Volume 1 – Arco 1
Capítulo 4: O Craveiro
Dentro do carro, Diego observava a aproximação de seu objetivo cada vez mais ansioso. Ainda grudado no vidro, via com atenção as casinhas, os lagos, os prédios e as inúmeras estradas e árvores com o rosto ainda grudado no vidro.
Não sabia exatamente o porquê de tanta excitação; a alguns minutos atrás considerava qualquer lugar que seu tio o enviasse um péssimo lugar. No entanto, havia algo no Craveiro que chamava sua atenção como nunca.
Diego perdeu o deslumbre privilegiado da vista de cima quando a estrada que o carro seguia começou a descer. Então revelou-se uma nova característica do local, da qual o rapaz só notou ao se aproximar. Era uma enorme grande negra de uns três metros protegendo todo aquele lugar. Para dar acesso ao local, teriam de entrar por um portão negro e gradeado.
— Bem, daqui não podemos passar, Jovem — disse Morfeus, enquanto parava o carro. — Tem como o Jovem se apresentar aos porteiros enquanto pego as malas, por favor?
Diego obedeceu sem ter muita consciência do que fazia, um tanto ansioso para ver de perto as cores do lugar. Puxando sua mochila, bateu a porta do carro ao sair e foi em direção ao portão.
Notou que acima havia o nome do local emoldurado pelas barras de ferro dizendo: C.R.A.V.O, CASA RESPONSÁVEL ÀS VÍTIMAS OPRIMIDAS. Não era um nome muito interessante, ele pensou. Dava a impressão de ser um lugar que cuidava de pessoas doentes e loucas.
Também notou que de cada lado do portão havia uma cabine muito parecida com uma telefônica; porém mais robusta, capaz de possuir ao menos três pessoas dentro — as duas estavam abertas, embora não fosse possível ver ninguém por conta da sombra. O rapaz da cicatriz optou por ir em direção a da direita, supondo que ali houvesse um porteiro.
Antes que pudesse chegar muito perto, quatro olhos o encararam da escuridão. Dois estavam muito altos e dois na altura de seu joelho. Antes de se dar conta do que fazia, um enorme cachorro pulou em sua direção. O rapaz caiu de bunda com o peso do animal.
— Duque! Duque, eu já não mandei se comportar? — vociferou uma voz que lembrava a de uma animal muito grande. — Por Deus! Vamos, pare de ser mal-educado, deixe o rapaz respirar.
Um grande cachorro de cor branca com pintas pretas foi tirado de cima do rapaz. Diego estava com o rosto todo lambido.
— Tudo bem, rapaz? — disse a voz, estendendo sua mão para o garoto caído.
Diego aceitou o gesto, levando um outro choque ao ver o tamanho da mão do homem em comparação com a sua. Assim que se levantou, viu um gigante, ou ao menos assim pensou que fosse.
De fato era um homem muito grande; perdendo por muito pouco com o tamanho do bárbaro em seu sonho. Seus cabelos eram ralos e encaracolados, não tinha um pingo de pescoço e possuía uma barriga enorme e quebrada. Usava vestes formais, embora seu terno estivesse com manchas de comida e com alguns botões faltando.
— Em que posso ajudar? — repetiu o homem.
O rapaz da cicatriz diria que gostaria de passar, porém o pensamento lhe fugiu antes de ser capaz de projetar. Na verdade, analisava o homem de baixo para cima. O que mais estranhava no homem era sua voz grave e ao mesmo tempo gentil. Era como um urso de pelúcia gigante.
— S-senhor Bjorn! — disse Morfeus, atrás de Diego. Tremia muito com o peso das diversas malas que carregava.
— Por Deus! — Bjorn arregalou os olhos. — É você, pequeno Ovídio?
O grande homem se aproximou e deu um abraço em Morfeus que fez Diego sentir pena do mordomo. Seu bigode não ficou tão impecável depois do gesto acalorado. Quando o colocou no chão, deu uma palmadinha em suas costas que fez o joelho do mordomo dobrarem um pouco.
