Volume 1 – Arco 8

Capítulo 65: Veneno

No meio da escuridão, sentiu que algo lhe incomodava. Alguém estava lhe tirando de seu confortável espaço vazio. Sentia duas presenças a seu redor e que por algum motivo elas lhe aguardavam retornar. Isso lhe incomodou, pois não queria lhes deixar esperando por muito tempo, mas queria mesmo continuar descansando.

Ainda um pouco tonto, o rapaz acordou. Olhou para os lados e reconheceu estar na enfermaria, deitado sobre uma maca. Não tinha nada enfiado em suas veias e isso já lhe deixava bastante aliviado, porque sentia agonia só de pensar. 

Ao seu lado, estavam Margô, com a cabeça escondida no colchão de seu leito, e Tiago, recostado preguiçosamente sobre uma cadeira de madeira. Os dois pareciam estar dormindo, ou descansando. O rapaz sorriu ao vê-los, se ajeitou para ficar sentado e ao faze-lo percebeu que seu braço esquerdo não estava mais dolorido.

O movimento fez Margô levantar a cabeça. Estava com os olhos vermelhos e inchados, mais fechados do que o normal. Demorou um pouco para ela reconhecer que Diego havia acabado de acordar, já que demorou ao ficar lhe observando, como se tentasse acreditar no que estava vendo. 

— E aí — disse Diego — como é que você… Aí! Calma aí!

Preso em um forte abraço, o garoto sentia que seu braço não estava totalmente recuperado. Teria de se preocupar com isso depois, já que a menina estava lhe apertando com mais força do que deveria e soluçando enquanto falava de forma inteligível.

Tal movimentação acordou Tiago, que demorou menos tempo para reconhecer que seu amigo estava mesmo acordado. Ele se aproximou com um pulo que chacoalhou a maca, fazendo o rapaz da cicatriz sentir mais uma leve pontada em seu braço esquerdo.

— Diego, você está bem? — perguntou o loiro. — Está tudo bem? A enfermeira falou que você ia ficar bem, mas eu não acho que ela cuidou do seu braço direito. Ela deveria ter usado mais daquelas poções verdes em você.

Diego, que ainda tinha uma chorona nos braços, olhou espantado para o seu amigo. 

— O que foi? — quis saber, com um tom de desconfiança. — Você está bem?

— Não, é só que… — O rapaz da cicatriz deu um sorriso. — Acho que é a primeira vez que você não me chama pelo sobrenome. 

Tiago, imediatamente, corou. Ajeitou os óculos e ficou arrumando as próprias vestes diversas vezes. Parecendo meio emburrado e com as bochechas cheias de ar, retrucou um tanto emburrado:

— Desculpe por isso. É que devemos tratar as pessoas como se elas fossem superiores. Por isso eu sempre chamo todo mundo pelo sobrenome.

— Mas eu não sou superior a você, sou seu amigo — rebateu Diego, fazendo Tiago ficar ainda mais desconcertado. — Então, por favor, me chame pelo nome a partir de hoje, tá bem? — O loiro balançou a cabeça. — E você, garota, para de me apertar tanto. Tá, tá, obrigado pelo abraço e tudo, mas o meu braço ainda doí.

A menina recuou, limpando o rosto com as mãos e os antebraços.

— Disgurpa — falou, com uma bolha na garganta. — Di. Eu sinto muito por aquilo…

— Esquece isso. — A interrupção que o garoto fez foi tão rápida, que ela parou de limpar o rosto para lhe encarar. Ela tentou abrir a boca para falar mais uma vez, possivelmente indo pedir desculpas. Porém o garoto não deixou. — Esquece isso, vai. Não tem porque você se desculpar. Foi só um mal entendido, nada demais. Isso acontece com amigos.

A garota escondeu mais uma vez o seu rosto, porém em pouco tempo voltou com uma expressão orgulhosa, embora a face com tom rosado e os olhos vermelhos não deixassem enganar o seu anterior estado emocional.

— Mas e aí, como você se sente sendo a nova campeã? — Ela olhou para o loiro, que olhou para ela. Depois os dois lhe encararam de volta. — O que foi?

