, pedi? Irei sair daqui sozinha com a garota.

— Ângela... só me diga, o que você viu nessa menina?

— A questão não foi o que eu vi nela, foi o que ela viu em mim. Ela viu algo que pensei ter perdido muitos anos atrás...

O aperto que Ângela sentia em seu peito foi diminuindo enquanto ela pensava em Sienna. Para Ângela, uma ogra, aproximar-se de alguém era difícil, mas Sienna facilitou em muito a jornada.

— Essa jovem já é meu mundo...

— Você não pretende trair nosso senhor, não é?

— Como se isso fosse possível.

Naquele momento, os olhos dos dois encontraram-se. Morpheus suspirou e apenas aceitou tudo.

— Irei ajudá-la, mas meu poder é muito limitado ao usar um familiar, ainda mais um morcego. Limparei o caminho o máximo que eu puder, mas qualquer besta acima do nível Rei está fora da minha ossada.

— Eu agradeço, fico te devendo essa.

Desfazendo seu feitiço, Morpheus voou até a janela do quarto. O morcego olhou para trás e viu Ângela carinhosamente passar a mão pelo rosto de Sienna.

— Isso são efeitos dos olhos. Ângela, não estrague tudo o que conseguiu por essa...

“Ela nem ao menos está me ouvindo”, pensou, observando-as.

Logo, o vampiro partiu do quarto e apenas Ângela e Sienna permaneceram na pequena casa. Ângela acabou dormindo no quarto, pois Sienna não a soltava, contudo, não era como se a ogra tentasse sair daquela situação.



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