Volume 1 – Arco 11

Capítulo 75: O Rei Amarelo

Diego caiu no chão e foi se arrastando para trás, em direção a sua cama. Suava frio, sua visão estava turva e a dor em seu estomago mais forte do que nunca. Desnorteado, estava sem fazer a mais vaga ideia do que deveria fazer. 

Gritava por socorro, mas ele não vinha. Talvez ninguém pudesse ouvi-lo por conta de alguma magia nas portas. Só assim para não ouvirem os seus berros de socorro, pedindo por ajuda.

— Um nocivo! A Besta! Socorro!

E continuava a se arrastar para longe da janela. Sua dor não melhorou, mas teve de aprender a tolerar. Tinha de achar uma saída dali e rápido. A porta estava fechada. Do lado de fora da janela estava uma criatura que certamente lhe torturaria antes de finalmente lhe matar.

Tinha de achar uma saída. Rastejou para baixo da sua cama como um verme contorcido, com medo da chuva, medo da criatura. Ele sentia se aproximar, o frio na espinha ficar cada vez mais insuportável e assustador, sua intuição buzinar em sua cabeça: “Saía daqui, saía logo daqui…”

Embaixo da cama não era muito melhor. O chão de madeira estava frio. Era uma madeira escura, parecia com a madeira da enorme biblioteca do Craveiro, aquela que parecia um enorme coliseu de tão grande. 

Desejou que houvesse uma passagem secreta naquele lugar, como aquele escorregador que levava até o banheiro masculino do andar onde ficavam as salas de aulas. Descobriu isso com Rafaela, aquela estranha garota de olhos amarelos e cabelos ruivos.

Se lembrou que certo dia perguntou a garota: “Como você acha esses lugares?” E a resposta dela foi: “É muito fácil. É só ficar batendo na madeira e a que fizer um barulho estranho das outras é a escolhida.”

Embora a pergunta tenha sido retórica, na época, achou o conselho válido e resolveu anotar mentalmente para caso precisasse no futuro. E ali estava, no futuro. Deitado no piso de madeira da sua casa.

Se levantou com ânimo, e com dor, e ficou batendo no chão, tentando prestar atenção em qualquer barulho que fosse diferente. Prestou atenção suficiente para ignorar a chuva e o medo da criatura se aproximando; pois sem dúvida ela se aproximava.

Vasculhou o quarto inteiro com uma grande velocidade, isso lhe custou bastante sangue, até finalmente encontrar um barulho diferente, perto da comoda onde ficava o seu espelho. Era um som oco, como se não houvesse mais nada embaixo, como se a tábua fosse fina.

Forçou, bateu, chutou e até pulou, o que apenas acarretou em mais dor em seu estomago e por fim mais vomito. Não desistiu, continuou tentando, até que finalmente conseguiu. Um pequeno buraco, que mal daria para atravessar seu corpo, em direção a biblioteca, que ficava logo abaixo de seu quarto.

Forçou seu corpo através da passagem estreita. Estava bem iluminada, pois costumavam deixar algumas luzes da casa acesas, e aquele comodo fazia parte da lista. De cabeça para baixo, ficou preso no teto da biblioteca. Sentia mais sangue chegando pela sua garganta e a tontura apenas piorava.

Mesmo assim, não desistiria. Conseguiu colocar uma das mãos para fora e se forças pelo buraco, empurrando a parede, se jogando em direção a uma estante. O garoto conseguiu descer, caindo de cara em cima de uma estante de livros, o fazendo rodopiar no ar e bater de costas contra o chão.

Tudo ficou escuro. Viu luzes distantes chegando mais perto, se transformarem em lindas estrelas cadentes e dançarem para longe, sincronizada, inebriante. Até sentir a dor no estômago mais uma vez. 

Acordou com os olhos inchados, o rosto completamente vermelho. Ainda chovia. Ainda era noite e nada daquilo havia acabado. Se levantou, sentindo dor em cada centímetro de seu corpo, em especial a barriga, e tentou colocar a cabeça para funcionar, embora ainda estivesse confuso e um tanto tonto.

Era uma biblioteca. Não tão grande quanto a do Craveiro. Sim, isso era um fato. Então, o que há em ma biblioteca? Livros! E livros são feitos de quê? Papel! O que significa que… Sim, fogo era a solução. 

As portas podiam ser magicas, mas certamente não impediam da casa pegar fogo. Diego andou de um lado para o outro na biblioteca em busca de algo que pudesse acender. Se tivesse aquele bendito isqueiro consigo… Não era hora de olhar para trás. Iria reduzir aquela casa a cinzas, do jeito que sempre quis fazer.

Suas pernas falharam em alguns momentos enquanto checava algumas estantes. Caiu no chão diversas vezes e demorava alguns minutos para se levantar. Só começou a apertar o passo quando ouviu um ruído vindo de cima.

Era como um cachorro raspando o chão. E quando olhou para cima, viu garras tentando abrir um pouco mais daquele pequeno buraco feito por ele. Era A Besta, sabia disso.

O garoto correu, mas ficou tonto e esbarrou em uma estante. Depois foi rastejando para qualquer canto escuro e escondido da biblioteca afim de se afastar do que viria por aquela passagem. Logo, logo ela estaria aberta e a criatura entraria ali. Era seu fim, ninguém viria lhe ajudar.

