Volume 1 – Arco 9

Capítulo 66: Silêncio

Já estava anoitecendo. A festa que ocorria no prédio de eventos era tão alta que dava de ouvir da enfermaria, onde Diego e Margô estavam, observando seu amigo, com a pele empalidecida e suada, os olhos fechados com força enquanto, por vezes, gemia de agonia.

Os dois estavam vestidos para a festa, o rapaz da cicatriz com seu terno com linhas verdes e a garota com um lindo vestido cor de ameixa. 

Não passaram mais do que alguns minutos lá, cumprimentando algumas pessoas e recebendo tapinhas nas costas dizendo que tudo ficaria bem com Tiago, que na manhã seguinte ele estaria novamente com eles.

Por mais que quisesse, não podia mais acreditar naquelas afirmações. Seu amigo foi envenenado, a própria enfermeira constatou isso e ficou preocupadíssima quando viu seu estado. Bafo de Dragão não pode ser consumida, de forma alguma. É um forte veneno. Substancia essa que fora designada para Diego, não para o loiro.

Alguém no Craveiro queria lhe dar veneno. Isso tinha algo a ver com a Sra. Bjorn, já que o rapaz sabia muito bem que ela tinha um frasco vermelho, igual o que seu tio uma vez lhe apresentara como veneno. 

A mulher da cantina, que sempre o tratou tão bem, era defensora de Elizel por o conhecer há muito tempo. É claro que estaria armando algo com seu tio, isso era óbvio agora. Mas não estava frustrado com isso e sim por essas questões terem resvalado em seu amigo. 

Será se era uma espécie de mal-agouro? Que trazia azar por onde quer que passava? Até mesmo o incidente no ringue, onde perdera a razão e o controle de sua força, quase matando um aluno, parecia ser uma espécie de presságio para o que viria a seguir. Agora, onde quer que estivesse, sentia-se improprio.

E agora, mais do que nunca, teria de adentrar o prédio principal com sua amiga, a arrastando para mais uma enrascada. E se algo acontecesse a ela? Não poderia conviver com isso. A ideia, o plano, era de Tiago. Porém fora Diego quem o forçara a pensar nisso. A culpa era sua e de mais ninguém.

— Di — sussurrou a menina, olhando para o relógio que ficava acima da porta de saída da enfermaria. — Está na hora da gente sair para não levantar muita suspeita. Depois a gente volta aqui.

O garoto balançou a cabeça, ainda encarando seu amigo se contorcendo levemente na cama, como se estivesse tendo um sonho ruim. 

Se levantaram os dois e saíram da enfermaria, sua amiga Margô segurando sua mão, um claro gesto indicando que tudo ficaria bem, mesmo que ela não comentasse verbalmente.

Quando chegaram do lado de fora, andaram ainda mais lentamente, os dois olhando para o chão. Por vezes, a menina lhe soltava um olhar de preocupação, parecia que iria dizer algo, mas logo desistia. Notava desanimo e nada mais vindo da expressão do rapaz.

Não fora para a festa. Ficaram sentados em um banquinho, iluminado apenas por um poste que ficava logo acima deles. E por um tempo ficaram ali, no quieto silêncio. Observavam alguns jovens, mais velhos, saindo do prédio de eventos para irem aos becos escuros, rir de piadas sem-graça, beber sucos suspeitos ou cortejar outras garotas.

Ocasionalmente alguns garotos corriam dos becos perseguidos por um cachorro que parecia bastante irritado. Era Duque, o cachorro do Sr. Bjorn, marido de Sofia Bjorn e pai de dois Baderneiros, Mini e Bruno. Fora por conta daquele cão que Diego ganhou o apelido de “Cachorro” no Craveiro.

Ao menos aqueles garotos tinham a sorte de não estarem sendo flagrados por uma cobra, a Basil do Sr. Ernesto. Ele não estar por ali também era bastante incomum, já que nos melhores eventos o velho estava lá para estragar a festa daqueles que tentavam se aventurar do lado de fora do prédio.

Diego e Margô, sentados naquele banquinho, certamente seria um excelente alvo de importunações vindas do decrépito homem. Por sorte, não seriam essa noite. Permaneceram os dois calados por um bom tempo, apenas esperando que a festa acabasse, e rezando para que ninguém fosse lhes tirar do silêncio.

