Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Puxe O Gatilho

Cercado por garotos suspeitos, num beco cheio de canos que escorriam líquidos gosmentos pelo chão, quem visse de fora diria que Diego estava encurralado — prestes a ser roubado. Não saberiam, porém, que aquele era o menor de seus problemas. Até porque, em sua mente, era ele quem os tinha encurralado.

Mas certamente aquele dia não foi um de seus melhores. Logo pela manhã descobriu, por meio de uma discussão a seu respeito, que era considerado praticamente um lixo ambulante. Depois entrou em desacordo com seus únicos colegas, resultando num novo corte em seu braço. 

Por mais que não se importasse com a dor no braço, afinal seu tio já fizera danos piores, se irritou com toda a situação até ali. Ser traído daquela forma era uma tremenda injustiça em sua mente. 

Sentia uma coceira na nuca, uma espécie de arrepio que lhe dizia para atacar, para bater e amassar aqueles três. Um instinto ou intuição, indicando e incentivando que os despedaçasse.

Com uma expressão irritada, o rapaz exclamou seu grito de guerra — que não passava de alguns palavrões — em direção a Rúbio, o rapaz espinhento que ainda segurava o estilete.

— Será se uma aposentada não pode ter paz?! — gritou uma voz rouca e falha. Era uma velhinha enrugada e de bobes na cabeça, aparecendo por uma das janelas ali no beco. Todos a olharam, menos Diego. — Ah! São vocês três! Eu disse que da próxima vez que os visse iria chamar a polícia e é exatamente isso que…! Ei!

Diego investiu em Rúbio com um soco certeiro na boca de seu estômago e ele se contorceu enquanto recuava. Cleiton, um garoto orelhudo e de dentes grandes, derrubou Diego e os dois começaram a se atracar no chão.

A senhora do alto começou a gritar para que parassem, dizendo que iria chamar a polícia, mas soltou uma exclamação de dor quando viu Diego empurrar a cabeça de Cleiton contra o chão — mais de uma vez. Rúbio, na esperança de ajudar o colega, chegou por trás e tentou apunhalar Diego com o estilete, porém...

— Atrás, garoto! — alertou a senhora.

Diego desviou por pouco, então se virou e acertou um chute no queixo do oponente, que cambaleou e caiu de costas no chão, atônito, largando assim o estilete. O rapaz com a cicatriz flertou com o objeto caído por alguns segundos e engatinhou em sua direção. 

— Não, garoto! — disse a senhora com voz esganiçada. Na mesma hora, Diego foi interceptado por uma chave de braços de Cleiton, que já havia se levantado. — Francamente! Você deu tempo pra ele!

Diego diria a velha onde ela poderia enfiar o seu tempo se não estivesse ocupado. Se esperneou e se debateu para poder respirar, mas nem assim sua visão deixou de escurecer. Desesperado, apertou a virilha do adversário, que gemeu de dor, e assim ele se livrou do aperto.

Os dois se atracaram no chão mais uma vez. Então Diego uivou de dor quando seu adversário mordeu sua mão. O preço que Cleiton pagou por aquela covardia foi um soco no olho. Irritado, o rapaz da cicatriz mordeu sua orelha.

Cleiton se debateu como um rato, porém não gritou, pois Diego pressionava seu pescoço contra o chão. Rubio, ainda um pouco tonto, ao ver a situação tentou ajudar de todas as formas que podia, embora só atrapalhasse a vida de seu próprio colega.

Nada desgrudou os dentes de Diego, até que ele sentiu o gosto de sangue na boca e tomou consciência do que fazia. Largou o oponente e viu que quase arrancou sua orelha. Diego não deixou se abater pelo choro patético de seu adversário. Deu um último empurrão na cabeça de Cleiton que bateu com o cocuruto no chão e desmaiou.

— Seu desgraçado! — disse Rúbio, que o levantou pelas vestes com uma mão e com a outra preparava uma nova estocada com o estilete. 

Diego reagiu e acertou a virilha de Rúbio, que recuou, dando tempo para o rapaz empurrar o peito do adversário com toda sua força. Rúbio fez uma careta de dor quando bateu as costas na parede do beco. 

