Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: A Besta

Estava no chão. Sua cabeça doía com um aperto e ele se contorcia com uma ardência na região de seu abdômen. Era parecida com a que acordou pela manhã, embora mais fraca. 

Diego!


Era uma voz chorosa e aguda. O rapaz conhecia ela de algum lugar. A voz continuou a chamar seu nome e ele sentiu alguém tentar tirar algo de suas mãos. Ele não largou. Abriu os olhos e viu um céu nebuloso e uma criatura de pelugem negra, garras enormes o segurando e chifres ondulados. 

Diego!

O rapaz se levantou com um susto, apontando o revólver em direção ao monstro. Assim que o fez, a imagem do monstro tremeu e desapareceu. Em seu lugar havia  Ângela, se levantando do chão, as mãos em sinal de rendição, o olhar pasmo. A mulher abria a boca, embora o rapaz não ouvisse nada por conta do zumbido.

— Ângela… — ele disse, abaixando um pouco a arma. Mal conseguia acreditar que apontara aqui para sua amiga. — Eu não...

Antes de formular uma desculpa, uma figura negra arrancou a arma de sua mão e o empurrou pelo pescoço até a grande casa. Ao entrar, o mordomo tentou ajudar, porém foi afastado pelo olhar de Elizel. Diego foi sentado ao lado de uma mesa oval na sala de jantar. 

Seu raciocínio começou a voltar quando se lembrou da horrível mesa. Tinha o formato exato de um ovo. Quem a comprou foi sua tia Lidja, da qual ele nunca viu comprar nada bonito em seus dois anos de convivência.

— Já chega! Os dois! — sibilou Elizel para os empregados. — Prepare uma poção de ervas, Gómez, e acrescente bafo de dragão.

Ângela ficou pasma com o pedido, tentou falar diversas vezes, porém nada saia. O mordomo não escondia seu nervosismo, se mexia sem parar dos pês a cabeça como se sentisse uma coceira em todo o corpo.

— Não ouviram o que eu disse? — Nessa deixa, Morfeus empurrou Ângela para a cozinha.

Diego pareceu ter voltado ao mundo real quando Elizel se sentou à sua frente. O homem de sobretudo colocou o chapéu sobre a mesa e o revólver que ele próprio usara mais cedo. 

O rapaz fechou a cara ao ver a arma. Se lembrou da besteira que fizera. Disparou contra o próprio tio, mas o tiro foi tão poderoso que o cano do revólver bateu em sua testa e ele caiu de costas. Isso explicava a sua falta de memória, embora estranhasse a alucinação.

— Olhe para mim — disse Elizel. Diego obedeceu com os punhos fechados. — O que fez hoje foi perigoso. Seu erro poderia ter custado a vida de alguém! E se tivesse errado o tiro? E se alguém estivesse atrás ou do lado? 

O rapaz ainda estava atônito e suas ideias não ficaram no lugar, então será se entendeu errado? Como assim: “Se tivesse errado o tiro”? Ele errou o tiro, afinal, para sua infelicidade, o tio ainda estava ali.

— Me responda! — disse Elizel, batendo os nós dos dedos sobre a mesa, como se quisesse acordar o jovem. — O que teria acontecido se tivesse acertado outra pessoa? 

— Mas não acertei! — gritou o rapaz. — Eu queria acertar o senhor. Mas devia ter atirado em mim e para acabar logo com isso. Ao menos não estaria aqui!

Elizel ficou em silêncio, passando a linguá pelos dentes com a boca fechada. Sem o chapéu sombreando seu rosto, ele parecia menos ameaçador. Fintava Diego com seus olhos muito verdes, dando a impressão de estar arquitetando um plano maquiavélico.

— Me responda uma coisa, Murdock. — Ele adotou uma postura ereta. — O que fazemos com um objeto defeituoso?

Diego fechou a cara. Queria muito mandar o tio enfiar aquela arma em um lugar inconveniente. Aquela pergunta falava dele, claramente.

— Não sei! O quê? — disse em tom de desafio.

— Descartamos. — Elizel puxou um cigarro do bolso e acendeu. — A outra opção é consertar o que está quebrado. E faz dois anos que venho tentando consertar suas imperfeições. Mas você é incapaz até de seguir o básico...

— Eu não quero isso! — explodiu o rapaz, batendo na mesa. — Pode falar o que quiser, que esses treinos são básicos e que sou um inútil! Mas não quero ter que tomar veneno! Eu fico fraco o dia inteiro e ainda sonho com A Besta!