— E quais as novidades, pequeno? — Ele subitamente levou a grande mão à cabeça. — Me desculpe. Agora o pequeno Ovídio é o senhor Nosferatus. Ouvi falar muito bem de você nesses últimos anos, Ovídio… Digo, senhor Nosferatus. Me perdoe.
— N-não há necessidade disso — disse Morfeus, colocando todas as malas no chão em um claro gesto de rendição. — O senhor pode me chamar do que quiser.
— Bom… Nem sei o que dizer. — O gigante ficou com a voz embargada e começou a limpar os olhos. — Conheço você desde que era uma criancinha. Fiquei tão feliz quando soube que estava trabalhando para o pequeno Monte. Há! Perdão… É Dragão Negro agora!
Diego deu uma risada ao ouvir o tio ser chamado de pequeno Monte. Bjorn pegou as malas no chão como se fossem sacolas de pão, se virou para o rapaz e o encarou com um grande sorriso simpático.
— E quem é este, jovem rapaz? O Duque gostou muito dele.
O cachorro balançava o rabo e latia alegre para o rapaz. Duque tinha olhos castanhos muito claros, iguais aos de Diego, e uma pinta negra ao redor de um dos olhos. Aos poucos o rapaz sentia mais vontade de acariciar sua cabeça.
— A-ah! Senhor Bjorn, esse é o motivo de eu vir aqui hoje. — Morfeus chegou até o lado do rapaz e fez um gesto exagerado para apresentá-lo. — Senhor Bjorn, esse é o sobrinho do Senhor Elizel, Diego Murdock. Jovem, este é o senhor Max Bjorn.
Bjorn arregalou seus olhos ao examinar a cicatriz no queixo do rapaz e um sorriso entusiástico brotou de sua feição rotunda.
— Então é um Murdock? Por Deus! — O homem deu um abraço no garoto que facilmente poderia ter quebrado suas costelas. — Que prazer conhecê-lo. Seu tio falou de você para nós…
— Que barulheira é essa? — disse uma voz velha na outra cabine.
Quando o dono da voz colocou o corpo para fora, Diego achou que fosse uma espécie de múmia.
— Ernesto, esse é um Murdock! O sobrinho do Dragão Negro, lembra?
— Sobrinho do Elizel, é? — Sem sair da porta de sua cabine, lançou um olhar analítico ao rapaz. — Rhum! Na idade dele o Elizel já tinha mais músculos. Tem certeza que é ele?
— Ora! — Bjorn bateu as malas que segurava nas coxas. — Vamos, é claro que sim. Olhe a cicatriz no queixo.
Diego não achava que daquela distância Ernesto fosse capaz de ver um detalhe tão pequeno, mas a múmia ambulante respondeu:
— Rhum! Que seja. Mande ele não mexer com Basil! — E voltou para dentro da cabine.
— E quem mexeria com sua cobra, seu velho gagá — murmurou Bjorn.
Diego sentiu um arrepio na espinha. De todos os animais no mundo, um dos poucos que lhe causava medo eram cobras. Quanto maiores mais aterrorizantes, achava.
— Aqui tem cobra? — perguntou.
— Sim — suspirou o homem. — É amigo do Ernesto, que nem o Duque é pra mim… Suponho.
Duque chegou perto do garoto e pôs as patas dianteiras sobre sua cintura. O rapaz tomou coragem para acaricia-lo.
— Mas o Duque é um cachorro.
— Bom… — Ele se abaixou para falar apenas para o garoto. — Se quer saber, eu também não vou com a cara daquela cobra. Ela é muito peçonhenta. Mas não diga isso para o Ernesto.
Diego deu um enorme sorriso ao ver o riso bobo de Max.