— Acho melhor eu ir sozinho — disse Diego, cortando a quietude.

Margô franziu a testa e o encarou com profunda indignação, largando sua mão.

— Nem pensar. A gente planejou tudo junto e vamos fazer juntos. E se alguma coisa acontecer lá dentro e você precisar da minha ajuda para sair?

— É por isso mesmo que quero ir sozinho. Se você vier comigo e alguma coisa de ruim acontecer…

— Pode parar por aí. — Ela estendeu a mão no ar, como se empurrasse as palavras do garoto de volta de onde vieram. — Eu vou com você e fim da conversa. Conseguimos os dois cartões, não conseguimos? Vamos usar isso para conseguir aquele maldito elixir e acabar com aquela professora. Quer dizer, viemos até aqui, não tem porque desistir agora.

— Esse é o problema, Margô. O Tiago também iria dizer a mesma coisa, eu acho. E olha só onde é que ele está. Por minha culpa ainda.

— Não foi culpa sua ele ter sido envenenado. Não tinha como saber que tinha veneno na sopa. 

— Mas agora que sabem, o que vão fazer? Ninguém foi investigar isso. O próprio diretor não comentou nada sobre isso quando foi ver o estado do Tiago. Ele só ficou com aquela cara de tristeza e depois disse que iria resolver tudo. Mas não resolveu ainda.

— Di, foi você que disse que a senhora Bjorn colocou o veneno na sopa, propositalmente. Não tem nada que prove isso…

O rapaz franziu o cenho.

— Eu vi ela com um frasco vermelho na cozinha. Eu já vi aquilo, sei o que é. Não sou burro. E foi ela mesma que disse ser mais próxima do meu tio. — Então uma nova lembrança lhe surgiu na mente. — É verdade, o diretor também está junto com o meu tio.

— Do que você está falando? — perguntou.

— O diretor confiou a missão da França para o meu tio. O meu tio, que ninguém confia. O seu próprio pai falou algo sobre isso, sobre todos estarem suspeito dele. — Ele pós a mão no queixo. — E no dia que fui na sala do diretor, vi que o corvo dele, Lembraça, acho que é esse o nome daquele bicho, falou que tinha um recado de Elizel D. Monte.

Ele olhou para a menina, esperando que ela esboçasse uma reação de incredulidade quando citou a parte do corvo que falava. Entretanto, ela pareceu estar acompanhando o seu raciocínio com interesse.

— Então — continuou. — Acho que eles estão planejando alguma coisa. Juntos. E só o fato do diretor não ter feito nada com relação ao veneno, já prova que isso é verdade.

Antes que pudesse continuar as suas teorias, a luz do poste se apagou, indicando que era hora de todos voltarem para seus dormitórios. Ouviu-se um grande suspiro desanimador vindo do prédio de eventos. Estavam expulsando todos.

Era chegada a hora de agirem. Juntos.

 



Os dois andaram por entre arbustos até chegarem na grande porta do prédio principal. Já estava tudo escuro e nem sinal dos guardas que ficavam patrulhando. Isso era bom para eles.

Subiram os degraus até a calçada alta e ficaram de frente para a porta de vidro com a estranha maçaneta, esta que era onde se deveria colocar o cartão. E foi isso que Diego fez, sendo o primeiro a abrir e atravessar a porta, com o cartão de Faramir. A porta se fechou atrás de si e foi a vez de Margô passar. Os dois conseguiram facilmente.

O silêncio que o refeitório fazia era incomodo. Apenas as luzes da lua que passavam pelas janelas iluminavam o local, tornando tudo em um aspecto ainda mais sombrio. Andaram lado a lado para que não se perdessem no meio da escuridão. 

Foram em direção aos elevadores e assim que entraram, tiveram a primeira dificuldade.

— Tá bom — murmurou o garoto. — Uma vez eu vi o diretor apertar um monte de botões e dar no banheiro masculino do segundo andar.

— É, você falou. Mas mesmo que se lembre da ordem dos botões, precisamo ir para baixo, não para cima.

— Sim, mas… Isso quer dizer que o elevador tem algum sistema mágico. Que vai nos levar para algum lugar. — Ele encarou a garota. — E se for com a força do pensamento?

— É sério que você vai basear a nossa missão em força do pensamento?