Ao contrário de receber um rosto feio e uma ameaça, Elizel o olhou assustado por menos de um segundo. No outro, já estava com a expressão seria, embora livida.

— Quem disse que você sonha com A Besta? Foi algum dos empregados?

Seus olhos verdes como vaga-lumes a noite o miravam desconfiados enquanto soltava uma baforada cinza pela boca.

Diego estranhou. Depois cerrou os olhos e respondeu:  — Ouvi hoje de manhã a tia Lidja dizer isso, que eu sonho com A Besta. 

— Você não sonha com A Besta, Murdock — retrucou o homem. — Esqueça isso.

Diego continuou a encara-lo. Achou a resposta insuficiente. Enquanto ouvia o tilintar de tigelas na cozinha, pensava se deveria ou não insistir na pergunta. 

— O que é a besta? — Não aguentou a curiosidade.

O homem desviou o olhar para a porta e tragou mais uma vez seu cigarro.

— O senhor diz que eu tenho de aprender as coisas, mas quando tenho interesse não quer me contar!

O tio voltou a encará-lo. Ele novamente passou a língua por entre os dentes, a boca ainda fechada. O tilintar na cozinha começou a ficar mais alto.

— É uma história — explicou.

— Como é a história? — insistiu o rapaz.

— É apenas uma lenda, Murdock. — Elizel soltou outra baforada. — Fala de um monstro sem forma. Mais escuro que uma ônix, poderoso como um dragão e mais inteligente que um sábio. Na lenda o monstro causa uma grande guerra e mata muitas pessoas.

— E depois? — Diego ficou frustrado com a falta de emoção do tio em contar a história. — O que acontece com ele? 

— Some — disse Elizel, anti-climático. — Se retira, é aprisionado ou morre. Existem muitas versões. Mas como disse, é apenas uma lenda, usada para espantar crianças. O território onde sua tia cresceu acredita nessa lenda.

Diego refletiu por um momento. Pensou sobre o monstro que sonhava e que acabara de ver. Talvez a tia estivesse certa. A descrição batia um pouco, com exceção de não parecer muito mais forte que um dragão. Ou talvez o bárbaro em seu sonho fosse poderoso demais. Pensando melhor, nem parecia tão inteligente assim. 

— Na história — continuou o rapaz, intrigando-se com uma questão — quando a guerra acontece?

— Pronto, senhor Elizel — interrompeu Ângela.

Ela vinha junto de Morfeus trazendo algumas tigelas e pondo sobre a grande e detestável mesa oval. Haviam líquidos de cores distintas ali. Ela pegou um estranho pano e mergulhou o tecido dentro de todas as tigelas. O processo foi rápido. 

Ângela, com o pano branco agora melado de uma cor avermelhada, se aproximou de Diego e pediu para o rapaz estender o braço. O rapaz não desconfiou quando viu a empregada tremer um pouco e pingar suor pela testa. Ele estendeu o braço machucado sobre a mesa e afastou a manga, expondo o corte. 

Assim que ela pousou o pano sobre sua pele, ele tomou um susto quando viu o tecido abraçar seu antebraço como uma pulseira. Diego tentou afrouxar, mas parecia estar grudado a sua pele. Foi aí que sentiu uma enorme ardência em seu braço, como se queimasse com ferro quente.

— Tira isso de mim! — disse ele, jogando seu braço de um lado. — Tira logo! Tá ardendo! 

Elizel se levantou, colocou o revólver no coldre e pôs o chapéu fedora. Acendeu mais um cigarro e disse aos dois: 

— Lembrem-se de não dar água a ele. E quando a Senhora chegar, avisem que sai para resolver um problema.

Uma luz vinda da janela bateu no rosto de Diego. Quando olhou, viu parado na esquina da casa uma viatura da polícia. 

Por um momento o rapaz ficou feliz ao imaginar que alguém por ventura tivesse denunciado as pessoas estranhas daquela casa. No outro, sentiu raiva quando, ao tentar correr até as autoridades pedindo socorro, sentiu todo seu corpo arder e formigar; não podia se mover.

— E você, Murdock — disse Elizel. — Acorde cedo amanhã. Vou lhe levar a um lugar que talvez conserte esse seu problema.

Ele saiu pela porta de entrada e a fechou. Diego não podia ver muita coisa no lugar onde estava e tentar mover o pescoço era uma má ideia. Porém ainda via as luzes.