— S-senhor Bjorn — começou Morfeus. — Não quero apreçar as apresentações… Mas é que já estamos um pouco atrasados, eu acho. Então…
— Ah! Sim! Perdão. Espere um momento. — Ele foi rapidamente para a cabine e voltou sem as malas, apenas com uma prancheta na mão. — Nome… idade... o segredo é opcional… Ah, sim! Qual é a sua cor, pequeno Diego?
Diego franziu o cenho. Olhou para a pele e constatou que era branco, embora suspeitasse que não era disso que a pergunta tratava.
— A-ah! Quase ia me esquecendo disso — gaguejou Morfeus, tirando de dentro da mochila de Diego um colar que segurava um pingente semelhante a um pequeno cristal fosco e pondo no pescoço do garoto. — Ficou ótimo, Jovem Diego. Tem algum problema ele entrar sem ter usado a Selar ainda?
— Ah! Ele ainda não usou? Claro que não tem problema. Inclusive é até bom que só faça isso na presença de um professor. Estão preferindo assim ultimamente por conta da… Bom, não que eu duvide de sua índole, pequeno Monte, mas regras são regras.
Diego ficou encarando os dois, agarrado a cada palavra que diziam. Anotou mentalmente duas palavras distintas: Hagar e Selar. Esperava de certa forma algum tipo de explicação, porém ela não veio.
— Excelente — disse Morfeus, ajeitando a roupa e penteando a calvície. — Bom, então já vou indo, Jovem Diego. Por favor, se comporte. Não arrume nenhuma confusão em seu primeiro dia.
O mordomo apertou a mão do rapaz e depois voltou para o carro, deixando Diego sozinho com aquelas figuras tão exóticas e um cachorro que toda hora tentava lhe lamber. O rapaz deu tchau para ele enquanto via o ponto preto sumir estrada a fora.
Depois de brincar um pouco mais com o Duque, Bjorn o advertiu:
— Venha logo, Duque. Deixe o rapaz quieto. Que comportamento feio. Acho melhor se apressar, pequeno, ou se não vai perder seu horário e acredite, não vai querer isso. — Dentro de sua cabine, o homem apertou um botão e portão se abriu. — Não se preocupe com suas malas, pode deixar que deixo elas para você.
Assim que entrou, deu uma última olhada para trás e, com um “Boa sorte, no seu primeiro dia, pequeno!” de Bjorn e um resmungo de Ernesto, adentrou o local.
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Sentia uma leve brisa em seu pescoço enquanto andava pela única estradinha aparente, admirando a paisagem além da cerca viva e os arbustos que emolduravam o seu caminho; a maior parte do terreno era um grande jardim bem cuidado, constatou.
Fechou a cara para algumas flores e árvores, pois suas cores eram inexplicavelmente muito fortes e vivas, de modo que irritava sua visão. Em certo momento ficou com medo de ter se perdido já que notou, um tanto tarde, que outras estradinhas apareceram ramificando-se da principal.
Achou que poderia se perder, tão complexos ficaram os caminhos para ele. Quando começou a cruzar uma pequena ponte, dando passagem sobre um pequeno lago de cor azul muito viva, definitivamente achou que havia se perdido.
Entretanto, assim que chegou na metade do trajeto, ouviu risadas e falas estridentes vindas de algum canto mais a frente.
"Alguém pra me ajudar”, pensou.
Ele apertou o passo e ao se aproximar percebeu que as vozes vinham de uma das estradas ramificadas da original.
A sebe era particularmente alta nesse caminho, impossibilitando ver os donos das vozes que agora se faziam altas e estridentes. Assim que entrou pelo caminho e virou a última curva, se deparou com três crianças cercando e rindo de uma quarta caída no chão, todas aparentemente da sua idade.
Assim que Diego apareceu, um garoto muito gordo, alto e com duas pequenas coisas estranhas no topo da cabeça virou. O rapaz da cicatriz apertou os olhos para observar melhor e quando notou o que era deu dois passos para trás. Fora os ouvidos normais, o grandalhão tinha um par de orelhas felpudas e brancas na cabeça.
