Volume 1 – Arco 5

Capítulo 33: A Raposa e O Cachorro

Finalmente estava com a verdade em suas mãos, poderia descobrir o que aconteceu na noite em que seus pais morreram, quem o salvou, como fizeram isso. Sentia uma mistura de emoções em sua barriga e sua cabeça estava repleta de pensamentos. 

Assim que abriu o arquivo, não conseguiu ver nada por conta da escuridão, mas sabia que havia ali muitas informações, fotos, assinaturas... Ele precisava de luz. Precisava sair dali o mais rápido possível para ler. Ele se levantou e foi em direção a porta. Estava trancada.

— Droga! — gritou ele, esmurrando a madeira. A essa altura ele já não se importava mais se alguém o achasse ali. Estava com o que mais queria no mundo.

Enquanto se esforçava para quebrar a maçaneta, chutando, esmurrando, um arrepio na sua nuca lhe fez paralisar. Sons de cascos se aproximavam cada vez mais dele, fortes e potentes. Não vinha do lado de fora e sim da escuridão as suas costas.

Virando lentamente para o negrume, sentiu um alívio momentâneo ao constatar que não havia nada ali. Entretanto, dos corredores negros, emoldurados pelas estantes de metais cheias de caixas com inúmeros arquivos dentro, duas orbes amareladas brilhavam e se aproximavam do rapaz.

O coração de Diego batia com força. Era um medo irracional, era algo primitivo, pois sabia que apenas a presença do que quer que fosse aquilo já era suficiente para dificultar a sua respiração.

Quanto mais se aproximava, mais era possível distinguir sua silhueta. Era uma coisa alta, com chifres pontiagudos projetados do seu crânio, seus braços eram longos e magros, ao ponto de quase atingir o chão. Suas pernas não eram pernas e sim patas, parecidas com as de uma cabra, com cascos que faziam o chão ranger.

Era bom que gritasse, ao menos era o que estava tentando, porém não havia ar em seus pulmões para isso. Mal tinha fôlego para se sustentar, quanto mais para berrar. Tudo que ele queria era se espremer na porta, virar parte dela, e de algum jeito, atravessá-la.

“Isso é um pesadelo, eu ainda estou na sala do Holland, dormindo. Isso é um sonho… isso é um sonho.” Ele queria fechar os olhos e se estapear, porém não o fez, já que não queria desgrudar sua visão da coisa que vinha se aproximando, lentamente.

Mais cinco passos e a criatura o alcançaria. Mais cinco passos e Diego iria encarar aqueles olhos amarelos, brilhantes, mais de perto. Mas a criatura parou de avançar. Estava apenas o encarando, como se estivesse o analisando. Dava de sentir sua respiração, mesmo aquela distância. O cheiro de animal morto.

Enquanto os dois pareciam parados no tempo, uma nova luz, vinda de onde seria o peito da criatura, chamou a atenção do rapaz. Ele desviou o olhar e viu que era uma luz azul, quase branca saindo de seu peito. Aquilo era novo. Era como um…

 

R

   O

      A

           R

               !

 

A criatura avançou em sua direção, rápida, e o rapaz não ousou ficar parado ali por muito tempo. Seu corpo lhe fez saltar para o lado e sair rolando. Ele sentiu o vento do movimento das mãos longas da criatura passarem próximas dele e então se distanciar. Assim que ele se levantou, não ousou olhar para trás. Correu em direção à escuridão e às estantes.

Ele correu enquanto ouvia os cascos à sua volta. Estavam do seu lado. Ele virou uma esquina e andou para o lado contrário, driblando seu perseguidor. Ouviu os bufos de raiva da criatura, o deslizar de seu corpo desengonçado pelo chão e o seu corpo levantando. Correu para o outro lado, para a porta.

Conseguiu alcançá-la e tentou mais uma vez forçá-la a abrir. O barulho dos cascos se aproximando o fez olhar para trás, apenas por alguns segundos e captar algo: a criatura estava evitando esbarrar nas estantes. Então sua intuição lhe chamou.

