Volume 1 – Arco 4
Capítulo 18: O Garoto-Pião
O prédio dos eventos, onde ocorreria o tão ansiado torneio, ficava a alguns metros do dormitório, próximo ao refeitório exclusivo para funcionários — o mesmo refeitório que tinha um Corredor Ziguezagueante conectado ao lado do prédio principal, aquele onde Diego vira o Prof. Nemo pela primeira vez.
Tecnicamente o evento não ficava tão longe, bastava andar pela rua principal que logo acharia o prédio.
Ao entrar, dava para ver o quão espaçoso era o local. De início se via uma enorme quadra. Logo mais na frente havia um palco, como o de uma peça de teatro. Haviam portas aqui e ali, que indicavam o banheiro ou o acesso ao prédio ao lado. Aquele lugar em específico era a quadra de eventos.
Geralmente eram realizados treinamentos, jogos e peças ali. Algumas vezes colocavam projetores e todos assistiam a algum filme. Esses eram os únicos dias onde Diego mais gostava de ir ali. O local do torneio ficava por trás de uma das portas daquele grande lugar.
— MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES, DESEJO BOAS-VINDAS A TODOS! E QUE VOCÊS SE DIVIRTAM COM MAIS UM TORNEIO DO PRIMEIRO ANO! — Se ouvia por de trás de uma dessas portas.
A voz que vinha do alto-falante era de Guillermo Gutierrez, o professor da disciplina Melhore Lutando, intermediador do torneio. As competições eram consideradas aulas práticas.
O professor era uma pessoa bem estranha. Sem uma das pernas, uma roupa que lembrava muito um vaqueiro, e tão agitado que a cada passo dado sempre estava pulando. Era uma pessoa que parecia estar sempre ligada na tomada.
E era logo atrás daquela porta barulhenta que ficava o gigantesco espaço subterrâneo. Escadas que desciam até chegar em um ringue de boxe, arquibancadas cercando o perímetro, pessoas e mais pessoas de todos os lados, vaiando, gritando, se esgoelando. Aquele sim era o torneio.
O local dava a ideia de um grande funil. As arquibancadas eram a mesma coisa, porém os alunos quentes sentavam de um lado, e os frios do outro lado. Não era obrigatório, mas faziam como forma de lembrarem quem apoiariam.
Nesse exato momento, enquanto Gutierrez fazia um discurso, Diego estava no vestiário, se preparando para sua luta. Suas vestes não diferiam do que usava nos dias comuns de aula.
Junto dele estava Lauro, um dos que iriam lutar. Dani, sua dupla inseparável, estava com ele como acompanhante. Tiago também estava com Diego. Era permitido apenas um acompanhante dentro do vestiário. Sheila também estava ali, porém nada de sua irmã, Selena, a verdadeira competidora, aparecer.
— Com medo, parceiro? — Lauro tentou confortar Diego com um tapinha em suas costas. Lauro seria o primeiro a entrar no ringue e estava tão calmo. Depois dele era Diego e por último Selena, que até o momento não havia dado o ar da graça.
— Não, só não dormi direito. — Isso era bem verdade, porém também era verdade que estava assustado. Ouvir aquela multidão inteira só lhe causava mais preocupações e um embrulho na barriga. Ficar sentado encarando os pés e roendo as unhas não passava segurança alguma. — Você vai lutar assim, Lauro? — perguntou, tentando mudar de assunto.
Ao contrário de Diego, bem empacotado sob sua vestimenta escolar, a única coisa que impedia Lauro de estar nu era uma calça bem folgada.
— Eu vou sim, mano — disse com simplicidade. — Me deixa mais leve lá na luta, saca? Uns socos velozes, movimentos tops e por aí vai.
Não existiam regras para vestimenta, mas talvez uma roupa mais esportiva e menos colada ao corpo realmente ajudasse o desempenho nas lutas. O problema era que Lauro estava com roupas folgadas demais. Era mais possível que fosse acabar se atrapalhando por conta disso.
Por sorte, Diego não precisou verbalizar isso.
— Acho que essa roupa não vai funcionar com você, Lauro — disse Tiago.
