Volume 1 – Arco 11
Capítulo 76: Olhos Vermelhos
Estava escuro o suficiente para o rapaz não conseguir ver as próprias mãos. Era um ambiente molhado, o chão chacoalhava como se tivesse uma fina lamina d’água o cobrindo, fazendo pequenas ondas. Ao redor ouvia-se o ruído de uma névoa pesada, cortante.
O rapaz andou cautelosamente para frente, desconfiado de sua atual localização. Sentia que a sua frente acharia algo importante. Certamente aquela voz que ouvira mais cedo vinha daquela direção.
— Que acordo? — perguntou ele para o absoluto nada.
— Lhe darei tudo em troca de algo — a voz respondeu. Ela era áspera e fria, um tanto impaciente, como se estivesse com pressa.
— Quem é você? Por que não aparece? — O rapaz continuou andando em direção a voz a sua frente.
— Não estou me escondendo. Você apenas não quer me ver.
E apenas por um segundo, enquanto rapaz prosseguia em sua curiosidade, acabou tomando um susto. Por um segundo, viu uma figura distorcida no meio da escuridão, amarelada e com diversos apêndices saindo por debaixo de seu manto amarelado. Ele não quis prosseguir.
— O-o que quer de mim? — Andou para trás, cautelosamente.
— O mesmo que você — respondeu de modo que sua voz ecoou pelo espaço vazio. — Quero… Coisas diferentes.
— Que tipo de coisas?
A voz fez uma breve pausa.
— Criança — continuou. — Deseja poder? Fama? Glória? Ou deseja uma… Família? Amigos e companheiros? Uma forma de se provar para o mundo? O que deseja?
— Eu… — Diego ficou perdido no meio das ideias. — Eu não sei.
— Por isso proponho um acordo. Me ajude a conseguir… Uma coisa. Ela está perto, sim, eu sei que está. Próximo. E sei onde está. Você me levará até lá, criança.
Diego andou um passo para trás, sentindo que a voz ficava cada vez mais alta, embora não estivesse gritando. Ficou apreensivo.
— E-e o que eu ganho em troca nesse acordo?
— Tudo.
Diego engoliu em seco.
— Tudo?
— Qualquer desejo. Família, amigos, poder, força, controle. Qualquer pedido. O que quer mais que tudo?
— Eu… — O rapaz se pôs a decidir-se, mas não conseguiu, pois eram muitos pedidos que lhe viam em sua cabeça. Queria estar com os amigos, porém se fosse apenas um desejo, queria ser forte o suficiente para conquistar as pessoas, embora soubesse que fosse um pedido egoísta. O que queria de fato? — Eu não sei… Eu não tenho certeza.
— Pense. — A voz parecia mais impaciente. — Agora, vá.
— C-calma… Q-quem é você?
— Não há tradução para mim, criança. Sou Rei.
Diego abriu os olhos, agora brilhando em vermelho escarlate, sentindo uma enorme vontade de vomitar. Ficou de quatro no chão e sentiu que alguma coisa iria lhe rasgar a garganta. A sensação foi horrível, os olhos do garoto quase saltaram para fora quando um estranho corpo acinzentado, quase negro, saiu pela boca do rapaz e caiu no chão, se debatendo como um verme.
“O que é isso?”, peguntou-se o rapaz, mais calmo do que normalmente estaia, enquanto encarava a criatura que ele havia botado para fora. “Parece um verme, um nocivo verme que vi nas aulas da professora Domingues. Ah, acho que me lembro.”
Primeira pergunta: Como deve ser tratado o leigo/opulento/assistente-social que por ventura recebeu um parasita de um nocivo tipo v?
Resposta: Os nocivos verdes são capazes de colocar parasitas dentro do corpo de uma pessoa. Não há como tirar o parasita do corpo de uma pessoa. A única forma é a sacrificar o paciente, isso se a vítima não morrer antes.
