Volume 1 – Arco 4

Capítulo 19: O Que Os Olhos Não Vêem...

Diego experimentava os resultados de sua primeira luta. No vestiário todos lhe deram parabéns e mais sinais de aprovação. Mesmo que tivesse ganhado uma falta ninguém parecia estar pensando sobre isso. Sua força era a atração principal. Não podia negar, fazer alguém girar daquela maneira, com um soco, era um feito e tanto.

Agora ele teria de tomar cuidado para não fazer mais uma falta. Isso significaria uma desclassificação e menos pontos para toda a sua equipe. 

— Falando nisso — começou ele. — Onde está a Selena? A luta dela é a próxima…

— Estou aqui — disse ela, altiva, entrando no vestiário com um gingado que o rapaz considerou ser ridículo.

“Maldita boca”, pensou. 

Selena se sentou ao lado da irmã, pernas cruzadas, queixo empinado e analisando Diego de cima a baixo. Ela estava com uma roupa muito colada ao corpo. Sua pele aparecia em um decote, os espaços para as mãos e obviamente o pescoço.

Eu vi a sua luta, pivete — começou. — Agora tome cuidado para não ganhar mais uma falta. 

— Toma cuidado você! Vai lutar contra o Alastor agora. É melhor não perder! — disse, irritado.

Eu não vou perder. Jamais. — Ela olhou para as unhas, enormes e brilhantes. Parecia ter purpurina. Ela estava impecável. Cabelos amarrados em uma única trança, estendidos ao longo das costas. Seus lábios incrivelmente proeminentes, como se tivesse feito um preenchimento.

Assim que Gutierrez a chamou no palco, a apresentando com um peso que certamente era muito menor do que um humano recém-nascido poderia ter, Selena passou por Diego e fechou delicadamente o seu queixo.

— Baba não, baby. E aprende a lutar. — Com uma última piscada, foi em direção a saída, desfilando. 

Todos saíram da sala e deixaram o rapaz ali, sentado, esperando pelos resultados. Assim que Alastor foi apresentado, o rapaz sentiu um arrepio na espinha. Não gostava de Selena, porém a coceirinha atrás da orelha queria lhe alertar. Mas o quê?

Ela ficaria bem, assim pensava. Com toda aquela confiança, poderia muito bem deixar Alastor tão irritado que talvez perdesse a compostura. Alastor. Aquele garoto de terno vermelho e chifres de cervo. Sorriso maníaco, olhos arregalados e perversos. Lembrar daquele olhar o fez se contorcer na cadeira. 

Não, isso devia ser coisa da sua cabeça. Alastor não poderia fazer mal a Selena. Existia o Prof. Gutierrez para apartar qualquer situação problemática. Certamente nada de muito grave aconteceria a ela. Então por que estava sentindo como se isso fosse realmente acontecer? E se acontecesse? O que tinha ele a ver com Selena?

— SELENA CONSEGUIU PRESSIONAR ALASTOR CONTRA O CANTO DO RINGUE! PARECE QUE ELA DEIXOU ELE SEM SAÍDA!

É, estava enganado. Era aquela voizinha lhe pregando uma peça mais uma vez. Porém o ar ficou mais gelado. O tempo pareceu parar. Era como se desse para sentir todos prendendo a respiração quando ouviram as palavras do narrador:

— UM SOCO-INGLÊS! ALASTOR TEM UM SOCO-INGLÊS! 

Diego se levantou em um susto. Uma arma? No torneio? Impossível. Não eram permitidas armas, a menos que… A menos que invocadas. Troca. O termo ficou viajando pela sua mente várias vezes. Alastor era um Troca. Um dos melhores. 

Se lembrou da aula da professora Domingues, onde ela explicava que fazer invocações eram muito difíceis, já que dependia do peso e da distância. Ela garantiu que nenhum garoto do primeiro ano conseguia invocar coisas pesadas de muito longe! .

Então como Alastor fez aquilo? Duvidava muito que houvesse um soco-inglês tão perto assim. Gutierrez verbalizou todos os seus pensamentos:

— MAL DÁ PARA ACREDITAR! UM GAROTO DO PRIMEIRO ANO CONSEGUIU INVOCAR UM SOCO-INGLÊS! QUE EXCELENTE TROCA! AGORA… SELENA VAI TER QUE CORRER… UI!

Diego ouviu o barulho atraves da multidão de protestos. Era alto, estranho, como se carne estivesse sendo quebrada. O rapaz ficou inquieto, começou a andar de um lado para o outro. Os barulhos estranhos… Um, dois, três… e assim por diante até finalmente acabar em onze. Onze o quê?

— DESCULPEM! — disse Gutierrez com voz fraca. Logo ele recuperou a compostura animada, falsamente, e continuou: — EU NÃO POSSO, CRIANÇAS! ELA AINDA NÃO CAIU E NEM DESISTIU!