— Jovem Diego — disse Ângela. — Está doendo muito? É para curar mais rápido. Mas água pode resolver…

— Ângela! — disse Morfeus, perplexo. — Você ouviu as ordens do senhor Elizel…

— Olha só quem fala em seguir ordens! Foi você que levou uma bronca por deixar ele roubar o isqueiro! — Antes que o mordomo pudesse retrucar, ela o interrompeu: — Vá logo pegar uma jarra d'água! 

Nesse meio tempo, Diego reparou que as luzes da polícia se apagaram e os carros sumiram. Talvez tivessem levado Elizel para a delegacia, mas mesmo assim não entraram em sua casa e achado ele ali, logo na cozinha. Teria pedido socorro se não estivesse naquela situação.

Quando o empregado voltou, pôs um copo de água gelado na frente do rapaz. 

— Beba — disse Ângela. — Vai se sentir melhor. Não precisa se mexer muito, apenas um pouquinho.

— Saia daí — alertou Morfeus, a chamando para próximo da parede. — Deixa ele beber sozinho, ou vai sentir mais dor no braço.

Ela obedeceu e os dois caminharam em direção a porta da cozinha. Diego se irritou. Não queria ficar sozinho ali. Queria extravasar sua raiva, explodir algo, no entanto a dor em suas entranhas ardiam tanto que ele… Diego sentiu uma raiva incontrolável por aqueles dois à sua frente. Nem os reconhecia mais. 

Inclinou o corpo sentindo todo seu corpo arder, segurou o copo de água e lançou com toda sua força em direção aos dois. O copo estilhaçou na parede e os cacos ricocheteiam nos dois. 

O rapaz só voltou a si quando ouviu a explicação de dor da empregada, que recolheu o braço para dentro do corpo.

— Está tudo bem? — disse o mordomo. — Onde foi que se feriu? 

— Não foi nada…

Diego agora sentia uma forte ardência no seu estômago, do mesmo jeito que os venenos do tio faziam. Além disso, sentia remorso pelo momento em que perdeu a cabeça. Tentou desculpar-se, porém a ardência era tão grande que isso lhe complicava até a fala.

— J-já para o quarto! — gritou Morfeus, irritado e surpreso com a própria coragem. Não era de levantar a voz empoeirada. — Já para o quarto ou vou falar para o senhor Elizel! 

Aquilo foi a gota d'água. Diego sentiu o corpo quente, seu coração bombar de raiva. Ele se levantou da mesa, a mão apoiada por baixo e a ergueu.

— Então… — gritou, jogando a mesa com tudo no chão. — FALA!

A mesa oval caiu com todos os itens de porcelana e vidro. Ouviu-se o estilhaçar das coisas e a mesa partir no meio, um de seus pés quebrar. 

Diego lançou um olhar furioso para o mordomo, que estava espremido na parede junto da empregada. O rapaz deu as costas aos dois e saiu correndo para o quarto enquanto batia em tudo no caminho.

Assim que subiu as escadas, viu que seu quarto não tinha mais porta. E, além disso, também não havia mais nenhum móvel. Todos eles foram retirados. Até mesmo sua cama não estava ali. 

Deu um chute na parede que apenas o irritou mais ainda por conta da dor no dedão. Soltou um palavrão e se sentou ali no chão e contemplou o quarto vazio enquanto se acalmava.

Logo se encheu de arrependimento. A dor no braço o fez cair no chão olhando para cima. Se não fosse morrer por aquela queimação, com certeza iria morrer no dia seguinte. O tio iria lhe levar para algum lugar que não sabia nada sobre. Vindo de Elizel não poderia ser coisa boa, pensava.

Então um pensamento engraçado lhe ocorreu. Mais engraçado ainda por pensar em algo assim, que era quase um absurdo. Se de fato fosse morrer, ao menos iria conhecer os pais mais cedo.

Fechou os olhos e esperou por seu fim inevitável, que seria no dia de amanhã.

 

 

Na manhã seguinte, Diego estava no carro, o cabelo penteado, incomodado com o terno de cor preta e puxando para lá e para cá sua gravata de mesma cor, porém com leves detalhes verdes. Ainda estava desnorteado por acordar muito cedo. 

Morfeus resmungava no volante consigo mesmo; era o mordomo quem o levaria. Aquela foi uma das primeiras surpresas no dia do rapaz. Na tarde anterior, o tio disse que seria ele, Elizel, quem o levaria num lugar para consertar suas “imperfeições”.

Não era de grande conforto outra pessoa estar lhe levando para a morte certa; afinal, um lugar onde Elizel o obrigaria a ir não deveria ser menos perigoso que um vulcão prestes a explodir. Mas ao menos não sentiria a pressão da presença do tio, pois caso o fizesse, sua intuição diria para pular do carro em movimento.