“Então eu fui infectado?”, continuou a pensar enquanto se levantava e observava a criatura agonizando no chão, com toda a calma do mundo. “Quando foi isso? O nocivo amarelo não foi, apenas um verde faria isso. Talvez tenha sido a dois anos atrás, na infestação da minha casa. Mas isso é impossível, eu já teria morrido. A menos que…”
Antes que pudesse continuar pensando, o verme agonizando na sua frente ficou maior, retirando de suas costas duas mãos magrelas e compridas. A criatura bizarra se rastejou para longe, para um canto escuro da biblioteca. Diego acompanhou a criatura com o olhar, até finalmente dar de cara com o nocivo amarelo a sua frente, que sempre esteve ali lhe observando.
A fera o olhava com curiosidade. Depois se aproximou um pouco mais do rapaz, e sem lhe atacar, encostou a única mão boa na testa do garoto. Diego não se sentiu ameaçado, observava o nocivo com a mesma curiosidade, agora com as iris dos olhos vermelhos, igual as do bárbaro em seu sonho.
“O que será que ele está fazendo? Quer saber se ainda consigo derreter um de seus membros com um único toque? Isso não aconteceu agora. A mão dele continua intacta, o que significa que…”
Como ele pensava. A criatura rugiu e lhe segurou pela cabeça, o erguendo do chão, furiosa. “Ela quer vingança pelo que fiz nela, com certeza”, pensou o garoto, sentindo dor, embora a dor não estivesse lhe incomodando tanto. As garras da criatura penetraram um pouco na cabeça do rapaz, fazendo um pouco de sangue descer.
Segunda pergunta: Quais os tipos de gases de alta temperatura que podem ser considerados a maior fraqueza de um nocivo de qualquer tipo?
Resposta: Fogo.
“Preciso invocar fogo, mas não sou um Gerador. Ainda nem corei.” Mais uma vez o rapaz se lembrou de uma conversa que teve com Faramir, onde ele revelava o que era um “Ritual”, método que facilitava a canalização dos segredos. Esse ritual era feito por meio de sangue.
Diego rapidamente passou a mão na cabeça, onde sangrava, e com o sangue nos dedos desenhou um círculo na palma da mão esquerda e por fim apontou para a criatura, que rugia e aproximava sua boca enorme e cheia de dentes para mais perto da face do garoto.
“Não posso fazer isso”, pensou Diego. “Se jogar uma bola de fogo tão próxima vou acabar me queimando no processo.” Ele nem se perguntava se era ou não capaz de fazer. Sentia que conseguiria de qualquer jeito. “Tenho de pensar em outra coisa.”
O garoto com os olhos vermelhos, olhou para cima e teve uma ideia ao se lembrar mais uma vez do sonho que teve com o bárbaro. Em seu sonho havia todo o material que ele precisava para se livrar daquele nocivo.
Apontou a mão para cima, para o teto da biblioteca e imaginou aquele enorme machado dourado caindo em sua mão.
Isso não aconteceu. Foi quase. Uma fenda se abriu no teto e de fato um enorme machado dourado apareceu dali, mas era enorme, gigantesco. Diego jamais poderia segurar aquilo. E para a sua sorte, o machado não caiu em sua mão.
A arma gigantesca rodou no ar e sua lamina passou a centímetros de distância do topo da cabeça do nocivo, cortando um de seus chifres ondulados e cravando fundo em sua clavícula, próximo ao pescoço.
Imediatamente a criatura soltou Diego com um rugido de dor, enquanto afundava no chão com o peso do machado. O pedaço cortado de seu chifre foi para um lado, enquanto aquele estranho colar que a criatura usava, com uma espécie de amuleto azul, foi cortado e caiu para o outro lado.
Assim que o rapaz da cicatriz pousou no chão, sentindo-se tonto, embora estranhamente aquilo não lhe incomodasse, disparou em direção ao amuleto, deduzindo que aquilo poderia fazer algo importante. Assim que tocou no objeto, o mundo ficou azul.
Tudo perdeu a cor também a sua dureza. Era como se todo o mundo fosse uma nevoa azulado, difícil de ver, porém não impossível. Havia uma nuvem enorme se contorcendo no chão enquanto tentava retirar outra nuvem, esta com um formato um tanto mais linear. Com toda certeza era o nocivo e seu machado.
