Volume 1 – Arco 6
Capítulo 48: Castilha vs. Flor-de-lis
O local para onde estavam indo era o refeitório exclusivo para os funcionários, onde apenas professores e seguranças que trabalhavam no Craveiro poderiam entrar para lanchar. Lá era onde Diego teve sua primeira conversa com a Sra. Bjorn, mãe de Mini e Bruno e esposa do Sr. Max, que já fazia um bom tempo que o rapaz não o via.
Lá estava lotado de homens e mulheres espalhados pelas mesas, conversando. Diego e Tiago só conseguiram entrar ali por conta de Rodrigues, que, como supervisor, podia entrar nesse prédio no momento que quisesse.
Enquanto andavam até uma mesa mais à frente, Diego reconheceu a Sra. Bjorn conversando com a Profª. Borstmann, era impossível não reconhecê-la devido ao tanto de cor que usava no corpo, e o Prof. Nemo, que conversava alegremente com as duas.
Alguns meses atrás, o rapaz da cicatriz jamais teria reconhecido o homem, feliz daquele jeito, já que o professor costumava ser encurvado e estranho, meio retraído, esquizóide. Agora estava mais cuidado, sem olheiras e o tempo todo com a postura ereta. Dava de ver o brilho nos olhos dele, enquanto encarava a professora.
Embora tenha ficado feliz pelo professor, por finalmente estar se dando bem com Borstmann depois daquele baile, o rapaz ainda queria saber o motivo de ter sido arrastado até ali por Rodrigues. Ele tinha prometido ajudar com a questão da Margô, e nem Tiago ou Diego sabiam que tipo de ajuda seria.
— Senhores — cumprimentou ele, daquela forma pomposa e com voz doce.
— Alô, meu amor. — Borstmann foi a primeira a retribuir o cumprimento. Assim que viu o rapaz da cicatriz e o loiro, pareceu ainda mais animada para dar boas-vindas. — Ah! Oi, meus amores! Tudo bem com vocês?
A Sra. Bjorn não ficou para trás. Se aproximou de Diego e Tiago e começou a apertar as bochechas deles, em especial a do rapaz da cicatriz, já que esticava mais do que a do amigo ao lado.
— O que andam tramando dessa vez, ham? — Ela olhou especificamente para Diego. — E você, rapazinho! Eu soube a baderna que você fez na cantina hoje. Acha que aquilo é bonito? Podia ter se machucado feio! Podia ter morrido!
Enquanto tomava bronca de Sofia, Nemo se levantou, parecendo meio aborrecido, embora ainda compelisse um sorriso, e falou com Rodrigues.
— E então, o que vieram fazer aqui?
— Trouxe Murdock e Nebeque para tirarem uma dúvida da sua matéria — respondeu o negro elegante. — Eles insistiram que era importante.
— Ah… Uma dúvida? — O professor começou a coçar a cabeça enquanto olhava as crianças com certa antipatia. Então voltava a encarar sua companheira, a professora. Estava claro que não queria abrir mão de Borstmann. — Mas precisa ser agora?
— Vai lá, Bruce — falou a professora, que até aquele momento se entretia em fazer cócegas em Diego e Tiago. — Meus amores são apaixonados pelo conhecimento.
Depois de alguns segundos de silêncio, os rapazes foram largados pelas mulheres e elas voltaram aos seus assentos, conversando. O Prof. Nemo os levou até um canto menos barulhento, um assento perto de uma parede, e perguntou:
— E então. Qual a dúvida?
Tiago olhou para Diego e o rapaz procurou Rodrigues, mas ele não estava ali. Eles ficaram confusos. Afinal, o que deveriam perguntar ao professor? E como isso ajudaria com a Rúnica?
Não era um bom cenário ser deixado às cegas. Talvez a pergunta fosse: “A nossa professora está maltratando uma aluna, como revidar?” Porém eles não poderiam ser tão diretos. O que o Prof. Nemo seria capaz de fazer com essa informação? Talvez nem acreditasse nos rapazes.