Isso explicava a multidão pedindo para que Gutierrez agisse. Mas isso não explicava o porquê Diego estava correndo em direção a arena. Por qual motivo ele se importaria com a luta daquela garota? Conseguiu arranjar um motivo assim que chegou perto e ficou chocado com o que viu.

Alastor estava segurando Selena pelos cachos, impedindo a menina de cair. O rosto dela estava completamente irreconhecível. Inchado, melado de um líquido vermelho. Também haviam diversas marcas fundas em seu rosto, provavelmente obra do soco-inglês. O sangue pingava no ringue.

E Alastor continuava golpeando a menina, sem a deixar cair, com aqueles olhos gigantes, o sorriso maníaco. Sangue espirrava em seu rosto, mas ele nem fazia questão de limpar. Parecia estar se divertindo batendo em alguém que não podia revidar. 

“Já chega”, pensou Diego. Ele sentiu seu corpo quente, os dedos estalarem com o fechar de seu punho. Suas sobrancelhas tencionaram. O nariz enrugou. Ele subiu no ringue, ao menos tentou, porém uma mão o trouxe de volta para o lado de fora. Diego tentou lutar. Inútil.

— Calma, calma, calma! — Era a voz de Gutierrez, sem o microfone. Diego pôde ver seus olhos verdes por trás dos óculos escuros. — Você tem que voltar, não pode ficar aqui.

— Me solta! Ela vai morrer se continuar assim. Não tá vendo a cara dela?!

— Mas ela ainda não caiu — disse, enquanto aproximava o microfone da boca. — E TAMBÉM AINDA NÃO DESISTIU!

A ênfase na última palavra foi o suficiente. Selena subiu os dois braços, os dois dedos mindinhos levantados. O sinal de desistência. A luta ia parar. Mas Alastor já estava encaminhando um novo golpe com o soco-inglês. Ele não podia fazer aquilo. Era uma falta.

Diego tentou se desvencilhar com toda a força, porém ninguém mais o segurava. Gutierrez estava no ringue erguendo o braço de Alastor para o alto.

— E TEMOS O VENCEDOR DA RODADA: ALASTOR BLITZE!

O rapaz não sabia mais o que estava acontecendo. Uma hora aquele homem estava do seu lado e num piscar de olhos estava ali, impedindo Alastor.

Os quentes vaiavam, os frios tentavam conter, embora estivesse óbvio que sua maioria não aprovava a ação.

— BOM, INFELIZMENTE ALASTOR TERÁ DE PEGAR UMA FALTA POR TER ATACADO A ADVERSÁRIA, SENDO QUE ELA JÁ HAVIA DESISTIDO. CUIDADO, ALASTOR. MAIS UMA E VOCÊ PODE SER ELIMINADO.

O garoto-cervo não pareceu chateado por conta dessa notícia. Estava profundamente irritado por terem tirado Selena de seus braços. Ele deu as costas e voltou, bufando, para o seu vestiário. 

Diego viu Selena ser colocada em uma maca por outros alunos e levada para fora do local. Sheila estava chorando atrás dela. 

De relance, por alguns segundos, Diego encarou a multidão e viu uma pessoa muito feliz com tudo que estava acontecendo. Era um rapaz branco, como papel, e tão loiro quanto Tiago. Ele olhava diretamente para Diego, com um sorriso debochado no rosto. 

Estava apontando, rindo e debochando de toda a situação. Ao seu lado estava Léo. E Léo, de todas as pessoas do Craveiro, não poderia estar achando aquilo a coisa mais sem graça do mundo.

O rapaz voltou para o vestiário, bufando. Quem era aquele garoto? Por que ele estava rindo daquele jeito? Era como se estivesse se divertindo com o sofrimento alheio. Não, ele não estava rindo de Selena, estava rindo de Diego.

Lauro e Dani tentaram conversar sobre a sua próxima luta, a estratégia que ele deveria seguir. Tudo que o rapaz ouviu foi alguma coisa sobre Maria ter poderes elétricos. Aquilo não fazia diferença, pensava. Em sua casa teve treinos de resistência à eletricidade, providenciados por seu tio.

Deu um basta nos comentários com um chute no seu banquinho. Ele queria desabafar sobre sua frustração. 

Nos dois minutos de comentários, onde Gutierrez avaliava a luta, Diego contou tudo a Tiago. Toda a sua frustração, como Alastor fizera aquilo. Como Selena ficara. Sobre a velocidade do professor. Sobre aquele garoto branco, ao lado de Leo…

— Ah! Aquele é o Gabriel, parceiro — disse Lauro, que estava ouvindo. — Não liga para ele, ele é um idiota.

