Volume 1 – Arco 6

Capítulo 47: Muita Burocracia

Diego voltou ao refeitório tão agitado que estava começando a assustar alguns alunos. Embora não prestasse muita atenção a maioria dos olhares curiosos lhe espreitando, sabia estar agindo como um verdadeiro maníaco.

Ele procurou Margô, queria ver se a menina estava bem, se a professora tinha feito algo a ela, e também queria falar com Tiago, para que os dois bolassem algum plano mirabolante e assim conseguissem desarmar a professora. 

Não foi difícil achar o loiro. O rapaz estava em uma mesa sentado com Bruno, conversando de forma carrancuda. Nenhum dos dois parecia feliz. Talvez o rapaz estivesse contando as novidades do que havia acontecido na sala.

Então Diego foi em direção aos dois, mas foi puxado para trás logo em seguida. 

— Di?

Era Margô. Ela estava com os cabelos emaranhados, as mechas louras agora levemente azuladas, enquanto as pretas continuavam tão pretas quanto asfalto. Apesar de não estar parecendo muito bem, ela ainda estava inteira. Diego lhe deu um abraço.

— Wow, calma aí. — Ela retribuiu o aperto, meio desnorteada com o gesto. — O que foi?

Rapidamente a moça se desvencilhou dele — ela não era uma grande fã desse tipo de carinho, e nem o rapaz — e o levou até a uma mesa para que os dois pudessem conversar. A menina, que já estava comendo, ouviu atentamente tudo o que aconteceu com o rapaz na sala da professora.

— Esquece isso. — Foi a resposta dela. Diego não acreditou no que ouviu, por isso fez uma cara feia, ao qual ela respondeu: — Ela obrigou todo mundo a ficar quieto, Di. Com aqueles poderes de mexer com a mente que ela tem, sei lá. Mas não tem como ficar fora do alcance dela. Ela vai saber se alguém contar e ela vai usar aquilo em todo mundo.

— Ela não vai poder usar se for expulsa antes! — disse o rapaz, indignado, dando um soco na mesa.

— Não bate na mesa! — Ela deu um tapa na mesa, assustando o rapaz com o tom sério e os cabelos ficando escarlates. Depois voltando ao tom azul clarinho enquanto soltava um suspiro. — Olha, Di… É como o meu pai diz, se existe alguém mais forte que você, então desista. Porque saber a hora de perder é crucial.

Então o rapaz voltou a ficar irritado, se lembrando do que Lorena havia lhe dito.

— O seu pai! — exclamou ele, como se tivesse acabado de descobrir ouro. — O seu pai podia ajudar você a enfrentar aquela vaca! 

— Não vou falar nada para o meu pai! — Ela cruzou os braços, agora as mechas ficando levemente rosadas. Ou seria aquilo vermelho?

— Por que não? É tão simples. Ele é todo mandão e cheio dos contatos, ou sei lá. Se ele quisesse era só…

— Não vou falar — repetiu a moça, agora com as mechas ficando mais rosadas. — Eu conheço meu pai, tá legal? Não é só chegar e dizer: Pai tem uma professora me enchendo o saco na aula, dá para resolver para mim, por favor?

— Mas é claro que é! — disse Diego com um tom abatido, como se implorasse para  a menina considerar. — É tão fácil…

— Não é, não! 

Ela parecia determinada. Havia alguma coisa que não queria dizer. Tinha algo mais, um motivo a mais para não querer resolver o problema. Aquilo irritou o rapaz, pois ela também não parecia inclinada a lhe contar o motivo real. 

Ele considerou aquilo uma injustiça, já que sempre confiou seus segredos à moça. E a única coisa que o rapaz não tolerava era injustiça.

— Qual é o seu problema? — disse ele, zangado. — Qual é o problema que você e o Tiago tem? Até parece que vocês não tem ninguém do lado para ajudar, mas todo mundo quer ajudar vocês.

Ela ficou surpresa com as palavras dele, ficando em silêncio por alguns segundos. As mechas mudaram para vermelho, porém em diferentes tons, transitando para vinho, rosa até chegar em vermelho puro.

— Não me coloque no mesmo barco do Tiago, entendido? — disse ela, séria.

— Por que não? Qual o seu problema com ele?

— Só não me compare com ninguém! — Ela colocou o dedo indicador no peito dele. Ele sentiu dor por conta da unha grande da menina. — Entendeu?

Depois ela voltou a se concentrar em sua comida, irritada. O rapaz a encarava com ar de perturbação. Não sabia se era correto ficar zangado por aquela atitude e tampouco se era uma boa ideia tentar ajudar. 

Após um curto período de tempo em que a menina ficava mexendo na própria comida, a virando e a revirando, seu cabelo começou a mudar de cor mais uma vez, ficando com os cachos azuis-escuros. Ela ficou virando a cabeça para um lado e para o outro, até que começou a fazer caretas estranhas. 

Suas bochechas ficaram vermelhas e sua respiração ficou desacertada. Conforme o rosto dela contorcia, ela parou de brincar com a comida, colocou os braços por cima da mesa e escondeu o rosto por entre eles, soluçando.