Ele não soube bem a razão para aquela vozinha lhe ordenar fazer isso. Só sabia que teria de o fazer.

Começou a correr para o lado, em direção a onde tinha entrado originalmente, pelo duto, entrando pelo corredor de estantes ao lado da criatura. Ela soltou outro bufo e começou a mexer seu grande corpanzil em direção ao lugar que o rapaz iria.

Assim que Diego chegou onde caiu, olhou uma última vez para o arquivo em sua mão, agora amassado por conta de seu aperto involuntário, e o escondeu embaixo da estante. Depois agarrou as mãos nas barras de ferro e escalou as prateleiras de metal, sem se preocupar com os arquivos que sem querer fazia cair.

Ele ouvia a criatura perto. O rapaz conseguiu chegar até o topo a tempo e lá estava a grade do duto e a entrada no teto. Quase não via nada, apenas sentia que ali era o lugar correto. Assim que esticou o corpo e alcançou as beiradas do duto, a mão da criatura pousou perto de seu pé, amassando o metal.

Com o susto, o rapaz se empurrou para dentro, junto com a grade e fechou o duto, impedindo que a criatura pudesse lhe alcançar. Ele ainda viu, de relance, a criatura escorregar da estante e seus olhos amarelos o encarando, junto com aquele brilho estranho no peito.

Diego não demorou nenhum outro segundo. Começou a rastejar pelo duto de ventilação, para qualquer canto, qualquer lugar. Se rastejou para cima, para baixo, para um lado e para o outro. 

Embora não ouvisse nada além de sua respiração pesada e as batidas do coração, quase saindo pela boca, imaginava a criatura lhe perseguindo. Isso lhe deu motivação para continuar, até o momento em que virou uma esquina e viu luz.

Finalmente, rastejou até uma outra grade, a abriu e pulou para dentro da sala. Depois fechou a abertura e tentou se arrastar para longe do duto, mas bateu a cabeça em um baú estranho. 

A dor lhe fez despertar por um momento, embora estivesse suado e assustado. Estava de volta a sala do Prof. Riddley, sozinho. Ele se levantou, encostou o baú na entrada do duto, o fechando, finalmente.

Assim que o fez, começou a ir em direção a porta do professor, a bater e a gritar para que alguém abrisse. Fez isso por alguns minutos, até que começou a se acalmar. Nada iria acontecer, a criatura era muito grande, não poderia passar pelo duto.

Ele deslizou pela porta até encontrar o chão, onde ficou sentado, pensativo, ofegante. Colocou a mão no peito, para checar se o seu coração ainda estava no lugar. Estava pálido, e os cabelos negros em sua testa, agora molhada de suor, contrastavam com o rosto sem cor.

Depois de voltar a sentir o corpo, notou um formigamento estranho no seu queixo. Ele colocou a mão sobre a cicatriz e quando olhou viu que saia sangue. Não era sangue o suficiente para manchar suas roupas como foi com Tiago, porém ainda o fez ficar preocupado.

Tentou se lembrar de algum momento em que tenha se cortado. Não achou nenhuma em sua mente.

E então veio mais um assobio. Esse era do mesmo tom que ouviu antes. Ele ficou paralisado, olhando para o baú, esperando que a qualquer momento a criatura fosse saltar por de trás daquele duto e lhe pegar. Um barulho de passos lhe fez ficar ainda mais alerta. Não vinham do duto, vinham do lado de fora.

Então a porta abriu de uma vez e o rapaz desabou no chão, o rosto para cima. Depois de uma pontada de dor, por ter batido o cocuruto da cabeça no concreto, olhou para o alto e viu olhos amarelados lhe espiando. 

De início ele tomou um susto, ficou ainda mais branco, no entanto, logo se acalmou. Aqueles olhos não brilhavam como uma lâmpada e nem o encarava como se fosse uma presa. Eram olhos de curiosidade e fascínio.