— Eu não venci — disse a menina. — Quem venceu foi você. Você é o campeão.

— Impóssivel — riu. — Eu perdi para você. E mesmo que tivesse dado empate, tu com toda certeza teria mais pontos. 

— Eu desisti, antes de você desmaiar.

Diego ficou um tempo parado, pensando sobre o assunto. Franziu o cenho e ficou assim, parado, encarando Margô. Parecia que a informação não tinha lhe decido tão facilmente assim. Quando foi responder, o fez com um simples, porém sincero: 

— Ah, tá.

— Como assim “ah, tá”?! — perguntou meio aborrecida, as duas mãos na cintura. — Você é o campeão do torneio. Ao menos do primeiro ano. Conseguiu a taça para a turma. E você só responde um “ah, tá”?

Agora a menina estava mais parecida com a Margô que Diego conhecia.

— Olha, eu não tava me importando muito com esse negócio de ganhar o torneio e tudo mais. É legal ter ganho e tudo, mas fico mais feliz por você ter voltado a falar comigo.

Margô continuou com o rosto impassível, porém seus cachos louros ficaram rosados. Seus cabelos não conseguiam disfarçar seu estado de espírito.

— Diego, a enfermeira disse para te dar essa sopa quando acordasse — disse Tiago, tirando de dentro de uma sacola, que estava sobre um criado-mudo, uma quentinha e uma colher de plastico. — Foi a própria senhor Bjorn que fez para você.

— Mas eu não gosto de sopa.

— Mas vai ter que comer. Você está doente, se recuperando e precisa da sopa.

— Eu quero macarrão. 

— Seu organismo não pode comer nada muito solido, Diego. Ele precisa da sopa. É como se você estivesse colocando todas as calorias de uma refeição comum para dentro do seu corpo com uma sopa.

— Mas eu não gosto de sopa!

— Come logo esse troço! — gritou Margô, puxando a quentinha da mão de Tiago com certa violência, arrancando a tampa e entregando para Diego. — Come isso agora!

O olhar mortal que ela lhe lançou fez o se instinto natural lhe avisar que era má ideia não obedecer. E, decepcionado, o garoto teve de enfrentar a sopa. Ela tinha um cheiro esquisito. Lhe lembrava as sopas que tomava quando ficava doente na casa de seu tio. 

Geralmente o rapaz ficava doente por conta dos venenos do tio e as sopas tinham propriedades para, na teoria, lhe ajudar a superar isso. Sentiu certa saudades de casa, pois lembrou que quem fazia a sopa era sua empregada, Angela. Ela cuidava muito bem dele e mesmo assim o garoto machucou ela. 

É, ele ainda devia um pedido de desculpas a ela.

Colocando uma colher na boca, o garoto sentiu um gosto ruim, o gosto que apenas uma sopa poderia ter, principalmente aquela que parecia tanto com a de sua casa. Ora, por mais doce que fosse Angela ou a Sr. Bjorn, sopa ainda era ruim. Em especial aquela.

— Agora, a gente andou conversando — continuou Tiago — e nós discutimos o plano de tirar a professora do Craveiro. 

Uma conversa lhe daria tempo para prolongar ainda mais a digestão de sua sopa, coisa que ele realmente queria.

— E então? — perguntou, fingindo profundo interesse pelo assunto.

— Ainda não sabemos onde fica o depósito e isso é meio problemático, mas…

— Mas eu sei onde fica.

Tiago e Margô o encararam com surpresa.

— Como você sabe?

— Bem, eu não sei exatamente. É mais uma intuição. Mas um dia desses eu fui na sala dos diretores, para falar… — Sentia que era melhor omitir a parte em que implorava para Nebeque retirar o nome de Tiago dos escolhidos para a final. — Para falar com eles. Daí lá tinha um monte de mapas e papeis estranhos espalhados pela sala. Acho que lembro de um desenho do prédio principal. 

— E aí? Lá mostrava onde tinha o depósito?

— Não, só mostrava que tinha mais um andar. Eu não prestei muita atenção nisso, foi de relance. Nem sei como eu lembrei disso agora, para falar a verdade. Acho que é só a minha intuição.

De fato, seus instintos eram mesmo afiados. E a inteligencia de Tiago era ainda mais afiada.