O enraivecido chutou sua barriga duas vezes. Rúbio tentou segurar a perna do rapaz, porém Diego foi mais rápido e se livrou. Essa tentativa só o enfureceu ainda mais. 

Com o corpo muito quente e uma feição ameaçadora, Diego socou Rúbio sem parar. O espinhento se protegeu e se agachou o máximo que podia enquanto pedia clemência. 

— Para! Para! Por favor! Tá bom! — Ele jogou o estilete para longe, como forma de rendição. E tirou o isqueiro da jaqueta. — Desculpa, tá bom? Olha aqui, pega, é seu. 

Os golpes pararam. Então Rúbio abriu a guarda e viu um Diego muito zangado o encarando de cima a baixo. Não teve tempo de pensar sobre o erro que cometeu. Um chute afundou sua cabeça na parede, e depois mais outro, e mais outros. O rapaz enfurecido se apoiou na tubulação para desferir mais chutes sem se desequilibrar.

Só parou os ataques quando viu um dente amarelado cair no chão. O rosto de Rúbio estava inchado, repleto de hematomas, coberto por sangue e pus de espinhas. Nem tão satisfeito, porém já cansado, Diego vasculhou o casaco do oponente em busca tanto de seu isqueiro como o bilhete.

— Garoto! — gritou a velha, esganiçada.

— O que é? — falou, irritado.

— Que mal-criado — disse, indignada. Ela apontou para uma das saídas do beco. — Só ia dizer que esqueceu daquela ali.

Era uma visão quase tão patética quanto a de Cleiton chorando. A senhora de idade apontou em direção a esquecida Piti, que se encontrava paralisada, os olhos arregalados e de boca entreaberta; expondo os dentes tortos.

— Aquela ali merece uma boa surra também, pra ver se aprende. No meu tempo...

Mas antes que descobrisse como era no seu tempo, a menina correu. Era desengonçada e lenta, principalmente por correr olhando para trás. Soltou um grito fino quando escorregou em uma poça e caiu de costas no líquido gosmento.

— Patética! No meu tempo, as mulheres tinham mais fibra!

Quando a menina foi se levantar, se assustou com a sombra à sua frente. Emitia um estranho calor, tinha os punhos fechados, o maxilar tensionado, os olhos raivosos muito claros e uma cicatriz no queixo. Naquele momento, Piti percebeu ter irritado a pessoa errada.

Com um chute em seu rosto, ela desmaiou. Mas ele não parou ali. Deu um segundo e um terceiro chute em seu corpo inerte. Na hora de dar o quarto, perdeu o equilíbrio e escorregou na poça. Soltou um palavrão e se levantou depressa. Sem se virar, saiu correndo enquanto ouvia a senhora perguntar:

— Já pensou em servir, garoto?

 

 

— Vá pra casa, garoto! — disse o bilheteiro, ajeitando algumas coisas dentro da cabine.

O cinema parecia fechado; as portas indicavam que ninguém entraria ou sairia dali. O único sinal de vida era a do bilheteiro, que permanecia dentro de sua cabine com seu colete vermelho e seu feio rosto pontudo.

— Não até você deixar eu entrar! — Diego estava na ponta dos pés com o rosto furioso quase colado no vidro. — Eu tenho o ingresso, então me deixa ver o filme…

— O cinema já fechou, garoto. — Ele colocou um relógio no vidro e apontou com o indicador da outra mão, que estava segurando dinheiro. — Está vendo a hora? Já é siesta. O cinema agora só abre mais tarde.

Diego focalizou o relógio e se surpreendeu ao constatar que, segundo o objeto, faltavam apenas 30 minutos para as 14 horas. Sua boca abriu um pouco, pois não fazia ideia de como o tempo tinha passado tão rápido. 

Com o semblante ainda furioso, porém surpreso com a própria ignorância, retrucou:

— Mas ainda faltam trinta minutos! E aqui era o único cinema da cidade aberto pela manhã.

— Aberto pela manhã, não pela tarde. — Ele apontou para o relógio mais uma vez. — E como vai assistir um filme de uma hora em trinta minutos? Além disso, mesmo que eu acreditasse que esse ingresso não foi roubado...

— Eu não roubei! — exclamou o rapaz, porém o homem fingiu não ter ouvido.