Nemo era o professor de História da Estratégia, o que significava, então eles deveriam perguntar uma estratégia para o professor capaz de superar Rúnica. Talvez? Como reverter a situação de Margô, como livrá-la de uma tortura terrível. Todas as perguntas que vinham na mente do rapaz pareciam inapropriadas.
Ou perguntaria algo ou iria embora de mãos vazias, sem tentar nada, do mesmo jeito que tinham chegado. Tiago estava pensativo, olhando fixamente para o professor. Diego tentou tomar a dianteira:
— Eu queria saber…
— A gente queria saber — interrompeu Tiago — como vencer um inimigo mais forte, sendo mais fraco.
Diego o encarou, assustado, pois não esperava por uma pergunta tão boba quanto aquela, e ao mesmo tempo tão certeira.
O professor começou a coçar o queixo enquanto pensava.
— Vão ter que ser mais específicos. Do que exatamente estão falando?
Tiago tomou a dianteira mais uma vez, sendo preciso:
— Vamos supor que exista um tirano que oprime o povo. Mas ele oprime de um jeito que o povo não é incapaz de se defender e nem tem a quem recorrer, porque o tirano impede. Nesse caso, qual a melhor estratégia a ser feita?
Nemo voltou a ficar pensativo, até que ele respondeu com uma pergunta.
— No caso, o tirano impede que outro governante ajude o povo, correto? — Tiago assentiu com a cabeça. Diego imitou o movimento. — Mas ele impede esses outros governantes por ser mais poderoso ou por interesse?
— Interesses e burocracia.
O professor soltou uma risadinha esquisita, pois ele era meio estranho mesmo. Diego não estava entendendo nada, e nem de onde seu amigo estava tirando toda aquela história.
— Isso requer uma estratégia bem específica. Mas por que o interesse nisso? Não vou colocar isso nas provas de vocês, podem ficar tranquilos.
— É que nós gostamos de jogar Arena Mental, aí imaginamos essa situação, mas nenhum dos dois consegue vencer o outro. Aí a gente veio pedir ajuda ao senhor.
Diego sentiu uma forte vontade de bater em Tiago. Estava dizendo para o professor que a única razão para os dois estarem ali era por conta de um jogo imaginário, e não algo realmente importante.
— Arena Mental? Nossa, faz tempo que não vou uma partida com ninguém. Jogava muito isso na sua idade. — Para a surpresa de Diego, Nemo parecia mais animado que antes. Ele se ajeitou na cadeira melhor para continuar: — Vemos… Já que o tirano oprime o povo e tem relações, imagino que comerciais, com os outros governantes ao redor, então me vem em mente a estratégia… treze, eu acho. E que inclusive, vale ressaltar, eu ministrei esse assunto no primeiro dia de aula do senhor Murdock.
“Antes de começar, quero que entendam um pouco o contexto. A alguns, muitos, anos atrás, nós não éramos regulamentados pela organização, o Craveiro, digo. Então vivíamos na busca por territórios com muitos recursos. Esses recursos, no geral, tem propriedades misteriosas, por isso são valiosos.”
Por misteriosas, o professor se referia aos segredos e mistérios. Em suma, era o mesmo que dizer “Recursos com propriedades mágicas”. Embora Itens Mágicos fossem proibidos no mundo inteiro, recursos naturais com propriedades mágicas não. Por exemplo as ervas e plantas com propriedades de curas, veneno, etc.
— A algum tempo — continuou o professor. — Quando a organização ainda estava começando a ser, bem, a Organização, a vila de Castilha aqui na Espanha estava em conflito com a Flor-de-lis, da França. Uma guerra de territórios cheios de recursos místicos.
— Castilha é o nome da minha rua — disse Diego, atento a história.
— Sim, hoje em dia é o nome de uma rua. Mas não vou estragar o final da história, já vamos chegar lá. — Ele pigarrou e prosseguiu: — Todos os dois, tanto Castilha como a Flor-de-lis, tinham uma espécie de parceria com a sede da Espanha, que no caso é o Craveiro. Então eles enviaram representantes para cá, para ver quem iria nos conquistar primeiro. Para receber apoio político e tudo mais.