— Mais um andar… — pensou. — O que quer dizer que… Ah! Como eu não pensei nisso antes? É óbvio. É no subsolo. Se o prédio tem mais um andar, e todos nós sabemos que não tem, então o desenho falava de um andar escondido no subsolo. Depósito. Subsolo. É óbvio.

— Sim, bem óbvio — debochou Margô. — Mas como chegar em um andar que não existe?

— Isso é realmente importante, porém não temos nenhuma informação com relação a isso. Você tem, Diego? — O rapaz da cicatriz balançou a cabeça. — Então temos de nos focar no que sabemos. Se o depósito fica no prédio principal, hoje é realmente o melhor dia para entrar lá, depois da festa que vai ter. 

— Festa, é? Não estava sabendo dessa. 

— É igual o baile, mas vai ser mais cedo, acabando mais cedo — disse com simplicidade. — Agora, foco. Para nós três entrarmos no prédio a noite, precisamos de três cartões de acesso. E atualmente não temos nenhum…

— Ah! — lembrou-se Diego. — Eu tenho um. O Faramir acabou esquecendo o dele quando foi conversar comigo. E até agora não devolvi.

— Tá, bom. Mais alguém tem alguma surpresa que eu não saiba? — perguntou Tiago, incomodado. — Alguma coisa relevante para o plano que já deveria ter me dito a muito tempo?

— Para com isso — pediu Margô. — Temos um cartão, só falta mais dois para entrar. O seu plano fica simplificado.

— Sim, é verdade — falou o loiro, voltando a sua postura pensativa. — Bom, temos algumas possibilidades, como a de roubar a de algum professor. Não sei se pegar a do professor Nemo seja uma boa ideia, já que recentemente roubamos as chaves dele. Ele vai acabar tomando mais cuidado com as coisas.

— Eu duvido — disse Diego. — Acho que ele só vai ter achado que esqueceu mais uma vez o cartão em algum lugar.

— É uma possibilidade. Mas mesmo assim, precisamos de mais um outro. Estava pensando no professor Gutierrez.

— No Gutierrez? — perguntou jocosamente a garota. — Olha, ele pode até ser meio bobão, mas idiota ele não é. Conheço ele e a família dele. Se fazem de bobos, mas são muito espertos. 

— Então é má ideia — constatou o loiro, voltando a imergir em pensamentos.

Diego, que estava com medo de levantar mais alguma surpresa que fosse deixar Tiago mais nervoso, apenas ficou brincando com sua sopa para lá e para cá. Isso não passou despercebido.

— O que foi? — perguntou Tiago.

— Nada.

— Fala logo. Você tem alguma coisa, não tem? Ah! Me dá essa sopa aqui. — Tiago puxou a quentinha das mãos de seu amigo e começou a comer. Sua barriga, apenas Diego pode ouvir, estava roncando. 

— Bom, nós temos uma opção, mas eu não sei se vocês vão gostar.

— Qualquer coisa é melhor do que nada — disse Margô.

— É verdade — falou o loiro, enquanto se empanturrava de sopa. Pensar, pelo visto, lhe deixava faminto. 

— Bom… — Diego estava demorando de proposito. Não achava que a opção fosse agradar o seu amigo. — A gente pode pedir um favor para a Rafaela.

E, como esperado, Tiago parou de comer instantaneamente e voltou a sua atenção para o rapaz, os olhos vidrados. 

 

 

Do lado de fora, enquanto ainda acontecia o torneio, agora o do sexto ano, Diego, Tiago, parecendo um pouco enjoado, e Margô saíram da enfermaria e foram se encontrar com Rafaela, a conhecida Raposa. 

— Por mim tudo bem — concordou a ruiva.

Diego mal sabia o que responder. Na verdade, não acreditou que acabara de ouvir um positivo, embora também não tivesse motivo para crer que ela recusaria. O problema era que sua vida estava tão azarada ultimamente que um simples positivo já era motivo para enorme surpresa. Já Margô não deixou se abater.

— Ótimo — riu. — Então, onde está o cartão? Não é querendo apressar muito, mas é que vamos precisar o mais rápido possível.

