Volume 1 – Arco 1
Capítulo 1: O Tutorial
Começou no dia 9 de novembro, na rua Castilha, n°6, onde Diego incendiou seu quarto, espancou três garotos e fez uma mulher inocente sangrar.
Logo pela manhã o rapaz não via nada, pois se debatia desesperado no chão. Não soube quanto tempo ficou assim, se por minutos ou horas até que alguém o pegou e o sentou sobre a cama.
— Diego! — Reconheceria aquele tom preocupado em qualquer canto. — Traz logo isso aqui, Morfeus! Vamos, tome isso...
Era Ângela, sua empregada, agachada ao pé de sua cama. Ele viu o sinal sobre seus lábios, os cabelos fixos num coque e as linhas de expressão ao redor dos olhos; única coisa que denunciava sua idade.
Depois de tomar o líquido gosmento, balançou a cabeça para sinalizar que estava bem, embora não parasse de tremer. Então olhou para o lado e viu seu mordomo ali parado: Morfeus, que lembrava um enorme vampirão e era tão palido que parecia estar morto.
— Ah! — suspirou Morfeus enquanto penteava sua calvície. A única coisa que o diferenciava de um cadáver era o bigode muito bem cuidado. — Que bom que você está bem, Jovem Diego...
Um cheiro de fumaça que entrou no quarto parou o tempo. Os empregados se viraram para a porta e fizeram reverência antes que a figura entrasse. Era um homem alto, envolvido por uma fumaça vinza, de rosto magro e olhos frios, tudo isso sombreado pela aba do chapéu fedora.
— O que está acontecendo aqui? — falou com desprezo. Encaixou o cigarro nos lábios, depois soltou uma baforada de fumaça que gradualmente impregnava o quarto. O sobretudo comprido e as armas no coldre lhe deixava mais sombrio e intimidador. Aquele era o chefe da família: Elizel D. Monte, tio de Diego, e de seus pesadelos aquele certamente era o pior de todos.
Morava com os tios desde que seus pais morreram em uma espécie de missão a dois anos atrás, mas ele estranhamente não lembrava deles. Na verdade, não tinha muitas memórias. As únicas marcas de seu passado eram suas cicatrizes do braço esquerdo e uma bem aparente no rosto: Uma cicatriz vertical no queixo.
Embora não lembrasse de como as conseguira, tinha tudo para suspeitar que fora o próprio tio quem as fizera. Logo no primeiro dia que conheceu o tio, o homem o colocou em um treino de combate, resistência à eletricidade e a veneno. Embora devesse aprender a se defender, tudo que fazia era apanhar.
Nunca esqueceu da vez em que seu tio quebrou seu joelho com um chute. Tiveram que tapar sua boca de tão grande que eram seus gritos de desespero e, não aguentando a dor, desmaiou. Assim que acordou, imaginando que nunca mais andaria, suas pernas estavam melhores do que nunca.
Ângela o curava com receitas caseiras que misturavam plantas e pedaços de animais dos quais Diego nunca vira, e assim, do dia para a noite, todos os seus ossos partidos e inchaços sumiam.
— Senhor! — começou Ângela, adotando finalmente a formalidade. — O Jovem Diego teve mais uma daquelas crises...
— Estou bem! — gritou Diego em tom de desafio. Ninguém olhou para ele, exceto o tio. Quem ousaria dar as costas àquele homem e ter uma das pernas partidas em dois? Diego subiu na cama com intenção de intimidar, embora nem assim fosse maior que Elizel. — Só foi a mesma coisa: Sonhei com o gigante do machado… o monstro… a caverna. Só isso! A mesma coisa...
— Desça da cama! — sibilou Elizel que encarava Diego como um cachorro mal comportado. O rapaz obedeceu sem ter consciência do que fazia, e em seguida o tio ameaçou Morfeus com o olhar. O mordomo olhou para o chão.
— São seus venenos! — disse Diego, irritado, sem saber se o motivo de sua tremedeira era o pesadelo ou não. — E-eles que me fazem ter esses pesadelos idiotas.
Desde o primeiro dia que chegou ali sempre teve o mesmo pesadelo: A briga entre um homem e uma fera. No começo achava que era apenas um pesadelo normal, no entanto todas as vezes que acordava seu corpo ardia, principalmente na região do abdômen, o que era quase a mesma reação dos venenos do tio.