— Você nem tem idade pra assistir esse filme, garoto. E pare de baforar o vidro! Vá pra casa tomar um banho, você tá imundo. Andou se jogando na lama, foi? Vaj logo ou então vou chamar teu pai.

Antes que Diego pudesse dar uma resposta mal criada, uma voz fria lhe paralisou com um arrepio.

— Isso não será necessário.

O estranho arrepio em sua nuca lhe confundia, hora dando ordens para fugir, hora dando ordens para ficar quieto. Ele decidiu se virar.

Assim o fez, viu uma figura alta e melancólica por debaixo de um comprido sobretudo negro. O olhar frio sombreado pela aba do chapéu e a névoa de fumaça, que acompanhava a figura por onde quer que fosse, denunciava sua identidade.

Elizel chegou na frente da cabine, encarando seu sobrinho de cima para baixo. Sua feição ficava ainda mais sombria contra a luz do sol, e Diego teve a impressão de que o bilheteiro também sentia a mesma dúvida; fugir ou ficar. 

— O-o senhor é pai desse garoto? — perguntou, seus olhos estavam quase saltando para fora da órbita. 

— Não tive esse desprezar. Mas o que sou dele não é da sua conta — sibilou Elizel, assoprando fumaça propositalmente para dentro da cabine.

O bilheteiro tentou retrucar com firmeza, mas foi atrapalhado pelas próprias tosse.

— Se o senhor não é pai desse garoto… Cof! Cof! — Ele saiu da cabine com o peito estufado. — Então não posso deixar que leve ele! Cof!

Por um momento, Diego se sentiu grato pelo bilheteiro, embora achasse bom que sofresse com o cheiro de fumaça. Elizel, no entanto, não pareceu ter gostado. 

Adiantando-se até o homem, ficou a centímetros de seu rosto, aproveitando para dar um sopro de fumaça bem no meio de seus olhos.

— E-eu… Cof! Cof! Eu vou chamar a polícia… Cof! — disse enquanto tentava manter a postura.

Elizel pôs a mão em cima de uma das armas na cintura e os olhos do bilheteiro arregalaram; Diego achou que dessa vez iriam saltar.

— É… Cof! Bom, o senhor… É… Acho melhor eu… Caham!… Querem alguma coisa para tomar? — Ele se aproximou da porta fechada do cinema. — Não? Bom… Então eu vou i-indo.

O homem empurrou a porta e entrou. Deu de ouvir as trancas do lado de dentro, embora tenha esquecido a porta da cabine aberta.

— Vamos para casa — ordenou Elizel pondo outro cigarro na boca e estendendo uma das mãos a Diego. O rapaz estranhou, pois certamente o tio não iria segurar a mão dele enquanto andavam até seu destino.

Foi então que entendeu, embora não soubesse como havia descoberto. Entregou o isqueiro ao tio, que por sua vez acendeu o cigarro e andou em direção a sua casa. Diego o seguiu. Não era arrastado à força, mas se sentia acorrentado com a presença daquele homem. 

Depois que passaram por duas ruas em silêncio, Diego notou que o tio não tinha vindo no seu carro. Ou seja, andaria todo o percurso até sua casa na cola daquele estranho homem de sobretudo e fumante. 

Chutou algumas pedrinhas no caminho, com vergonha de alguém lhes ver. Porém lembrou do horário e se sentiu grato. A maioria das pessoas já estariam em casa e não o veriam seguir um suspeito criminoso. Sua animação logo esvaiu quando pensou que alguém talvez o ajudasse caso os vissem.

“O homem do cinema tentou ajudar”, pensou. “Mas os outros também iria sair correndo quando vissem as arma dele.” 

O rapaz olhou as costas de Elizel no lugar onde estariam as armas. Pensou que seria melhor levar um tiro e morrer de uma vez do que sofrer algum castigo que envolvia veneno.

No meio de seus devaneios, sem querer perguntou em voz alta:

— Como o senhor soube?

— Você deixa um rastro de destruição por onde passa, Murdock. É óbvio que saberia. — Ele tragou mais uma vez o cigarro. — Além de queimar seu próprio quarto, ainda causou prejuízo a uma loja e fez três crianças desmaiarem. Qual será a próxima catástrofe, Murdock?