— Hum… Ó Mini. — disse com voz grave e abobalhada — Tem um garoto aqu, ó.
Uma menina se virou, zangada. Com ela, um rapaz com um par de orelhas pontudas na cabeça o encarou; era o terceiro membro do grupo. A estranheza dez Diego dar mais um passo para trás.
— O que você quer? — disse a menina, com voz esganiçada.
Mini não era uma grande ameaça. Era uma garota baixinha, embora atrevida. Tinha um semblante raivoso e usava um conjunto de roupas pretas: botas, meias cobrindo o tornozelo, saia, camiseta, cabelo curto e batom.
Na verdade, o único item em seu corpo diferente de preto era uma pedrinha fosca de cor arroxeada presa em sua gargantilha, da qual Diego concluiu que fosse a mesma que a sua, dada por Morfeus; embora a sua fosse fosca e sem nenhuma cor.
— É surdo? — Ela se aproximou dele com alguns passos, a mão na cintura e o rosto projetado para frente, ato que a deixava ainda mais baixa.
Diego a ignorou e olhou para o quarto garoto, este que se mantinha-se no chão e que certamente estava sofrendo com aqueles outros três. Os dois se olharam e foi impossível não reparar nos olhos muito azuis por detrás dos óculos fundo de garrafa e no cabelo loiro como o sol.
— Não me responde por quê, moleque?
— Ei, ei! Calma, Mini. Isso é jeito de tratar um novato?! — disse o terceiro garoto, do qual seus únicos traços marcantes eram as orelhas na cabeça, marrom da mesma cor de seus cabelos, e uma expressão debochada no rosto que Diego sentia uma nome vontade de arrancar a força. — Por que não nos apresentamos, ahm? Pode me chamar de Léo, essa aqui é a Mini e aquele grandão é o Bruno…
— Solta ele. — Diego fechou os punhos enquanto o encarava de expressão zangada.
— Mas não estou segurando ninguém — respondeu, alisando o queixo e olhando para cima. — Ah! Você deve estar falando do meu amigo Tiago ali. Entendi. Bom, como posso dizer?! Ele meio que está ocupado agora, então...
Diego se aproximou do rapaz a ponto de ficar a centímetros de seu rosto.
— Solta. Ele.
Léo tapou o nariz e com a outra mão fingiu espantar um mosquito.
— Ei! Tu fede a cachorro. O que foi? Andou se esfregando no lixo, por acaso?
— Hyah! Tem jeito de vira-lata, mesmo — riu Mini, com sua voz aguda. Dos três, o único que não pareceu ter visto a menor graça foi Bruno, mas talvez fosse por ser muito bobão para entender.
— Solta ele — repetiu. Estava começando a perder a paciência, que por sinal estava maior que de costume.
— Eeeeh… Não? — Ele olhou para o garoto loiro caído no chão e deu um sorriso. Mini ria sem parar. — Agora dá o fora, vira-lata. Ou quer voltar para o colo da mamãe chorando?
Diego apertou os punhos com força. Estava a poucos centímetros de conseguir acertar um soco no queixo pontudo daquele garoto debochado. Mas uma coceira dentro de sua mente lhe dizia ser má ideia.
Aquela intuição era sua salvação na maior parte das vezes, como foi o caso dos três garotos no beco. Quando era com seu tio, essa sensação ficava entre pular de uma ponte ou sair correndo. E agora, para sua própria surpresa, ela dizia para ele não se colocar em encrenca com aqueles três.
O rapaz irritado respirou fundo enquanto lançava um último olhar ameaçador aos garotos. Segurou sua mochila, deu meia-volta e correu em direção a estrada da qual havia chegado ali.
Todos do grupo ficaram um pouco surpresos, especialmente Tiago, que teve as expectativas decepcionadas por ter alimentado esperança. Mas de fato, não havia dúvida quando viram ele desaparecer em uma curva acentuada..
Diego havia amarelado.