Ele mordeu o lábio e voltou a encarar os botões. Não fazia ideia de como chegaria aquele lugar no subsolo, sendo que também não sabia como fazer para o elevador mágico ir para lá. 

Sua única opção seria apostar na força de vontade, única coisa que até hoje quase nunca falhou com ele.

O garoto fechou os olhos e pensou com toda a sua vontade “Me leve para o subsolo, para o depósito”, e apertou uma série de botões aleatórios.

A porta se fechou e os números que apareceram do lado de dentro formaram símbolos estranhos e esquisitos. O elevador subiu, não desceu, e parou no andar das aulas, no segundo andar.

— Droga — praguejou. — Eu disse que quero ir para o depósito. Para baixo!

E apertou novamente uma série de botões. O elevador fechou a porta, adotou mais uma série de símbolos estranhos e abriu a porta novamente no andar de aulas. 

— Tá vendo que tá funcionando?! Só que ele não vai para onde quero ir. Eu queri ir para para o depósito, elevador estranho. — Ele clicou mais um monte de botões, dessa vez com mais força. — Depósito, depósito, depósito.

E a porta se fechou mais uma vez. Sentiu o elevador andar. A direção era incerta, já que não conseguia sentir para onde estava sendo levado, se para cima ou para baixo. Quando a porta se abriu, o rapaz teve esperança, porém logo foi embora.

— Estamos no banheiro? — perguntou a garota. 

— É… O masculino. — O garoto se agachou no chão, decepcionado.

— Achei que fosse mesmo. As cabines do banheiro feminino ficam do lado de lá.

— Como disse?

— Que as cabines ficam do lado de lá, ué.

Diego se levantou com um pulo e saiu do elevador apressado. Olhou para as cabines do banheiro e viu que acima de uma delas havia o duto. O local onde Rafaela costumava ficar quando queria matar aula, isto é, todas às vezes.

— Tive uma ideia, vem comigo. Só toma cuidado.

— O que… O que você tá fazendo?

Diego subiu em cima da privada, depois apoiou o pé na porta da cabine até conseguir alcançar o duto que ficava no teto. Retirou a grade e subiu. Teve de ajudar Margô a subir. O vestido não ajudava o movimento de suas pernas.

Quando finalmente estavam os dois ali e recolocaram a grade no lugar, Diego começou a ir em direção ao lado que nunca foi naquele duto, o que ficava mais adiante, com a descida estranha que nem mesmo a Raposa sabia para onde dava, já que nunca foi por ali.

— Acho que é aqui, acho que aqui a gente chega lá — disse o garoto.

— Como assim? Como você sabe desse lugar?

— Depois eu conto… Mas agora a gente precisa descer isso aqui.

Eles não viam nada, pois estava muito escuro. Apenas com a coragem, o rapaz continuou indo para frente, sabendo que a qualquer momento escorregaria e cairia sem saber onde iria parar.

— Só ir para frente, a qualquer momento vamos chegar em um… Aaah!

E por fim, ele caiu. Caiu reto, sentindo o ar na sua cara. Ouviu Margô atrás de si, gritando. A queda vertical foi por pouco tempo, começando a se inclinar levemente, como uma espécie de tobogã, igual aquele que dava do quinto andar até o banheiro.

Em pouco tempo já estava novamente em um outro duto horizontal, com uma pequena grade, igual ao do banheiro do segundo andar. Assim que o rapaz ia abrindo, Margô colidiu com suas costas, o arrastando mais para frente.

— Aí, aí. Desculpa.

— Tá legal — gemeu o rapaz. — Só abre logo esse negócio para eu sair daqui.

— Certo, certo. Mas… Nossa… Pensei que eu ia morrer nessa queda.

Ela foi a primeira a descer. O rapaz foi o próximo, caindo de um jeito desengonçado e batendo as costas no chão. Isso lhe deixou atordoado por um tempo, até que ele começou a se levantar. A primeira coisa que notou era que o piso era diferente. Era frio, porém branco. Os banheiros não eram brancos.

Quando se levantou, viu que o banheiro era mais luxuoso. Com mais cabines, mais espelhos gigantes e também mais limpo. Aquele banheiro diferia de todos os outros no Craveiro.

— Estamos… No depósito? — perguntou a garota, ainda sem fôlego.

— Tomara.

Estava muito silencioso. Um silêncio que incomodava.



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