— Mas professor — interrompeu Tiago. — A associação Flor-de-lis não é rival do Craveiro? Como ela poderia querer uma parceria com a gente?
— Vocês já vão entender. Mas é importante vocês entenderem que naquela época não havia muita regulamentação por parte da organização com as suas sedes pelo mundo. E a Flor-de-lis se aproveitava disso para fazer alguns ataques contra o Craveiro. Mas voltando a história…
“Entendam que havia muita coisa em jogo, porque quem o Craveiro apoiasse, Castilha ou Flor-de-lis, com toda certeza venceria, já que éramos muito fortes naquela época. E claro, quem vencesse a disputa de território ficaria com todos os recursos daquela área, que era enorme.
“A Flor-de-lis foi a primeira a vir. Eles se curvaram e admitiram terem se aliado aos inimigos do Craveiro e que nunca haviam ajudado a associação daqui. Foram honestos e disseram que nunca haviam criado laços de amizade ou gratidão entre Flor-de-lis e Craveiro.”
— Idiotas — resmungou Diego. — Na hora que precisam eles estão com os inimigos, mas quando a situação aperta, querem pedir apoio.
— Bom — continuou o professor, ajeitando os óculos. — Eles admitiram que vieram até nós apenas porque estavam com medo de perder o território. E ofereceram uma aliança entre as duas.
“Vejam bem, naquela época, a Flor-de-lis era a segunda maior, no que se refere a recursos, de toda a Europa. A maior era o Craveiro. O que significa que uma aliança entre as duas seria incrivelmente forte, capaz de intimidar qualquer outra sede.”
— Mas são traidores — resmungou Diego, cruzando os braços e ficando de cara amarrada. — Não me juntaria com traidores nem por todo o dinheiro do mundo.
— Sim, mas vocês ainda não sabem o que o representante de Castilha disse. — O professor parecia mais animado. — Ele fez um discurso incrível e apaixonado. Era muito diferente da abordagem da Flor-de-lis, que parecia seca e sem vida. Castilha falou tudo o que fez pelo Craveiro no passado.
“Eles perguntaram o que os outros aliados achariam se nós preferissemos fazer um acordo com o antigo inimigo ao invés do amigo, que no caso era Castinha, que tinha servido lealmente o Craveiro desde o dia de sua fundação.
“Eles avisaram que talvez os aliados rompessem seus acordos conosco, caso vissem que desvalorizamos a lealdade de Castilha. Eles falaram sobre a necessidade de recompensar Castilha por todas as suas boas ações e finalmente relacionou os vários serviços que a vila deles prestam a nós exigindo gratidão.
“Depois desse discurso, o Craveiro debateu sobre a questão em um grande conselho, uma assembleia. Adivinhem quem escolheram apoiar?”
— Obviamente que iam apoiar Castilha — respondeu Diego. Ele olhou para o amigo ao lado e o viu pensativo demais, mas não deveria. A resposta era óbvia, apenas um idiota escolheria Flor-de-lis. — Não é, Tiago?
— Eu não tenho certeza — falou o loiro. Ele também estava com os braços cruzados, mas aprecia pensar muito sobre o assunto. — O que aconteceu com Castilha para ela virar apenas o nome de uma rua?
E os dois olharam para o professor. Diego ansioso pela resposta.
— Castilha foi abandonada. — O professor falou com tanta simplicidade que assustou o rapaz. — O Craveiro decidiu que era melhor apoiar os franceses do que a própria casa. E hoje, Castilha não passa do nome de uma rua, enquanto a Flor-de-lis é a maior associação rival do Craveiro, tudo graças à nossa própria ajuda.
Diego ficou infeliz pelo final da história não ter sido do jeito que ele tanto desejava. Mas Tiago, ao invés de reclamar, fez a pergunta mais certeira:
— Mas, professor, o que isso tem a ver com a pergunta que lhe fiz?