E a única coisa que Ângela não podia ajudar com suas receitas era veneno, pois recebia ordens diretas para não fazê-lo. Então o culpado de seu sofrimento deveria ser o tio. Quem mais seria? Seus pensamentos se esvaíram quando Elizel deu um passo em sua direção e isso o fez prender a respiração.
— N-não fale assim, Jovem Diego — gaguejou Morfeus. — Se trata de um treinamento...
— Treinamento? — Diego achou bom que Morfeus se manifestasse já que não teria problema em ser grosseiro com ele. — Treinamento para escravo? Ele está me torturando, isso sim!
Quando Elizel deu mais um passo adiante, o rapaz deu dois para trás com o susto. Sustentar o olhar do tio não era fácil para ele, principalmente quando não parava de pensar na possibilidade de ter sua perna quebrada outra vez.
— Você não sabe porque lhe treino? — disse Elizel se aproximando mais ainda. — Dei aulas todas as semana que esteve aqui, expliquei sobre nosso mundo, nossa sociedade… mas mesmo assim é incapaz de aprender. Na sua opinião, Murdock, o que acha que tem de errado com você?
Quando Diego conseguiu parar de lamber os lábios secos, entendeu que o tio falava do tutorial. Além dos treinos físicos, uma vez na semana o rapaz tinha que acordar cedinho para receber aulas particulares no escritório do tio e lá ele era ensinado o básico como: língua estrangeira, matemática e história.
O problema, e Diego não demorou a notar, era que as línguas que estudava tinham símbolos que ele nunca vira na vida, a matemática estava mais para arquitetura de objetos com ângulos impossíveis e as histórias só falavam de guerras com finais tão fantásticos que pensava se tratar de algum conto de fadas.
E como acordava muito cedo sempre dormia nas aulas. Não prestava atenção em nada e sua mente vagava. A pouca atenção que dava lhe rendia a explicação de um mundo onde pessoas com habilidades inacreditáveis lutavam contra monstros incríveis.
Nunca levou aquelas besteiras a sério, achava que era um treino para acordar cedo e manter a atenção; do qual fracassava tanto quanto os outros. Mas agora, Elizel estava insinuando que não eram apenas bobagens, mas sim uma tremenda explicação. Diego se espremeu a parede tentando não inalar a fumaça que ardia nos pulmões.
— Vocês dois, saiam daqui — disse uma outra voz, altiva e afeminada, vinda de fora do quarto. — Vão fazer as compras do dia. E tratem de demorar bastante! — Os empregados saíram apressados. Elizel se virou.
Era uma mulher com a pele tão clara quanto papel. O vestido comprido também era branco, mas em contraste com sua pele dava a impressão de estar encardido. Quem visse Lidja D. Monte, esposa de Elizel, a confundiria com um fantasma.
— Elizel — disse, que encarava o marido como se este fosse uma coisa nojenta grudado na tampa do vaso. O homem retribuía a afronta na mesma medida. — Quero conversar com você. Agora!
Ela deslizou corredor a fora e sumiu de vista e Elizel a seguiu, ordenando ao rapaz que ficasse ali dentro. Diego conseguiu ouvir o som que suas botas faziam ao descer as escadas e então começou a ouvir o ruído da conversa vindo do andar de baixo.
Diego apertou os punhos e chutou a cama com tal intensidade que a afastou. Foi até a cômoda, abriu a primeira gaveta e pegou um isqueiro dourado que roubara de seu tio. Observou o objeto por um tempo, até que sentiu nojo por segurar aquilo e o lançou contra a parede contrária, deixando uma pequena marca na madeira.
Continuou a bater nas coisas até cansar e parar na frente do espelho da cômoda. Viu as sobrancelhas tensionadas mesmo com a face relaxada, seus olhos castanhos claros, o maxilar definido e a misteriosa cicatriz no queixo.
Aquilo o fazia pensar sobre seus pais. Sempre que tentava perguntar ao tio ganhava a mesma resposta: “Morreram em uma missão, agora chega de perguntas.” Embora não tivesse nenhuma memória, lembrava vagamente de um cheiro de fumaça. Que missão seria essa podia apenas suspeitar.