— Você realmente gosta de portas — exclamou Rafaela, animada.

Ela o ajudou a levantar enquanto sorria. O rapaz teve tempo de tentar disfarçar um pouco o seu desespero. Ela estava com um vestido laranja, um colete preto, seus cabelos flamejantes estavam soltos, mas estava claro que tinha tentado penteá-lo e falhado. Seus pés estavam descalços, como sempre. 

Perto dela estava sua mochila aberta, com várias ferramentas jogadas no chão, os mesmos objetos que ela usou para abrir a porta que ficava no térreo, quando ajudou Diego a entrar na escola pela primeira vez.

— Oi — disse Diego, ofegante, ajeitando sua roupa.

— Você tá bem? — perguntou ela, lhe lançando um olhar de profundo interesse depois de fechar a porta atrás do rapaz. Os dois estavam do lado de fora agora. — Parece que viu um fantasma.

— Eu… É… Eu… Eu vi um nocivo aqui dentro. Eu… — Ele colocou a mão sobre o queixo mais uma vez, porém não havia mais sangue algum.

— Um nocivo no Craveiro? Isso é inédito.

Ele sabia que era, por isso se sentiu meio bobo. Não queria confessar aquilo para Rafaela. Ela não aparentava que iria acreditar de qualquer jeito. Tinha de falar com Tiago, isso sim.

— Bem… Eu… O que você tá fazendo aqui?

— Ah! Eu vim pedir um favor em troca de um favor — disse ela, se esquecendo completamente do “nocivo”. Isso era algo bom nela. Tudo que o rapaz dizia para ela esquecer, ela aparentemente esquecia.

— Ah, é? — Ele ficaria chateado em outras circunstâncias. Novamente ela estaria lhe usando, como uma espécie de troca. Mas como tinha aberto a porta para ele e possivelmente salvado a sua vida, estava muito grato para se sentir irritado. — O que você quer dessa vez?

— O mesmo de sempre. — Ela deu um largo sorriso. — Está acontecendo uma conversa na sala dos diretores. É com o senhor Rosa, e parece que é algo importante. Quero ouvir! Mas você sabe, todas as portas bloqueiam o som….

— Você não disse que essas portas que não dá para ouvir eram só na sala dos diretores?

— Disse? Bom, se disse então tudo bem. De qualquer forma, eles colocaram essas portas em todas as salas depois daquela nossa espiada. As outras salas só tinham o privilégio de ter portas normais. Mas por que a pergunta?

Diego pensou por um momento e se lembrou que talvez foi por isso que ninguém tivesse lhe prestado socorro enquanto esmurrava a porta daquela sala, com os arquivos. Talvez ninguém fosse capaz de ouvir, apenas ele, porque tinha ouvidos afiados, como Rafaela bem apontava.

— Nada… — disse. — Mas então, o que você vai me dar em troca?

— Mas eu já paguei — respondeu ela. — Acabei de te salvar da sala do professor. 

— O que? Como assim? Você não me salvou! Só vai me meter em mais problemas…

— Eu sei que você queria ir para o baile, ou será que estava praticando dança para nada?

— Como você…? — Enquanto a encarava, ele desistiu de perguntar. Rafaela sabia de muita coisa, e saber sobre suas aulas de dança não era mistério nem para as pessoas de sua turma, embora tivesse suposto que apenas algumas poucas pessoas soubessem.

Quando ele desistiu de falar, ela lhe lançou um sorriso e continuou:

— E vai me dizer que quer esperar o professor Riddley voltar? — Ela pegou a mochila do chão e começou a andar casualmente em direção a sala dos diretores, que ficava a algumas esquinas de distância. — A propósito, ele nem vem agora. Bebeu demais e passou a maior vergonha. Agora ele está sob os cuidados da professora Borstmann e o professor Nemo. 

— Hm… E como você sabia que eu estava aqui? — Ele começou a seguir a moça.