Diego imediatamente foi para o lado da menina e lançou um braço em volta dos ombros dela, preocupado.

— Ei, não fica assim — disse ele, sem jeito. — Relaxa, deixa isso para lá. Eu só… Eu só quero ajudar…

— Eu sei que você quer — soluçou a menina, ainda com o rosto escondido. — Mas não tem o que fazer…

— Não vou ficar parado vendo você ser machucada. Isso sim seria idiotice.

Para seu total alívio, a menina riu. Era um sorriso feio quando se juntava com o ranho do nariz dela. Ela deveria estar horrível debaixo daqueles braços, porém depois de um tempo ficando calma, ela levantou a cabeça e não estava tão ruim assim. Apenas seus olhos estavam inchados e vermelhos, junto do nariz.

— Não é tão ruim assim. — Parecia que ela estava tentando consolar a si mesma. — O que ela faz comigo, quer dizer. Você mesmo passou por isso quando ela te fez cair no poço infinito. 

Diego tinha passado por uma experiência parecida com a de Margô e estava tonto até agora. Então ele só podia imaginar como era passar por aquilo praticamente toda a semana.

Ela limpou o nariz com o braço e depois voltou para a comida, como se este fosse um brinquedo, continuando:

— É só uma professora qualquer tentando mostrar quem é que manda. Se eu fraquejar, ela ganha. Então é só questão de ver quem aguenta mais tempo.

Ele se levantou e encarou a menina de cima para baixo. Entendia o que ela estava tentando fazer. Ela queria se sacrificar, ou algo parecido. Egoísmo ou altruísmo? Bom, isso não importava muito para Diego.

— Não vou ficar vendo você sendo machucada, garota.

— Já falei que não preciso da sua ajuda! — disse ela, com uma voz fraca. — Eu aguento. E se você tentar qualquer coisa só vai piorar tudo. — Ela o encarou, tentando parecer determinada. Porém tudo que o rapaz conseguia sentir ao olhar para seus olhos negros e aguados era pena. — Eu vou provar pra ela que eu sou melhor…

Ele não tentou protestar. Entendia que perdeu a discussão. Ela estava determinada a provar o próprio ponto. Quão estupida poderia ser a menina que chamava todo mundo de idiota?

Ouviu-se um barulho forte de cadeiras caindo no chão, e a visão do rapaz se dirigiu à origem do impacto. Assim que viu a cena, seu sangue ferveu, seus dentes rangiram e seu pescoço ficou tenso. 

Golias, o garoto porco que só andava com Kisley e Alastor, estava perturbando a vida de Bruno, que a essa hora achava-se encolhido no chão por conta do empurrão que levou do gigante. Tiago, que estava com o garoto urso, estava pendurado pelo pescoço pelo braço forte do porcão.

— Golias! Sai daqui! — gritou Diego.

Ele andou rápido em direção ao gigante. Toda mesa ou cadeira na sua frente era jogada para a esquerda, para trás, para todo lado longe de seu caminho. Se aproximava com o olhar enfurecido, as sobrancelhas arqueadas para baixo, os punhos fechados carregando um soco que parecia ferver. 

Golias soltou Tiago ao observar o seu desafiante vindo em sua direção, empurrou uma mesa à sua frente para o lado e andou de forma desengonçada em direção ao rapaz da cicatriz. Ele abriu a boca e disse enquanto andava: 

— Sai daqui você, cachorro.

Sua voz era alta, gutural. Tão potente quanto de Bruno, que talvez fosse o único capaz de ir contra aquele porco, embora fosse covarde demais para isso. Em comparação, o garoto urso era apenas um bobalhão.

Aquilo encheu Diego de raiva. Sentia que sua pele fervia e uma estranha fumaça saia de seu corpo, de seus punhos. Ele gritou e se atirou em direção ao gigante, carregando um soco de direita. O golpe acertou o garoto porco com força o suficiente para ele dar um passo para trás. Mas só isso.

— Humpf! — bufou Golias, olhando para Diego com escárnio.

Com um único soco, de esquerda, Diego foi jogado para trás e se espatifou em algumas cadeiras. 

— Fracote! — debochou o gigante, com um novo bufo.

Entretanto Diego não ouviu aquilo. Desmaiou no mesmo segundo em que levou o soco. Na verdade, não desmaiou por conta do golpe, mas sim por cair de cabeça, e o chão fez o resto do serviço. Agora a única coisa que tinha percebido era alguns relâmpagos de imagens.

Alguns alunos se aproximaram dele, nervosos, curiosos. Daí ele viu um rapaz negro, depois um loiro ao seu lado, carregando ele em uma maca. Depois viu uma menina com os cabelos vermelhos e pretos gritando com alguém, nervosa. Logo após, teto preto.

— Senhor Murdock, consegue me ouvir?

Era uma voz doce, tão boa de ouvir que até pensou que tivesse morrido e ido parar no céu. Quando a voz repetiu a pergunta pela terceira vez, ele murmurou algo para indicar que sim. Depois disso, foi abrindo os olhos devagar.