Diego andou lentamente ao redor do que parecia ser a criatura, a observando com atenção. Assim que o nocivo se viu livre do objeto cravado em sua clavícula, se levantou com dificuldade e começou a olhar para todos os lados, como se procurasse algo.
“Ela não me vê”, concluiu o rapaz. “Então era assim que ela aparecia e reaparecia. Esse amuleto é um item magico que deixa invisível. Mas acho que isso só se limita a visão.”
Ele encarou mais uma vez a criatura e notou que ela farejava e olhava de um lado a outro, derrubando algumas estantes, procurando pelo seu agressor. Diego encarou o chão e viu o chifre decepado da criatura no chão.
Terceira pergunta: Qual é o maior ponto fraco dos nocivos a ser explorado no caso de uma infestação de níveis inferiores a superiores?
Resposta: Os olhos.
Diego correu em direção ao chifre, rolou no chão e conseguiu pegar. A criatura notou seu movimento e logo se virou em direção ao ruído. O rapaz preparou o objeto na mão com calma e assim que a criatura se jogou em sua direção ele também saltou, evitando as presas, se fixando no pescoço da besta.
Ela o levantou do chão, furiosa. Segurando o único chifre restante da criatura, Diego afundou a ponta afiada do outro, como uma haste, no olho esquerdo do nocivo. A fera começou a se jogar de um lado para o outro, fazendo o rapaz perder o equilíbrio, o jogando de costas em uma das estantes.
Sentiu a dor, porém não se incomodou com ela. Levantou logo em seguida. Seu coração não batia acelerado, estava realmente calmo. Notou que já não estava sob o efeito do amuleto, provavelmente tinha perdido. Isso não importava agora.
A criatura estava se contorcendo de dor e logo o veria parado, a observando. Isso aconteceu mais rápido do que ele imaginou. A criatura correu em sua direção. Tinha de fazer algo agora mesmo.
Ainda com o desenho na mão feito de sangue, Diego tentou lançar mais alguma magia. Queria eletricidade, fogo, qualquer coisa que afastasse a criatura. Nada disso aconteceu. O que ele conseguiu fazer foi além.
O machado enorme e dourado se deformou e dele saiam correntes que prenderam o corpo da criatura contra o chão, a impedindo de continuar avançando. As correntes eram finas, logo o nocivo as quebraria.
“Primeiro invoquei o machado, isso é coisa de Troca”, pensou o garoto. “Agora faço o metal se transformar em correntes. Isso é Transfiguração. Quer dizer que sou um multi-tipo?”
Seus pensamentos banais foram interrompidos por algumas correntes se partindo. Teria de fazer mais que aquilo para se livrar daquele problema. Levantou a mão mais uma vez e tentou pensar em fogo. Saiu um raio que atingiu o peito da criatura e a eletrocutou. As correntes também ajudaram a queimar a pele da criatura.
“Raio. Isso é coisa de Gerador. Tenho três tipos de segredos. O que mais consigo fazer?” Enfurecida, o nocivo se desprendeu e avançou em direção ao garoto. Talvez estivesse com medo em outras situações, principalmente ao ver o tamanho daqueles dentes. Entretanto, o rapaz dos olhos vermelhos apenas levantou a mão mais uma vez.
Pensou em mais um raio e dessa vez saiu fogo. E de fato uma bola de fogo atingiu em cheio o rosto da criatura. O problema era que Diego estava perto de mais e foi atingido pelo impacto da explosão, o jogando um pouco para trás, com a roupa pegando fogo. Sentiu uma parte de seu rosto aquecer e queimar.
Quando se levantou, pôs a mão no rosto e sentiu bolhas, fora uma dor muito forte. “Parece que queimei o rosto”, pensou, sem agir de forma desesperada, atitude contrária de um ser humano ao ter o rosto queimado, mesmo que de leve. “Por sorte não perdi um dos olhos. Já aquela criatura…”
Ele olhou adiante e percebeu o que fez. “Isso não é bom.” A biblioteca estava em chamas, e no meio do fogo estava a criatura, se debatendo, gritando. A fumaça se espalhava por todo o ambiente.