Certa vez ouviu de uns garotos da vizinhança que todos tinham medo daquela casa, pois lá supostamente moravam pessoas muito perigosas e por isso não brincavam com Diego. “Devem ter visto meu tio desfilando de revólver na cintura”, pensava.
Mas, ora, seu tio falava sobre uma sociedade escondida, nomes engraçados como “Troca” ou “Druida”. E como nos filmes, que adorava ver, as pessoas que falavam em código eram envolvidas no crime. Isso explicava as saídas misteriosas do tio e a morte dos pais, que, pelo visto, também estavam envolvidos em negócios obscuros.
E voltou à realidade ao ouvir a discussão dos tios, que, embora estivessem na sala de estar, conseguia ouvir muito bem.
— Ele é uma causa perdida! Já não temos uma boa reputação desde sua falha e agora quer nos afundar de vez?! — exclamava Lidja com arrogância. — Mas claro que o grande Dragão Negro sabe o que está fazendo...
— Não há mais nada para fazer — interrompeu Elizel pondo todo seu desprezo na voz. — O garoto já completou onze anos.
— Mas sabe que ele nem de longe está pronto! Nem dá cabo do treinamento, sonha com A Besta e você já vai mandá-lo ao Craveiro?
Diego inclinou a cabeça para ouvir melhor. Acreditou que ouvira a tia falar “A Besta”, o que fazia sentido, de fato sonhava com um monstro. Mas por que, logo o tio, o enviaria a um craveiro? Possivelmente entendeu errado e a tia quis dizer caveira; não que isso fosse motivo de conforto.
— Já falei com Nebeque — disse Elizel. Então começou a falar num tom cada vez mais lento e alto, como se falasse com alguém incapaz de entender espanhol. — Ele já está ciente das condições do rapaz. Murdock é tão decepcionante quanto o pai, mas não é por falta de esforço da minha parte. E lembre-se que o motivo de ficarmos com ele, não foi pelo meu fracasso, foi pela sua incompetência.
Diego foi até sua porta e a fechou com violência. Não queria ouvir mais nada. Trancou a porta por dentro e jogou a chave em um canto do chão. Despiu o pijama e pôs outras vestes. Pelo visto seus tios planejavam se livrar dele como se fosse lixo. Ele que só dava trabalho e não fazia nada.
Sentia tanta raiva que tremia e quase não conseguia passar a cabeça pelo buraco da camisa. Se fosse tão inútil assim… se realmente não valesse nada… O isqueiro brilhando no chão chamou sua atenção e ele repentinamente teve uma ideia. Não seria descartado sem fazer barulho.
Empilhou todos os lençóis que encontrou no quarto em cima da cama, acendeu o isqueiro e ateou fogo a eles. Logo a fumaça começou a subir e sair pela janela. Diego guardou o isqueiro. Teria de pular do segundo andar. Quando chegou na janela, viu Ângela tão lotada de coisas que não o viu. Morfeus congelou de boca aberta.
Os dois se olharam e assim que o mordomo acelerou o passo para entrar na casa, Diego pulou. Seu joelho bateu na sua testa. Foi difícil levantar para correr, mas quando pulou a cerca da casa e correu pelas calçadas, já não sentia mais que um incomodo ardor no local.
Ainda um pouco tonto, virou várias esquinas até chegar em uma loja chamada: TELEVISÕES E TELEVISORES DO WALTER. Walter estava parado à porta, apoiado num taco de beisebol que sofria para sustentar seu peso. Encarando Diego por detrás do bigode de leão-marinho disse:
— Os pestinhas estão lá dentro. — Os tais pestinhas eram Rúbio, Piti e Cleiton, garotos um ano mais velhos que todos do bairro certamente consideravam má companhia e justamente quem o rapaz queria ver. — E fique avisado que não adianta tentarem roubar nada! Instalei câmeras!
O rapaz acenou com a cabeça, mal-humorado, e se embrenhou por um labirinto de televisores. Viu Walter andar depressa até uma sala reservada mais ao canto da loja. E, depois de andar até o fundo, entendeu o motivo de mencionar as câmeras: Os três garotos estavam flertando com um PlayStation.