— Iiih, tu também, quatro-olhos? — zombou Lauro. — Já não basta o Dani me fritando a paciência sobre isso…
— Bom… Eu só queria ajudar — respondeu, um tanto envergonhado.
Diego notou uma espécie de conflito entre os dois. Estranhou a atitude de Lauro, sempre tão gente boa com todo mundo, e por isso defendeu o seu amigo loiro.
— Ele tem razão. É bem fácil você cair para trás com esse negócio.
— Ah, isso não importa, parceiro. A minha luta vai ser com uma mulherzinha. Vou ter que pegar leve de qualquer jeito, sacou? Eu não bato em meninas…
— Pois tomara que perca só pra deixar de ser palhaço! — disse Sheila, que pelo visto, até ali, estava apenas fingindo não escutar nada.
— Cadê a sua irmã, minha filha? — perguntou Lauro, como se a estivesse cobrando.
— A Selena mandou avisar que vai se atrasar, ela tá colocando a maquiagem ainda.
— Era só o que faltava — disse Dani, finalmente. Ele parou de ler um estranho catálogo de revista que estava vendo e foi discutir com Sheila a plenos pulmões.
Antes que Diego pudesse ficar feliz por saber que aquela menina chata não iria participar, uma voz estridente falou:
— EEEE VAMOS COMEÇAR! EU SOU O JURADO, E COMENTARISTA, DE HOJE E DE TODOS OS OUTROS DIAS! SEU QUERIDO PROFESSOR GUTIERREZ!
Ninguém o via. Era a sua voz ampliada pelos microfones que todos escutavam, não que ela já não fosse facilmente identificável sem os aparelhos. Gutierrez era uma verdadeira máquina de gritaria. Até hoje ninguém sabia como nunca, em todos esses anos, sua voz não estourava.
Sheila revirou os olhos e saiu do vestiário dizendo que iria vomitar se continuasse a ouvir aquelas baboseiras. Diego só não sabia se a moça se referia ao professor ou a Dani. Lauro, por outro lado, parecia mais animado do que nunca. Era como se ele e o professor tivessem a mesma energia.
— E VAMOS COMEÇAR MAIS UM INCRÍVEL TORNEIO! SÃO TRÊS DO TIME QUENTE CONTRA TRÊS DO TIME FRIO! AS REGRAS SÃO CLARAS: A LUTA SÓ ACABA QUANDO EU SENTIR PENA. OU ENTÃO QUANDO A PESSOA CAIR PARA FORA DO RINGUE. OU ENTÃO QUANDO A PESSOA ARREGAR! E VAMOS PARA A PRIMEIRA LUTA DO DIA…
Depois que todos os acompanhantes saíram por uma porta mais ao fundo, Lauro começou a se aquecer e sair por uma outra saída. Uma que daria para o ringue. Antes, ele se virou e disse:
— Me deseje sorte, parceiro.
Foi uma explosão de aplausos e vaias. A plateia estava repleta de alunos do primeiro, segundo e terceiro ano. O professor começou a falar o nome, peso e outras características de Lauro e depois de sua adversária: Maria Rocha.
Diego queria muito poder ver a luta, porém não podia. Tinha de ficar no vestiário, apenas ouvindo. Ali tinha uma televisão onde poderia assistir ao torneio, porém um aluno quente, enraivecido por ter perdido, acabou quebrando a televisão com um raio. Até então ninguém tinha arranjado outra.
Então era isso, ouvir os comentários para poder deduzir quem estaria vencendo ou não.
Enquanto isso, ele não parava de pensar sobre a sua luta. Ela não seria com Alastor. Ele foi escalado para lutar contra um outro rapaz frio chamado João. Diego não sabia nada sobre seu adversário. Não tinha se dado ao trabalho de pesquisar e agora estava tentando não se arrepender tanto.
Lauro lutaria contra Maria, Diego contra João e Alastor ficaria com Selena. Os vencedores da primeira rodada iriam avançar e lutar com outro vencedor. Isso iria se manter até que sobrassem apenas um. Um total de cinco lutas.
Bom, era bem possível que Alastor destruísse ela, o que seria cómico. Tiraria todo aquele ar de superioridade de Selena. Mas ele não podia desejar isso. Queria que Alastor fosse eliminado. De todos os três competidores frios, o garoto-cervo era o mais comentado, o que parecia ser o mais problemático.