— Idiota seria um termo muito antiquado para ele — comentou Dani. — Ele é o que todos poderiam chamar de: Um verdadeiro babaca.

Gabriel. O nome não era estranho. Então se lembrou de todas às vezes que Mini e Léo falaram aquele nome. Principalmente Mini, que só parou de tentar matar Diego quando o nome do garoto fora mencionado.

— Na verdade o nome dele é Galadriel — disse Tiago. — As pessoas o chamam de Gabriel porque é mais fácil. Mas não mexa com ele, Diego. Ele é um Balthazar.

— Mexer? Quem aqui está falando em mexer com ele?

— Olha para sua cara, parceiro. Você está se tremendo de raiva.

— Estou com raiva por causa daquele idiota do Alastor...! — explodiu. — E porque o professor me impediu de dar na cara dele...! E porque aquele idiota estava rindo de mim!

Diego se levantou e começou a chutar qualquer coisa a sua frente. Por que Galadriel estar debochando de sua cara lhe deixava tão irritado? Mal tinham se conhecido e já eram inimigos. Pelo visto ele fazia parte dos Baderneiros, afinal era amigo de Leo.

Não sabia mais o que pensar. Ver Selena daquele jeito lhe afetou. Ele começou a ficar tonto quando lembrou do rosto da moça. Talvez tivesse ficado feliz por ver ela perder, caso Alastor não tivesse jogado sujo. 

Agora estavam falando mais uma vez para tomar cuidado com Maria. Todos diziam para ele não perder. Ele não iria perder. Não agora que tinha de vingar Selena. Ao menos era isso que via como justo. 

Então, todos saíram, pois Gutierrez chamou Diego para subir. O rapaz já estava indo, enraivecido, quando Tiago tocou o seu ombro.

— Escutou o que eu disse? 

— O quê?

— Disse que é para evitar os punhos da Maria. Ela é uma boa Geradora e uma ótima lutadora. Estou falando sério. Tenta resistir o máximo que conseguir até ela cansar. Entendeu?

— Tá. — E saiu.

Sua mente estava uma bagunça enquanto passava pelas cordas do ringue. Só ouvia os aplausos e vaias. Alastor. Como será que estava aquele sujeito? Não, não. Primeiramente deveria se focar em Maria. Ela era a sua luta agora. Focar no oponente à sua frente era o objetivo. 

Mas a ideia de Galadriel estar soltando aqueles risinhos lhe tirava do sério. Como ele poderia ser tão mau? Nem conhecia Diego. Ou será que estava zombando dele por conta de sua reputação com os inúmeros apelidos?

Ele lançou um último olhar de desafio em direção aonde estava Galadriel. Quando o encontrou, reparou em algo estranho. Um brilho. Não, o brilho não vinha de Galadriel, vinha exatamente do seu lado. Era refrescante olhar ali. Era como se esquecesse de todos os problemas. De alguma forma se sentia protegido.

Quando identificou a responsável pelo brilho, reparou em sua pele branca como a neve, os cabelos grandes, loiros e ondulados, enfeitados com uma trança ao redor da cabeça que lembrava uma coroa. 

Uma princesa? Não, não podia ser. Sua mente estava lhe pregando uma peça. Preferiu debochar do que estava vendo. Tirar sarro. A menina para quem estava olhando era bonita, isso tinha de admitir. Talvez mais bonita que às duas gêmeas juntas. Porém o que tinha de mais nisso? 

“É só mais uma princesinha metida a besta”, pensou. E deveria estar certo, já que a moça estava do lado dos frios. “Fora que ela parece uma luminária. Quem pode ser tão branca assim? E tão loira? E essa cara de porcelana. Parece que foi feita sob medida.”

E ele tentou, muitas vezes, colocar mais defeitos no que via nela. Ele nem sabia o motivo de estar perdendo tempo encarando-a, quando deveria estar prestando atenção em outra coisa. Mas o que era? Bom, não importava. Estava confortável vendo ela. 

Devia ser a única pessoa no mundo a tentar encontrar defeitos em algo que estava definitivamente lhe fazendo algum bem.

— E ELA FAZ O PRIMEIRO MOVIMENTO!

Ah, sim! O torneio. Era isso que deveria estar prestando atenção. Mas por que Maria avançava tão rápido? Já tinha começado? E como que o seu punho estava fazendo aquela zoada tão intensa? Como se fosse um trovão...

Depois do barulho de trovão, veio um clarão que cegou Diego. Ele ficou paralisado, embora pudesse sentir que seu corpo caia. O impacto no chão lhe fez voltar a respirar. Não estava entendendo nada. Estava quase cego, sentindo seu corpo estremecer e surdo. 

Enfim estava no chão. Os olhos arregalados. A única coisa que ouviu foi o grito indignado de Gutierrez:

MAS JÁ?!



Comentários