— Pow! Demorou, hein! — disse Rúbio, um garoto coberto de espinhas, especialmente no nariz.
— Eu disse que ele ia chegar atrasado — debochou Piti. Seus dentes eram tortos e seu sorriso era só gengivas. — O que aconteceu com sua testa?
Diego fechou a cara e ela se calou. Cleiton, o último dos três e que lembrava um rato, disse com um guincho:
— Mas e aí, trouxe o que a gente pediu?
O garoto mostrou o isqueiro para o grupo e quando um deles tentou pôr a mão, rapidamente devolveu o objeto ao bolso. Rúbio, um tanto desgostoso, mostrou um bilhete para o rapaz.
— A gente faz a troca mais tarde, lá fora — disse Cleiton, desconfiado, se inclinando para frente e para trás. — Quer ver o que a gente achou?
Diego foi apresentado ao console e ele julgou que seria uma boa ideia extravasar sua raiva eliminando alguns alienígenas. Os primeiros inimigos foram fáceis para Diego, porém começou a apertar o controle com mais força que o necessário ao enfrentar um alienígena de três cabeças que simplesmente não queria morrer.
Quando faltava apenas mais um golpe para derrotá-lo, o alienígena o acertou e ele morreu. O rapaz soltou um palavrão e explodiu o controle na tela da televisão, que por sua vez tombou para trás e derrubou o console. Todos petrificaram.
— EU NÃO ACREDITO, SEUS MOLEQUES! VOCÊS VÃO ME PAGAR…! — Ao som dos berro, eles se espalharam depressa em direção a saída.
Diego teve o azar de encontrar com um Walter escarlate segurando um perigoso taco de beisebol. Até seu bigode de leão-marinho parecia prestes a explodir e sair voando para todos os lados.
— Você… Vocês...! Seu… Seu...! — Diego não sabia se Walter colocava força para se conter ou extravasar. — FORA DAQUI SEU MOLEQUE!
Mal acreditando na própria sorte, o rapaz correu dali o mais rápido que pôde, os berros de Walter as suas costas: “E NEM PENSE EM VOLTAR MAIS AQUI!”
Mais tarde, Diego se encontrou com os três garotos num beco adiante, perto do cinema. Assim que se aproximou, Rúbio o empurrou com tanta força que ele bateu as costas na parede. — O que foi aquilo, idiota?! Você acabou com a gente!
— É, cara! — disse Piti, indignada. — Agora não vai dar para pegar aquele Plaistátchiom porque você fez o favor de explodir ele!
— Não explodi! — Ele tencionou as sobrancelhas. Os punhos fechados. Não gostou de ser jogado na parede. — Não foi nada de mais, se não o Walter teria me batido, mas ele não fez! Ficamos cara a cara e...
— Claro que não fez nada contigo, pow! — gritou Cleiton. E de repente todos os três cercaram Diego. — Ele tem medo da tua família por conta daqueles boatos de máfia. Mas isso é só históriazinha!
Então os três começaram a dar socos e pontapés em seu corpo. Piti o segurou por trás. Diego a empurrou na mesma hora que Rúbio puxou um estilete e golpeou o rapaz, que se defendeu com a o braço esquerdo, resultando em um corte. Sentiu o sangue espalhar pela manga enquanto recuava.
— Isso é para não se meter com a gente! — E Cleiton cuspiu em cima dele. Então pegou o isqueiro e começou a analisá-lo. Diego não tinha percebido quando tinha o perdido. — Será que é de ouro, rapaziada? Talvez compense a bagunça que fez hoje, seu bosta!
A cabeça agora não doia tanto por conta do pulo e a dor no braço não passava de um formigamento. Foi burro em confiar naqueles três. Talvez seus tios estivessem certos. Talvez fosse mesmo inútil. Pensar nisso fez seus braços arderem e seu peito queimar de raiva.
— Seu bos…! — Rúbio chutou o rapaz, mas Diego segurou sua perna com um braço e explodiu seu nariz com um soco, o jogando para trás com a mão no rosto, sangue e pus de espinha saindo por entre seus dedos.
Todos paralisaram ao olhar para Diego. Além de seus punhos fechados, os dentes rangendo, sentiam que o ar em torno do corpo do rapaz estava muito quente.