— ESSA DEVE TER DOIDO! MAL COMEÇOU A BATALHA E… AÍ! UI! DEFENDE, GAROTO! HAHAHA! É INACREDITÁVEL!
Não dava para distinguir os barulhos do lado de fora. Parecia estar demorando de mais. Cada luta deveria durar no máximo 6 minutos. Era um tempo muito grande, porém não era eterno. Então por que será que Diego estava sentindo o tempo passar tão lentamente?
Menos de 1 minuto e meio foi o tempo necessário para a primeira luta acabar.
— E MARIA ROCHA É A VENCEDORA! DE LAVAAADA! UMA DAS LUTAS MAIS RÁPIDAS QUE EU JÁ VI! A SENHORIA ROCHA DESENHOU COM A CARA DO OPONENTE…
Depois daqueles comentários, os frios não iam precisar de muito esforço para criar novos apelidos. Aquilo assustou Diego. E se fosse ele o próximo a perder em um tempo recorde? E se sua derrota fosse de lavada, como a de Lauro?
Quando Lauro voltou ao vestiário, um olho roxo, Tiago, Dani e uma multidão enfurecida de alunos do primeiro ano também entraram.
— Só pode entrar um! Só pode entrar um!
“Não era para você ter perdido, seu bocó!”, diziam os inúmeros alunos para Lauro. “Agora nosso lado vai perder pontos por sua causa!”, “Vamos perder o final do ano por sua causa!”.
— Calma-lá, rapaziada — começou Lauro, rodeado de pessoas revoltadas. — Eu peguei leve com ela por ela ser menina. Mas fiquem tranquilos, pow. Ainda tem dois competidores do nosso lado.
— Ainda tem minha irmã — disse Sheila, cheia de si. — É óbvio que ela vai ganhar.
— Ah, é? — começaram em tom de cobrança. — E onde está a sua irmã?
— Se maquiando!
Para tentar livrar Sheila, Lauro distraiu toda a multidão.
— E o Diego? — Péssima ideia. Agora todos olhavam para ele, o avaliando. — Ele é bem capaz de vencer, não é não? Cês viram o que ele fez com os Baderneiros…
— Enfrentar os Baderneiros é uma coisa, enfrentar o Alastor é outra — disse um aluno.
— Como se o Lauro tivesse chance contra o Alastor de qualquer maneira — disse uma menina.
— Pelo amor! O que o Diego vai fazer? — apontou um terceiro. — Ele nem tem estratégia. É mais provável que acabe perdendo por suicidio, ou perca tanto ponto que a vitória dele não valha de nada. Isso se vencer!
— Gente! — chamou Sheila. — Tem a minha irmã!
Mas ninguém pareceu lhe dar atenção.
— E VAMOS PARA A SEGUNDA LUTA DO DIA! ALUNOS DO PRIMEIRO ANO DOS QUENTES, SEI QUE ESTÃO MUITO FELIZES COM O DESEMPENHO DO LAURO, MAS PAREM DE TUMULTUAR O VESTIÁRIO. VAMOS, VAMOS!
Todos sairam, não antes de mandarem alguns insultos para Lauro. Lauro encarou tudo muito bem, sorrisos e algumas piadas. Ele deu um tapinha nos ombros de Diego e deu também um grande sorriso. Desejou boa-sorte e disse para que ele não perdesse.
Lauro saiu. O perdedor da rodada anterior não podia ficar ali. Até mesmo Diego tinha esquecido de perguntar a ele como eram as estratégias de Maria e seus poderes. Mas se lembrou que não lutaria contra Maria agora, seria contra João.
Tiago deu um abraço no rapaz, o que lhe pegou desprevenido, desejou boa sorte e saiu. Dani e Sheila também falram alguma coisa. Quando todos saíram, o rapaz percebeu que estava sozinho e não tinha escutado uma só palavra das coisas ditas.
Um peso em suas costas esmagava as suas costelas. Ele deveria vencer. Agora era seu dever. Esse era o foco. O foco. Mas ele não conseguia focar em absolutamente nada.
Enquanto andava para o lado de fora e era ofuscado por uma luz intensa no rosto, sua visão ficou turva. Mal sabia como suas pernas o obedeciam.