— Todo mundo sabe onde você está. O Gabriel fez questão de espalhar para todo mundo o como a família dele era importante, ao ponto de tirar ele de uma suspensão, enquanto você nem tinha família para começo de conversa.

— Como é? — Diego se colocou no caminho entre Rafaela e o corredor, irritado.

 Eu só estou dizendo o que ele disse. — Ela se aproximou do rapaz, mas ele não deu passagem. Então ela sussurrou baixinho, a meio passo de distância: — Foi o que ele disse, Diego. — Ao sentir o hálito da menina, bolo de chocolate, ele deu passagem. Aquilo o deixou com fome. — E outra, deixa isso para lá, ele só estava tentando chamar a atenção da Margô.

Os dois começaram a andar, um do lado do outro dessa vez.

— Quem é Margô? — Ele nunca tinha ouvido falar de um nome assim.

— É a filha do Rosa, o cara que a gente vai ouvir a conversa.

— Não precisa ser estudante para participar do baile?

— Sim. Mas ela é transferida. Era da Sakura. O ano letivo lá acaba em Março, então ela veio para cá no meio do ano. 

— Sakura? 

Rafaela deu um sorriso e olhou para o rapaz com os olhos deslumbrados.

— É, Sakura, do Japão. É o nome da organização de lá. Tipo Flor-de-lis que é da França e o…

— E o Craveiro que é daqui, tá bom, eu entendi. Não sou tão burro assim, sabia? Era só me dizer de onde era — disse, começando a se aborrecer.

— Mas é que é meio óbvio, amante-de-portas. Sakura é uma palavra japonesa, a tradução seria cerejeiras…

— Tá bom! Sabe-tudo! Parece o Tiago! — Diego colocou os braços em volta dos ombros dela, a puxou para perto de si e esfregou o seu punho na juba vermelha da moça, bagunçando ainda mais seus cabelos. — Pronto, ficou ótima agora.

Ela riu e deu um leve soco em seu braço. Os dois não tinham perigo de serem ouvidos, já que as portas eram silenciosas tanto para quem estava dentro, quanto para quem estava do lado de fora. Além disso, todos estavam no baile e não pareciam que iriam voltar tão cedo para o quinto andar.

Então tinham baixo risco de serem pegos.

Quando chegaram, Diego viu que a mesa na frente da porta dos diretores tinha um pano branco lhe cobrindo. O pano era comprido o suficiente para que os dois pudessem ficar ali embaixo caso alguém aparecesse. 

— A gente pode ficar ali para se esconder — disse Rafaela. — Relaxa, vamos ficar bem. Os diretores confiam muito na porta para prestarem atenção às pessoas embaixo da mesa.

Diego assentiu com a cabeça. Qualquer coisa era só correr e levar uma bronca. Os dois se abaixaram, Rafaela já estava embaixo da mesa, preparando um plano simples que consistia em puxar o rapaz caso alguém aparecesse e cobrir os dois com o pano da mesa.

Ele posicionou o ouvido bem próximo a porta e então ouviu uma pessoa com voz extravagante e elegante dizer:

— Eu, graças ao bom Deus, tenho muitos contatos. E todos eles dizem que não devo confiar em nenhum de vocês. 

— Senhol Losa, não plecisa se exaltar pala conseguir nossa confiança… — começou o diretor Kim, até ser interrompido.

— Acho que preciso me exaltar sim, diretor, para conseguir as informações que preciso. Por exemplo: Acreditam que eu tive de saber pelas minhas fontes as travessuras que o Dragão Negro anda fazendo por aí? E com vocês sabendo disso?

O coração de Diego deu um salto. Seus olhos arregalaram. Dragão Negro… Estava falando de Elizel. Rosa sabia alguma coisa sobre ele? O silêncio que se seguiu na sala provava que o homem tinha conseguido tocar em uma ferida nos diretores. Eles sabiam que pelo visto não era para ninguém saber daquilo.

— Rhum… Curioso, não é?! — continuou ele, com tom jocoso. — Sabe, eu não sou idiota...



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