Enquanto se arrastava para os cantos mais distantes da biblioteca, sentiu esbarrar em algo de ferro, machucando seu braço, o fazendo formigar. Quando olhou para baixo, viu que se tratava de alçapão.

Não teve nenhum receio. Abriu a comporta e se jogou para dentro sem ver nada, deixando a porta aberta e desabando pelas escadas. Caiu num chão mofado, em um lugar escuro. Ali deveria ter algum alento, algo para atear fogo na biblioteca.

Ali havia outras estantes com coisas estranhas, como olhos, criaturas miúdas e plantas bizarras. Não estava assustado, a dor lhe impedia de sentir mais medo do que já estava sentindo da fera lhe perseguindo. 

Andou pelos corredores, quase completamente no breu, onde a única fonte de iluminação vinha da porta do alçapão aberta. Virou algumas esquinas, tateando tudo, quebrando alguns vidros que caiam no chão, observando , mexendo em tudo, até que…

Diego viu um pano cinza e mofado, coberto por teias de aranha, tapando uma mesinha. Havia algo atrás daquele pano, ele sentia isso. Não era uma intuição, como as vezes em que tinha quando detectava perigo. Era como se tivesse certeza absoluta que houvesse mesmo algo ali. Algo que lhe chamava.

 

Venha cá. Se aproxime. O que você procura está aqui. Tudo está aqui.

 

Por mais estranho que pudesse ser, observar aquele estranho pano mofado e velho lhe dava reconforto. Era como se sua dor estivesse sumindo, aos poucos, ou de fato talvez estivesse mesmo sumindo, já que a cada passo em direção ao objeto maior era a sensação de bem-estar. Lentamente o rapaz retirou o pano de cima da mesa e…

 

Isso. Se aproxime. Me pegue, me leia.

 

Era um livro. Não havia nada de especial nesse livro, exceto a cor amarelo. Nem mesmo havia um título, ou talvez tinha, mas era impossível de ler por conta da escuridão. A parte curiosa era que quanto mais Diego se aproximava, melhor ele se sentia.

O rapaz pegou o livro e o examinou com cautela, se esquecendo completamente de qualquer outro problema que pudesse ter. A dor do veneno, a dor no estômago, A Besta atrás dele, tudo isso parecia ser uma memória distante, sem grande importância, coisas do passado. O livro era tudo que precisava agora.

Observando a capa do livro, notou que de algum jeito misterioso um título branco foi aparecendo em letras elegantes. O título do livro era: O Rei Amarelo, E A Coroa Negra.

 

Me leia.

 

“Sim, eu vou ler”, pensou o garoto, enquanto observava a capa com entusiasmo e fascinação. Quanto mais olhava, mais desenhos apareciam. Não eram simples, eram estranhos, lembravam estrelas e formas bizarras. Tinha de ler, tinha de saber o que era aquela história. Mas na escuridão não podia.

Andou de volta até as escadas, sem desgrudar os olhos da capa com seus desenhos incríveis. Subiu degrau por degrau, lentamente, até chegar na biblioteca, onde havia luz. E um segundo antes de abrir o livro para ler, o rapaz viu uma sombra lhe atrapalhando.

Quando olhou para frente, desgrudando a visão do livro, sentiu que todos os problemas voltaram de uma vez só. Suas pernas enfraqueceram, seu estomago revirou de dor, e a vontade de vomitar estava mais forte que nunca. 

A sua frente, parada, lhe observando com olhos amarelos, sem um dos braços, com chifres ondulados projetados para fora do cranio, estava o nocivo. Sua baforada era quente, sua expressão era de raiva. Molhado e sujo, parecia estar examinando a presa.

O garoto, por reflexo, tentou se proteger da criatura com o livro, como forma de escudo. Isso pareceu assustar a fera, que deu um passo para trás e logo depois um tapa no objeto.

O livro foi projetado em direção ao rosto de Diego, amassando seu nariz e o fazendo cair no chão, zonzo. Viu tudo ficar turvo e se distorcer. Olhou para a fera, ela ainda o observava. Olhou mais para o lado e viu o estranho livro caído, porém, aberto. E mesmo naquela posição, ele conseguiu ler o título…

 

ATO I

 

No final, havia terra, luz, sol, ventos e água. Para completar, havia vida também. Vida para todos os lados em que se olhava. Mas antes disso havia muito mais. Muito mais.

Antes da Terra, só havia a luz das estrelas. Antes das estrelas, havia poeira. Antes da poeira houve uma explosão. Antes da explosão, não havia nada. E antes do nada, existia um Monstro.

O Monstro sem forma ocupava o infinito. Sua carne avermelhada era podre e sangrava.

O Monstro talvez fosse racional, talvez perdera a razão após eras sozinho no vazio da própria existência. Não se sabe. Tudo que se sabe é que em certo ponto, o Monstro, cansado da própria existência, que sempre existiu, guerreou consigo mesmo.

O Monstro se mordeu, se rasgou, se perfurou por muito tempo, pois já estava agoniado com a própria existência. E depois de muitas eras de tormento e tortura, o Monstro morreu. Sua carne apodreceu e dela nasceu muitos.

Incluindo O Rei e sua Coroa.

 

— Saudações, criança — ouviu a voz dizer. — Proponho um acordo.



Comentários