Guetirrez falava alto sobre suas características, altura, nome, peso e etc. Enquanto isso, Diego tentava subir no ringue sem desmaiar. A pressão nos ombros só piorava. Ele sentia que não estava pisando em nada. O olhar vidrado, sem ver exatamente coisa alguma, o estômago enjoado.
Do outro lado vinha João. Ele estava no outro canto, o canto azul. Foi aí que Diego reconheceu que deveria estar no seu canto também. Na verdade ele nem sabia muito bem o que estava fazendo, apenas sentia, e já não tinha muita certeza disso também. Não podia de maneira nenhuma perder. Não tão fácil.
Ele tentava se acalmar, mas o zunido no ouvido, abafado e muito alto, lhe impedia disso. O branco do ringue lhe deixava tonto. Todos ficariam chateados com ele caso perdesse. Nunca mais teria paz caso perdesse aquela luta.
Lauro havia perdido em menos de um minuto e meio. E se ele fosse derrotado em menos tempo ainda? Se acalmar, ele deveria se acalmar. Mas quanto mais tentava, mais frustrado ficava por não conseguir.
Ouviu a ordem de Gutierrez para que se cumprimentassem. Foi a primeira vez que Diego viu João. Era um rapaz moreno que usava óculos, sim e parecendo tão nervoso quanto ele. Será se João estava pensando as mesmas coisas que Diego? Preocupado de ser motivo de chacota?
— E COMECEM!
João fez um movimento para frente. Diego se assustou e deu um enorme salto para trás. O zumbido no ouvido ficou mais alto. Ele balançou a cabeça e encarou o oponente a sua frente que estava começando a fazer um estranho movimento de mãos. Ele se lembrou da professora Domingues manipulando os fósforos.
Era algum tipo de segredo. Mágia. João iria lhe atacar agora com alguma coisa.
Diego avançou. Não iria deixar que ele completasse o segredo. Respirou fundo. Seu corpo ficou quente, como um metal que ficou tempo demais no sol. Ele projetou um soco carregado, o mais forte que conseguiu. Foi aí que ele viu o sinal que João estava fazendo.
Aquilo não era um tipo de segredo. Eram os dois braços para cima e os dois dedos mindinhos levantados. Aquilo, e Diego sabia disso, era o sinal de rendição. E acertar alguém que havia se rendido era falta. E falta eram menos pontos. Agora não tinha jeito, teria de arcar com as consequências.
Diego afundou o rosto do rapaz com um soco de cima para baixo. Seu óculos partiu. Depois de voar alguns metros para trás, seu corpo se arrastou pelo chão. O impacto foi tão forte que João rodopiou em uma espiral até alcançar as cordas e cair para fora do ringue.
Uma manobra e tanto. Impressionante, até para ele mesmo. Mas a que custo? Tinha levado uma falta, mais uma e seria eliminado. Agora sim seria um motivo de piada. Agora sim a sua vida estava arruinada.
Mas não foi exatamente isso que ouviu daquele estranho zunido, um ruído que não conseguia distinguir. Agora conseguia. Eram os uivos de comemoração da plateia.
— EU NÃO ACREDITO, SENHORAS E SENHORES! — Não apenas Gutierrez, mas todos, gritavam de alegria até suas garganta explodirem. Pulavam de excitação. Balançavam o corpo para lá e para cá. Até os frios, que não eram agitados, estavam se esforçando para que suas vaias fossem mais altas que os vivas. — O MURDOCK FEZ O OPONENTE DE PIÃO! E ISSO TUDO EM TEMPO RECORDE PARA OS PRIMEIRISTAS! MENOS DE TRINTA SEGUNDOS!
No vestiário, lhe deram vários tapinhas nas costas e falaram o quanto sua força era incrível. O quanto suas chances de vencer Alastor eram maiores. Estavam todos impressionados com a sua força. Fazer aquilo com João não era coisa que qualquer garoto do primeiro ano poderia fazer. Talvez Golias.
Enquanto todos diziam o quanto estavam animados, e Gutierrez berrava os mais engraçados e variados comentários sobre a luta, Diego pensou consigo mesmo algo que lhe fez rir: “Será se alguém ajudou o coitado do João?”