Quando a luz não mais lhe incomoda, ele notou onde estava. Era um lugar totalmente branco, cheio de janelas e algumas macas. Ao lado de onde estava deitado havia uma cortina branca que impedia outros de lhe verem. Não que isso fosse necessário, já que só havia duas pessoas com ele: Tiago, sentado ao seu lado, e Rodrigues.

Rodrigues estava na sua frente, lhe examinando com curiosidade. Estava com todo o traje do Craveiro, roupa social, porém com uma máscara e luvas brancas, do tipo que apenas médicos usavam. Depois de um tempo, o rapaz a sua frente se afastou, tirando a máscara e perguntou com um sorriso brilhante:

— Como se sente, senhor Murdock? — Ele era o dono da voz doce.

— Bem… — O rapaz olhou para os lados. — Cadê a enfermeira? E a… Margô? Pera aí, por que você tá cuidando de mim?

Rodrigues apenas riu.

— Muitas perguntas. — Ele fez uma breve anotação em uma prancheta camuflada na maca do rapaz. — A enfermeira saiu para almoçar. A senhorita Rosa infelizmente não pôde subir, já que só é permitido um único acompanhante. — Ele apontou para Tiago com a caneta que segurava. — E estou cuidando de você porque sou auxiliar na enfermaria. — Ele deu outro grande sorriso.

Diego bufou de raiva. 

— Pois boa sorte com isso. Já posso ir embora?

— Diego! — repreendeu Tiago. — Você não pode ainda. Ele ainda não terminou de te ajudar…

— Ajudar? — repetiu o rapaz, incrédulo. — Sério? Se ele quisesse ajudar não ia deixar a Margô passar pelo que ela tá passando. E nem ia deixar o Golias começar a provocar o Bruno! — Ele encarou Rodrigues, furioso. — E você ainda se diz monitor!

Rodrigues meramente riu. Aquilo deixou o rapaz ainda mais irritado.

— Sinto muito pelo que aconteceu, senhor Murdock. Porém quando eu já estava me encaminhando para resolver a situação, o senhor acabou entrando na equação, tornando as coisas um tanto delicadas. — Ele anotou mais algumas coisas na prancheta. — E sim, estou ciente da situação da senhorita Rosa.

— E por que não faz nada? — perguntou em tom de desafio. — Qual é a desculpa dessa vez? Quem entrou na equação para atrapalhar seus planos?

— A pergunta correta seria “Quem não entrou na equação?”, senhor Murdock. — Ele terminou as anotações e colocou as duas mãos para trás do corpo, o peito estufado e o sorriso branco no rosto. Seus óculos eram redondos, porém requintados. Era muito elegante. — Se não temos a denúncia da vítima, não se pode fazer muita coisa com uma acusação. 

Diego deu uma risada debochada.

— Nunca vi um monitor fazer nada…

— O nome correto é supervisor — corrigiu Rodrigues, gentilmente.

— Não importa! Vocês se acham os reis e não fazem nada! Só ficam mantendo uma imagem de idiotas enquanto sabe que tem alguém sofrendo na mão de gente idiota!

Rodrigues ficou analisando o rapaz por um tempo, impassível, porém sem o sorriso no rosto. Era como se ele considerasse todas as palavras do rapaz com atenção, maquinando alguma coisa.

— Como disse — começou ele. — Não há muito a ser feito sem a acusação, senhor Murdock. Bem-vindo ao mundo da burocracia, onde você só pode ser útil se seguir determinadas normas. Porém… — Ele deixou a prancheta de lado e começou a tirar as luvas. — O senhor Balthazar ficou sabendo da situação e me pediu para ajudar.

— O Faramir? — perguntou Diego. 

— E quem mais séria? — riu. — E por mais que eu discorde dessa atitude, tenho uma ideia do que, talvez, possa vir a ajudá-los.

Diego o encarou com desconfiança. Faramir estava longe e mesmo assim queria ajudar. Como o Balthazar havia recebido aquela informação ainda era um mistério, embora o rapaz da cicatriz desconfiasse do filho mais novo daquela família, Galadriel.

— Como assim uma ajuda? — perguntou Diego mais uma vez. Estava na defensiva. — Você não vai acabar ganhando uma advertência por isso, vai?

Diego sabia que Rodrigues era um dos alunos mais exemplares de todo o Craveiro. Ele nunca, em nenhuma circunstância, se envolveu, ou se envolvia, em situações que quebrassem o regulamento.

— Claro que não. — Ele sorriu, enquanto ajeitava o terno e se dirigia à porta de saída da enfermaria. Em determinado momento, ele virou e perguntou aos dois, que ainda se achavam parados no mesmo lugar. — E então, por que não me acompanham?

Diego olhou para Tiago, e Tiago para Diego. O rapaz da cicatriz deu um pulo da maca e o loiro saiu correndo em direção a Rodrigues, que continuava com seu bom humor, modesto e impassível de sempre.



Comentários