“Não posso continuar. Vou me queimar de um jeito pior do que esse aqui na minha cara. O que fazer?”
Enquanto pensava, um vulto negro se jogou das chamas em sua direção. O rapaz previu o movimento a tempo e se jogou para o lado, porém seu corpo não era rápido o suficiente, mesmo que tivesse previsto.
A criatura lhe jogou contra a parede, fazendo suas costas estralarem. Com toda a certeza quebrara alguns ossos, pois foi muito difícil levantar sem sentir aquela dor perfurante no peito. Cuspiu sangue e respirava com dificuldade.
“Uma costela perfurou meu pulmão? Não sei dizer. Está difícil de respirar.” Diego nunca estudou muito bem a anatomia do corpo, então não podia se autoexaminar tão bem assim. As poucas coisas que se lembrava, e agora ele se lembrava, eram das aulas que tinha com o tio.
“Uma pena ele não ter me ensinado a fazer primeiros socorros”, comentou para si mesmo. Mais uma vez a criatura se jogou em sua direção, dessa vez o lançando para cima. O rapaz só podia aceitar, já que não tinha tanta velocidade quanto aquele nocivo.
Diego bateu no teto com força e depois caiu no chão igual um boneco. Cuspiu mais um bocado de sangue e ficou ali deitado, olhando para o teto escurecer. “Isso não é bom. Minha pressão está abaixando.” Soube identificar os sintomas: tontura, boca seca, dor de cabeça, o teto preto.
Talvez fosse de fato a pressão baixa, ou apenas os sintomas das inúmeras pancadas que recebeu. Entretanto, ele não sentia incomodado com a dor. Desde que seus olhos adotaram um tom avermelhado, o rapaz se lembrava de coisas que jamais se lembraria e ficou calmo em uma situação que jamais ficaria.
Embora não se incomodasse com a dor, isso não impedia o seu corpo de parar de responder. O sangramento em sua cabeça estava sério. As garras perfuraram mais fundo do que ele imaginou. Seus pulmões estavam cheios de sangue. E o veneno que seu tio lhe deu… Ao menos isso ele não sentiu mais.
Continuou olhando para cima, ouvindo a criatura gritar e rugir. Sim, aquela criatura deveria ser supostamente um experimento de seu tio. Talvez fosse o próprio Elizel lhe ensinando uma lição. Isso não seria possível, já o homem apareceu com os dois braços. Talvez fosse apenas na transformação?
Diego pensava e pensava muito rápido. Imaginava diversas possibilidades em sua mente. Procurava uma resposta para todas as suas perguntas. Talvez nunca fossem respondidas, mas precisava. Até ali sabia que tinha um parasita dentro de si. Isso talvez explicasse a dor intensa na barriga. Mas e depois disso? E o resto?
Pelo visto jamais saberia, pois a fera já estava se preparando para o golpe final. Um golpe final que nunca veio.
O rapaz dos olhos vermelhos inclinou a cabeça para o lado, pois ouviu algo vindo da porta da biblioteca. Assim que a porta abriu, uma fumaça negra começou a preencher o local gradualmente. Da fumaça, um homem enegrecido pelas vestes, olhos verdes e duas pistolas na cintura adentrou.
Ele estava irritado. Não tinha a testa franzida, ou fazia uma careta. Sua feição era séria, porém os seus olhos, seus olhos brilhavam com um tom verde tão forte que pareciam esmeraldas. E aqueles olhos estavam zangados.
O homem puxou o seu cigarro da boca e deu uma baforada. A fumaça era tão negra que a luz não penetrava. Ela se espalhou como uma névoa, tomando de conta dos livros, estantes e objetos de madeira pegando fogo. Lentamente cobriu tanto o nocivo, quanto Diego.
O homem se aproximou, fazendo barulho com o caminhar de seus passos. Quando a fumaça lhe cobriu, o rapaz não viu mais nada. Apenas ouviu um uivo choroso, e respingo de um líquido ferroso em seu rosto. “Ah”, pensou ele ao senti o cheiro. “É sangue. E tem um cheiro… Cheiro de nocivo.”
Por fim, escuridão.