Enquanto assistia pela janela a transição da paisagem urbana para uma natural, cheia de árvores e mato, pensava sobre sua atitude no dia anterior para com Ângela. 

Sua empregada sempre fora boa com ele, então sentia um certo remorso por tê-la machucado. Sentia-se abalado por perder a cabeça e mirado o copo justo nos dois empregados. E sentia-se pior ainda ao pensar que nem teve coragem para pedir desculpas a ela.

A última vez que a viu foi pela manhã, quando ia sendo empurrado para dentro do carro por um Morfeus muito assustado e trêmulo; mais do que o normal — sem parar de lembrar o quão atrasados estavam. Antes de embarcar, Ângela desejou boa sorte ao rapaz, colocou às duas mãos em seu rosto e lhe deu um beijo no topo da cabeça. 

Diego ficou vermelho só de lembrar da cena. Depois sentiu-se decepcionado por não ter dito mais do que um “T-tchau” para ela. Realmente, se hoje fosse seu último dia vivo, então ao menos deveria ter se desculpado. 

— Morfeus, você pensa que a Ângela está zangada comigo pelo que fiz ontem?

O mordomo demorou alguns segundos para sair de seus murmúrios. Diego teve de repetir a pergunta.

— B-bom, Jovem Diego — começou ele, olhando frenético do retrovisor para a estrada. — Garanto que ela não guarda nenhum rancor. Porém, ela ficou bem triste com a atitude.

Morfeus era seu professor de ética, e, embora fosse muito tedioso, sabia que o mordomo era perfeito para lhe aconselhar.

— Jovem… Veja… Meu pai costumava dizer uma cosia. Bem… Vejamos. Sim: Pedir desculpas quando ofendemos alguém é o passo mais importante, principalmente quando gostamos dessa pessoa. É isso.

— E se ela não aceitar? — perguntou o rapaz, pensando que seria melhor se Morfeus quem pedisse desculpas por ele.

— É… Essa era a parte mais curiosa. — Morfeus se balançou no volante. — Meu pai dizia: Se você pedir desculpas e a pessoa não aceitar, problema dela. Eu sei, ele não era muito elegante com as palavras.

Diego teve de abafar a risada ao ver que o mordomo se sentia incomodado com as palavras do pai.

— Mas… Traduzindo isso, quer dizer que nossa parte está feita — continuou. — Pedir desculpas e se arrepender de verdade é mudança. A pessoa entendeu o erro e não vai mais tentar cometer, entende? É claro que não dá para obrigar ninguém a aceitar a desculpa, já que é impossível apagar o passado. Mas uma mudança de atitude pode mudar o futuro.

— Não sei se entendi — disse Diego. A lógica não fazia sentido em sua cabeça e ele via muitos erros nela. Antes que o mordomo tentasse explicar, porém, o rapaz interrompeu. — Não, me ouça. É que eu não pedi desculpas para ela quando tive tempo e não sei se vou um dia vou voltar para fazer isso. Então queria que você pedisse no meu lugar.

— Quem disse que não vai voltar, Jovem Diego? — perguntou Morfeus, lhe encarando pelo retrovisor. — O Jovem só vai passar um tempo pelo…

— Mas e seu eu morrer? 

Quase que Morfeus saia da pista. Agora seu rosto parecia a de um morto-vivo muito assustado.

— M-morrer? Quem disse que o Jovem vai m-morrer? Não tem como isso acontecer com os diretores, professores e seguranças na área. Não, não. Impossível, simplesmente impossível.

Enquanto Morfeus dizia as inúmeras seguranças e o quanto era impossível do rapaz morrer, Diego viu pela janela do carro um grande borrão de cores mais ao longe que se contrastava com todo o ambiente em volta.

Como estavam em uma estrada mais elevada, viu. Era uma gigantesca área cercada por pequenos montes e morros. Em suas limitações — Diego esfregou os olhos para ver direito — haviam algumas casinhas nas bordas e prédios de diferentes tamanhos e cores mais ao centro. E no quesito cores, tudo parecia vivo e brilhante.

— Aonde eu vou... tem professores? — perguntou Diego com o rosto grudado no vidro.

— Sim, muitos — respondeu o mordomo com simplicidade. — P-por favor, não esqueça a mochila. 

Diego olhou para o mordomo e viu que o mesmo sorria enquanto o olhava pelo retrovisor.

— Estamos chegando ao Craveiro.



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