Diego ficou surpreso. Como ele sabia da loja do Sr. Walter e daqueles três? Além disso, as três coisas não tinham muita ligação com o cinema, já que sempre manteve em sigilo o seu santuário.

— Eles mereceram — disse Diego, apertando as mãos com força enquanto andava atrás do homem. — Devia ter batido mais, isso sim. Tentaram me enganar quando eu ia fazer a troca...

O homem parou de repente. Diego esbarrou nele e pensou que ali seria seu fim. Acabara de entregar seu plano: A troca do isqueiro dourado pelo ingresso. Só depois viu que estavam esperando o sinal fechar para os carros, embora não houvesse trânsito.

Depois do breve ataque cardíaco, Elizel se virou para o jovem e disse de cima para baixo:

— Coloque uma coisa em sua cabeça, Murdock. — E deu outra baforada. — Qualquer mula tem um coice mais forte que o seu.

Diego franziu a testa. Não gostou nem um pouco de ser comparado a uma mula. E quando o sinal fechou, o rapaz fez questão de andar na frente para não ter de ver as costas do tio. Porém logo desejou que não o tivesse feito, pois Elizel começou a falar:

— Você é incapaz de resolver os problemas sem explodir de raiva. Sempre para de pensar e isso cria um conflito entre suas emoções. O que fez hoje não prejudicou ninguém exceto a ti. Agora terá de dormir em um quarto chamuscado, foi proibido de voltar à loja que gostava e seus colegas nunca mais vão querer lhe ver.

— Que seja! 

— Mas poderia não ser, Murdock, se você fizesse o mínimo de esforço para se controlar! — Jogou fora mais um cigarro e puxou outro. — Pare de ser preguiçoso.

Diego não soube porque sentiu como se uma fina agulha penetrasse seu coração. Seus olhos também ficaram marejados. Com vergonha, olhou para cima, fingindo que tinha sido o sol quem causara aquele efeito.

— Por que se importa tanto comigo se sou um fracasso? — disse com a voz embargada.

— Não tenho nada a ver com seu fracasso. Seus pais que morreram e me jogaram você para cuidar. — Soltou mais uma baforada. — E o que recebo em troca é decepção e ingratidão...

Assim que o tio fez menção de falar de novo, Diego saiu correndo por uma rua lateral. Ouviu Elizel gritar seu nome. Não olhou para trás, embora ouvisse as botas do tio lhe perseguindo. 

Virou de uma rua a outra e desviou de algumas latas de lixo quando passou por alguns becos. Assim que ia atravessar uma rua, olhou para trás e viu que o tio estava distante. Ouviu uma buzina e reparou num carro a cinco passos de distância, pronto para colidir com ele. 

Foi salvo por muito pouco, um empurrão nas costas tão forte que foi jogado no meio-fio da calçada à frente. Amorteceu a queda com o braço esquerdo já machucado.

Assustado, ele olhou para trás a fim de ver o salvador, porém não viu ninguém. O carro parou um pouco mais a frente e de dentro dele saiu uma mulher perguntando se Diego estava bem. Antes de responder, sentiu uma mão fria apertando seu braço e o levantando.

— Olhe para os dois lados quando for atravessar a rua, Murdock! — disse um Elizel lívido de fúria. 

Ele despachou a mulher, que ficou desconfiada e assustada com seu jeito, e puxou o rapaz consigo pelo braço enquanto andavam. 

— Vamos para casa logo, antes que você cause mais um acidente!

— Me solta! — repetia o rapaz. — Me solta! Eu não quero ir! Eu não vou!

Quanto mais se debatia, mais o tio lhe apertava o braço machucado. Andaram a passos rápidos até chegar à esquina da grande casa n°6, na rua Castilha. Ele não voltaria para um lugar daqueles, um lugar onde era inútil. O  rapaz pulou na cintura de Elizel e, depois de ser afastado, mordeu o braço do tio o fazendo exclamar de dor.

— Murdock! Seu...

Mas o que seria, o rapaz jamais veio a saber. Elizel paralisou com a visão à sua frente: Diego segurava com as duas mãos uma de suas armas, apontadas diretamente para o tio. Estava trêmulo e o rosto cheio de lágrimas; a expressão irada.

Assim que Elizel fez menção de falar alguma coisa, Diego puxou o gatilho.



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