— Concordo em ajudar, mas quero algo em troca.

Aquela ultima frase fez toda a surpresa do rapaz cair por terra. Quase se esquecera que a Raposa era conhecida por fazer trocas, informações por informações, ajuda por ajuda. Nesse ponto, ela não se diferia tanto assim de Rosa.

— Tá, o que você quer? — perguntou Diego, um pouco irritado consigo mesmo por achar que poderia receber o cartão tranquilamente, sem nenhuma imposição.

— Quero que você fique me devendo cinco favores. Só isso.

— Cinco? — Margô ficou incrédula. — Isso não é demais só por um cartão?

— Seria. Porém tem de pensar, estão me colocando em risco também. É um favor muito arriscado de se pedir. Confesso desconhecer o que planejam fazer, porém eu presumo que seja algo relacionado a entrar no prédio principal quando ninguém estiver olhando. — O queixo de Margô caiu, impressionada com o nível de dedução da ruiva. — Estou certa? Pode ficar tranquila, prometo ficar quieta.

— Tá, tá — disse Tiago, um pouco impaciente. — Vamos logo com isso, ele fica te devendo os cinco favores. 

Ele estava mais branco do que o normal e seus lábios estavam realmente roxos. Segurava a barriga com força. Diego sentiu uma leve vontade de rir ao ver aquela cena, já que nunca imaginou que a natureza iria fazer a sua chamada logo ali.

— Tudo bem, mas vou pedir o primeiro favor agora.

— E qual seria? — perguntou Diego, olhando para ela desconfiado.

— Quero que o Tiago erre uma questão na prova final.

O loiro ficou confuso por um segundo. Ora, as provas finais seriam no fim do ano letivo, que faltavam poucos dias para acontecer. 

— Quer que eu erre uma questão? Por que?

— Para ficar em primeiro lugar.

Tiago, que não estava bem e isso podia ser claramente visto por conta de sua postura contorcida, deu uma risada que parecia lhe doer as entranhas. 

— Mesmo que eu erre de proposito uma questão, isso não significa que vai ficar em primeiro lugar. Não era mais fácil… Só pedir para eu lhe ajudar nos estudos?

— Já estou pedindo o meu favor. Erre uma questão na prova. E por favor, não fique com raiva quando eu pegar o primeiro lugar.

Rafaela não riu. Não estava debochando, tão pouco estava desafiando. Era apenas uma conversa comum, sem nenhuma negatividade, ou até positividade. A ruiva era assim. Essa falta de expressão era característico dela quando falava seriamente. E naquele momento, ela estava exatamente assim: seria.

— Por mim tudo bem — riu Tiago, que ainda se contorcia de dor.

— Então négocio fechado. 

Rafaela estendeu a mão para o loiro, pronta para fechar o acordo. Tiago se aproximou penosamente até ela, mas antes que pudesse apertar sua mão, começou a tossir sem parar. O garoto perdeu o equilibrio, caiu no chão e começou a vomitar.

— Tiago, você está bem…? — O coração de Diego começou a bater muito rápido.

O rapaz vomitou sangue com alguns restos de sopa.

— Tiago! — Margô se abaixou para ver se conseguia prestar algum socorro e pareceu horrorizada com a visão que teve.

O garoto estava com veias roxas aparecendo por toda sua pele. Seus olhos estavam vermelhos e deles vazavam lagrimas de sangue. Também saia sangue de seu nariz e de sua boca, por onde não parava de vomitar.

— O que ele tem? — perguntou a menina, desesperada. — O que ele tem?

— Eu.. Eu… Eu não sei…

— É veneno — disse Rafaela, com frieza, enquanto se aproximava calmamente. — Isso é o efeito do Bafo de Dragão. Onde foi que vocês se enfiaram para que ele ingerisse isso?

— Em nenhum lugar nós… — Então Diego se lembrou.

Tiago tomou a sopa. A sopa, que tinha um cheiro estranho, um cheiro caseiro que ele conhecia muito bem. Feito pela senhora Bjorn, que tinha aquele frasco vermelho estranho, que parecia muito com o…

— Veneno do meu tio… Bafo de Dragão — murmurou.

A sopa era para Diego.



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