— Ah! Sim. Bom, aqui entra a interpretação, e ela vocês têm de prestar bastante atenção: Essa história é uma excelente lição de quão egoísta nós somos. Ou se você quiser uma palavra melhor: pragmáticos, isto é, sem rodeios, direto ao ponto.
“Para o Craveiro, nenhum argumento bonito, cheio de retórica e com vários apelos emocionais se comparavam com um argumento direto ao ponto, especialmente se esse argumento nos fizesse ter mais poder.
“O que o representante de Castilha não percebeu foi que o seu apelo à generosidade só irritou o Craveiro; era como se falassem que somos culpados pelo que acontecia a eles e que devíamos algo a ele. E ninguém gosta de ser cobrado.
“Talvez devêssemos gratidão a eles, de fato, porém política é assim, vamos no que é mais importante, e não nos sentimentos. E no fim das contas, nenhum aliado do Craveiro jamais deixou de ser, já que a associação era bem poderosa naquela época e conquistaria os aliados de volta, nem que fosse com mão de ferro.
“Então prestem atenção no que digo: Quando as pessoas escolhem entre falar do passado e falar do futuro, a pessoa pragmática, aquela vai direto ao ponto, sempre opta pelo futuro e esquece o passado, esquece suas raízes.
“Sempre é bom ser direto ao ponto com pessoas que são direto ao ponto. Sem rodeios. Elas geralmente nunca vão contra os próprios interesses.”
E aquilo fez Diego pensar muito a respeito do que ouviu e sobre o que faria com aquela informação. Para ele não passou de uma história repleta de injustiça, e ele odiava injustiça. Se soubesse que iria ter de ouvir uma história revoltante nem teria se dado o trabalho de ter seguido Rodrigues.
Quando a conversa acabou, os dois voltaram para descansar antes de voltar para as aulas da tarde. Embora Diego estivesse meio irritado, Tiago parecia ver alguma coisa.
— Você entendeu alguma coisa daquilo? — perguntou o rapaz da cicatriz, um pouco aborrecido.
— Sim, só não sei exatamente como aquilo vai nos ajudar.
— Há! Sabia! Ele só falou um monte de baboseira à toa.
Tiago sorriu.
— Pelo visto você não prestou atenção em nada mesmo. Resumidamente o que ele disse foi: Apele para o egoísmo do aliado, não para o lado emocional dele. Ou seja, se você quiser ajuda de alguém então peça: “Por favor, somo amigos”, e sim: “Em troca eu te dou algo”.
Diego achou aquilo a cara da Rafaela.
— Ele bem que podia ter só cortado toda a parte da história e falado isso.
— Não, aquela é uma boa história. Olha só, a gente precisa de um aliado mais forte que a professora. Sabe?! Alguém que é capaz de bater de frente com ela. Só consigo pensar nos diretores, e ela já impediu de falar qualquer coisa para eles.
Diego se lembrou de uma coisa.
— A foto! — disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Tiago, a professora estava com a foto rasgada. E tinha uma mulher de branco, junto com um cara de amarelo. Ah! Se eu soubesse quem era a mulher dava para usar contra a professora!
— Mas sabe quem é a pessoa?
— Não. Mas acho que se eu conseguir a foto de volta e mostrar para alguém, alguém vai reconhecer, não vai?
Tiago levantou uma sobrancelha.
— E como você vai fazer isso? A professora deve ter jogado no lixo ou então guardado em algum lugar na sala dela. Você nunca vai achar.
— Eu tenho que tentar. — Ele parou um segundo para pensar e então se lembrou do conselho que o professor lhe deu. “Apele para o egoísmo das pessoas.” — Vou pedir um favor para a Rafaela.
Ele saiu correndo em direção ao banheiro masculino, e lá estava ela, no teto, com seu pisca-pisca. Assim que o rapaz explicou a sua situação e pediu o favor, a ruiva lhe encarou de cima para baixo, cruzou os braços e disse:
— Desculpa, isso é impossível.